domingo, 29 de abril de 2018

A tradição da fé cristã e a questão dos pobres (Parte I)

O pobre Lázaro

O pobre tornou-se tema central na reflexão teológica pós-conciliar na América Latina a partir de Medelín. A situação de sofrimento e de opressão sob regimes autoritários, na segunda metade do século XX em nosso continente, levou grande número de teólogos e teólogas a procurar respostas, a partir da Revelação, para esta realidade.
Entretanto, ainda hoje, mesmo diante da atual situação de pobreza e exclusão em que vivem milhares de brasileiros, muitas pessoas acreditam que a religião não deveria se preocupar com isso ou que o papel da religião deveria restringir-se a atividades assistenciais e a dar apenas conforto espiritual para as pessoas.
É importante destacar que, seguindo a inspiração do Concílio Vaticano II de “retorno as fontes”, uma riqueza inestimável dentro da Sagrada Escritura e da Tradição da Igreja foi reavivada no que diz respeito à compreensão a partir da fé sobre o DIREITO DO POBRE. É seguindo esse caminho da Escritura e da Tradição que iremos apresentar essa temática. Vamos lá![1]

Ø  Antigo Testamento
Começando pelas escrituras encontramos uma profunda consciência solidária diante do pobre e de suas necessidades já no Antigo Testamento: Respeito e bem ao próximo (Ex 20,15-17); justiça no contrato de trabalho e no comércio (Dt 24,14-15); direito de justiça a todos, inclusive o estrangeiro (Dt 24,17-18).
Os profetas denunciam que o culto e a vida religiosa sem justiça aos pobres são vazios, inúteis, e Deus se aborrece deles: Am 5,21-24; Is 1,11-17; 58,3-11; Mq 6,6-8; Jr 7,4-7.
É evidente o condicionamento entre a aliança divina e o respeito pelo direito do pobre dentro da tradição do A.T.

Ø  Novo Testamento
Aqui encontramos Jesus que proclama o direito do pobre, mas também proclama o amor que realiza este direito, indo muito além das exigências da justiça. Por exemplo: usar os bens transitórios para um dia alcançar os bens eternos (Lc 16,10-12); não se pode servir a dois senhores (Lc 16,13).
Os pobres são cidadãos do Reino com mais facilidade que os ricos, pois estes são estranhos ao Reino, pois a riqueza cega é uma verdadeira forma de idolatria. A saída para os ricos é partilhar “as riquezas injustas” (Lc 16,9.11): injustas porque foram mal adquiridas (Lc 19,1-10), ou porque excedem as verdadeiras necessidades de seus detentores.
O N.T. nos mostra que Cristo é pobre, e é o pobre quem nos julgará (Mt 25,31-46; Tg 5,1.4).
O pobre numa visão positiva: tanto o A.T. como o N.T. apresentam o “ser pobre” também como uma atitude espiritual, sendo aquele que se contenta com o necessário para viver, que é humilde, que não confia nas riquezas nem exige direitos diante de Deus. Por isso são os prediletos de Deus, como Maria anuncia no Magnificat (Lc 1,52-53). Deus escolheu os pobres (Tg 2,5), tanto é que para ser discípulo de Jesus a pobreza é uma condição apresentada nos evangelhos (Mt 19,16-30; Mc 10,17-31; Lc 18,18-30). Temos, então, duas perspectivas: os pobres que o são porque deixaram tudo para dar um testemunho ao mundo dentro do discipulado de Jesus; e temos os pobres que o são porque partilham de seus bens mantendo apenas o necessário para viver (Lc 6,20.24).

Ø  Patrística
O pensamento dos padres é audacioso neste tema do direito do pobre. Eles entendem que a riqueza pertence aos pobres e aquele que a possui é apenas seu administrador.
-          “Não deverás repelir o indigente. Terás tudo em comum com o teu irmão e não dirás que um bem é teu, porque, se se partilham os bens imortais, quanto mais devem ser partilhados os bens passageiros” (Doutrina dos Doze Apóstolos, sec. II).
-          “Aquele que despoja um homem de sua roupa é ladrão. O que não veste a nudez do indigente, quando pode fazê-lo, merecerá outro nome? O pão que guardas em tua despensa pertence ao faminto, como pertence ao nu o agasalho que escondes em teus armários. O sapato que apodrece em tuas gavetas pertence ao descalço, ao miserável a prata que ocultas”. (S. Basílio).
-          “Não é teu o bem que distribuis ao pobre. Devolves a ele apenas a parte do que lhe pertence, porque usurpas para ti sozinho aquilo que foi dado a todos, para o uso de todos. A terra pertence a todos. Não apenas aos ricos”.(S. Ambrósio).
Os padres não negam o direito à propriedade, mas revelam-lhe seu sentido. O mundo foi criado por Deus como um dom para todos, porém o pecado distorceu esta relação e, por isso, o uso comum dos bens da criação tornou-se impossível devido o egoísmo no coração humano. Por isso, o que era de direito natural (a apropriação social) decaiu para a apropriação pessoal (derrogação da lei natural devido o pecado).
-          “A terra foi dada em comum a todos os homens; ninguém considere próprio aquilo que, além do necessário, foi retirado do acervo comum por meio da violência” (S. Basílio).
-          “O uso comum de tudo que há neste mundo destinava-se a todos, porém, devido à iniquidade, um disse que isto era seu e outro disse que aquilo era dele e assim fez-se a divisão entre os mortais” (S. Clemente).
-          “A natureza produziu seus bens em profusão, oferecendo-os em comum a todos. Deus ordenou que tudo fosse produzido, gerado, de maneira a servir de alimento a todos e a terra fosse como propriedade comum de todos. O bem privado é assim fruto de usurpação” (S. Ambrósio).
-          “Se desses do que é teu, seria liberalidade; como dás do que é dele (Jesus presente no pobre), é uma simples restituição” (S. Agostinho).
Todos estes textos querem dizer “[...] que a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem o direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo. Quando a outros falta o necessário” (Populorum Progressio, n. 23).
Vamos ficando por aqui! Na próxima postagem continuaremos expondo brevemente como essa temática apareceu no período escolástico e contemporâneo.




[1] O que apresento a seguir é uma síntese feita a partir da obra: BIGO, Pierre; ÁVIA, Fernando Bastos. Fé cristã e o compromisso social: elementos para uma reflexão sobre a América Latina à luz da Doutrina Social da Igreja. 2a ed., São Paulo: Paulinas, pp. 159-227, 1983.

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