domingo, 28 de janeiro de 2018

O que é “esquerda” e o que é “direita”?

Estamos entrando em ano de eleições, mas o temário político ocupa o centro das atenções desde 2015 com todos os processos, condenações, denúncias, detratações e manifestações que vem acontecendo. Por isso, nesta semana estou compartilhando com você minhas inquietações sobre esse contexto. Não é uma postagem específica sobre teologia, mas é um tema que penso movido pela minha fé que deseja que “todos tenham vida e vida em plenitude”.
Observando como as pessoas têm se posicionado nas redes sociais e pensando um pouco sobre tudo isso, cheguei a uma encruzilhada: não sei mais o que é esquerda e direita na política brasileira! Não fiz uma pesquisa profunda sobre essa situação, mas usando um pouco do que conheço de história, quero compartilhar com você o que venho refletindo sobre isso.
Na década de 80 e meados da década de 90 do século passado, essas categorias eram mais ou menos assim entendidas: Quem defendia a ditadura militar, o capitalismo, os privilégios das classes ricas da sociedade era definido como alguém de direita. Já quem defendia o trabalhador explorado, o socialismo, a distribuição de renda, os direitos sociais e a democracia era tido como de esquerda (havia também variações como centro-direita ou centro-esquerda, mas isso não faz muita diferença para essa reflexão). Tenho na lembrança essas imagens. Desse modo, o termo “partido de direita” foi identificado com a injustiça e o mal, e “partido de esquerda” com justiça e com o bem.
Por que apresento essa pequena contextualização? Porque atualmente essa ainda tem sido a forma de definir, mesmo com certo grau de inconsciência, esses termos. E as pessoas tem se xingado mutuamente usando esses termos: “você é um direitista explorador e assassinos de pobres”; “seu esquerdista comunista, terrorista”. Latifundiário é “direita”, reforma agrária é “esquerda”; heteronormatividade é “direita”, sexualidade plural é “esquerda”; pensamento do tipo “direitos humanos é pra proteger bandido” é “direita”, defesa dos direitos humanos é “esqueda”; etc. Eu entendo que em um contexto passado no qual existiram governos totalitários que exploravam os trabalhadores se cunhou essa distinção, ou seja, quem estava explorando no poder foi identificado por esta expressão “a direita” e os que lutavam pelas mudanças sociais e pelos direitos dos trabalhadores ficou como “a esquerda”.
Entretanto, nos lugares em que a chamada “esquerda” assumiu o poder (recordo aqui a antiga União Soviética, Cuba, Alemanha Oriental) com um sistema socialista (ou comunista) de governo, também injustiças, exploração, desigualdades, totalitarismos, desrespeito aos direitos humanos aconteceram. Por isso, tenho tido dificuldades de entender essas categorias no modo como elas são usadas no contexto atual. Tenho a impressão de estar diante de um contexto maniqueísta[1] em que as pessoas só conseguem enxergar duas possibilidades, dois lados: o bem e o mal, o certo e o errado, o justo e o injusto. Como se fosse fácil estabelecer as linhas e os limites para definir essas coisas. O pior, ao meu ver, é que cada lado acredita piamente que é o certo, o bom, o justo.
Sinto falta de clareza nos discursos para deixar visível qual projeto ou ideologia se está propondo para a sociedade nesse campo de discussão política. Tenho a impressão de que o discurso dos partidos e grupos políticos (seja de direita ou de esquerda ou sei lá de qual) tem se moldado ao “IBOPE” do que seja mais interessante para ganhar mais votos. Isso é muito ruim porque, no final, não se tem identidades nem ideologias nem projetos claros a oferecer para que a sociedade como um todo possa se posicionar, possa escolher, possa discutir. Todos dizem que querem o melhor para o povo, todos dizem que precisa cuidar da saúde, da educação, da economia. Apresentam discursos e projetos genéricos, em sua maioria, não permitindo identificar com clareza de onde eles nascem (ideologicamente) nem para onde eles vão levar.
Para tentar fugir dessas categorias “esquerda” e “direita” outras expressões foram surgindo, “progressistas” e “conservadores”, mas continuando ainda a ideologia que identifica os “conservadores” com o “mal” e os progressistas com o “bem”.
Essa confusão tem favorecido o surgimento de discursos políticos fundamentalistas de tendência totalitarista nas diversas posições. Também tem crescido grupos favoráveis a um governo militar (pra botar ordem na casa), assim como grupos anarquistas.
Sou a favor da diversidade política, mas ela só é sadia se os discursos e propostas forem claras, fundamentadas numa ideologia identificável, que permita o debate. No momento, isso tudo me parece confuso e complicado.
Não tenho uma resposta para oferecer sobre tudo isso, ao contrário, compartilho com você minha inquietação (que talvez não seja a sua). Estou ainda buscando entender tudo isso, porque os discursos se acaloram e as posições se extremam nas redes sociais como se pudéssemos resumir a realidade a “dois times”, do bem e do mal, ignorando a complexidade da subjetividade humana, das relações sociais, das implicações do que fazemos que se desdobram no tecido social com inúmeras possibilidades de resultado.
Acredito que essas categorias “direita” e “esquerda” precisam ser revistas. A forma como classificamos os grupos e partidos parece não mais expressar suas posições ideológicas e isso confunde a cabeça das pessoas. Precisamos de uma reforma política profunda, que vá além dessa pífia “reforminha” que foi feita ano passado. Espero que nossa consciência política possa sair mais amadurecida depois de todo esse processo e que possamos, como cidadãos, contribuir ativamente para as mudanças necessárias.



[1] O maniqueísmo é uma filosofia religiosa sincrética e dualística fundada e propagada por Manes ou Maniqueu, filósofo cristão do século III, que divide o mundo simplesmente entre Bom, ou Deus, e Mau, ou o Diabo.

domingo, 21 de janeiro de 2018

O lugar de fala e o discurso moral religioso (Parte IV)

Nesta última postagem dessa série dedicada à questão do lugar de fala e do discurso moral religioso, quero compartilhar com você o que vi e o que entendi diante de várias polêmicas atuais que permearam nossos meios de comunicação e as redes sociais nesses últimos tempos.
Caso você esteja lendo esse texto sem ter visto os anteriores, é possível que algumas ideias possam parecer soltas ou sem fundamentação, entretanto, os elementos que fundamentam alguns pontos tratados aqui se encontram nas partes anteriores dessa reflexão. Por isso, recomento olhar os textos anteriores antes de seguir na leitura deste.
Retomando...
Recordo os vários episódios nos quais membros de grupos variados (feministas, LGBT, radicais críticos da religião cristã, entre outros), realizando manifestações, executaram performances utilizando objetos e símbolos relacionados à fé cristã: quebra pública de imagens católicas, introdução da cruz no ânus em manifestações, utilização da matéria usada para a celebração da missa (as pequenas hóstias) em uma exposição com nomes de partes do corpo escritas nelas, pichações em fachadas de Igrejas cristãs, e assim poderia continuar essa lista. Na internet facilmente se pode encontrar notícias sobre esses episódios e muitos outros.
Ao recordar esses episódios quero recordar também as reações dos grupos cristãos (católicos e evangélicos) que processaram várias dessas pessoas, segundo está na lei, por desrespeito a liberdade religiosa, profanação dos objetos de culto e intolerância religiosa contra as igrejas cristãs. Recordo também que movimentos fecharam exposições em museus, perseguiram artistas por causa de suas posições em relação a manifestações artísticas que traziam temas relacionados com a questão religiosa (especificamente a religião cristã) e fizeram intensas campanhas nas redes sociais como reação a essa agressão a sua fé. Circularam slogans do tipo “Sou católico e defendo a minha fé” para motivar os cristãos católicos a tomarem uma atitude diante desses acontecimentos.
Como consequência disso, percebi uma agressão crescente nos discursos de ambos os lados e, em alguns casos, o incentivo ao uso da violência como forma de ação ou reação.
É preciso olhar o lugar de fala de onde partem essas posições para não se deixar levar por paixões do tipo “fla x flu”, porque isso não é uma disputa esportiva, mas são vidas, histórias e um tipo de sociedade que se está construindo que estão jogo.
Também me senti chocado e ofendido, num primeiro momento, por essas manifestações utilizando símbolos religiosos cristãos. Entretanto, depois do choque inicial, me obriguei a parar e a tentar ouvir o que esses acontecimentos estão me dizendo sobre a minha fé, sobre o meu discurso moral religioso, sobre que imagem da fé cristã estou comunicando às pessoas.
Tentando olhar o lugar de fala de onde o discurso dessas pessoas e de seus grupos parte, percebi que são pessoas (ou grupos socicais) que, muitas vezes, foram vítimas históricas de um tipo de discurso moral cristão que as marginalizou durante séculos, que as consideraram “seres humanos inferiores”, pecadores merecedores dos castigos do inferno: negros e índios com sua cultura e sua fé; homossexuais e sua busca pelo direito de viverem suas vidas; mulheres e sua luta contra uma estrutura social patriarcal e machista. Repito, por séculos esses grupos foram oprimidos, perseguidos e mortos por pessoas que se apresentavam como representantes da “moral cristã”. Há uma história de violência por baixo dessas manifestações que vemos hoje, uma história que talvez nem eles mesmos tenham consciência, mas a sentem e a carregam.
O contexto social atual deu espaço para que essas pessoas se organizassem em grupos socialmente representativos e pudessem se manifestar com liberdade. Eles estão fazendo isso! E qual é a mensagem que eu estou ouvindo da parte deles em algumas dessas formas de manifestação? Agora que esses grupos podem falar, eles estão apresentando suas pautas, reivindicando direitos, denunciando abusos. Em algumas ocasiões, eles estão devolvendo com violência a violência que receberam por séculos da sociedade cristã ocidental.[1] Estão rejeitando essa cultura cristã que permeia a sociedade ocidental porque a experimentaram como nociva, como repressora e castradora do seu direito de viver e de existir como pessoas. Acredito que os casos que citei acima, que chocaram e provocaram reações entre os fiéis cristãos, tem por trás deles esses elementos.
A reação dos grupos e igrejas cristãs, diante desse contexto, tem sido de combater esses movimentos e essas manifestações; de reagir condenando, criticando, gritando que “estamos certos!!” e que eles são simplesmente “pessoas más”. Eu entendo essa reação, pois é uma reação instintiva de preservação, de autodefesa diante de um contexto que se apresenta como ameaçador. Nessa “modernidade líquida”,[2] muitos cristãos sentem-se perdidos e o medo diante das novas realidades que se apresentam pode levar a atitudes de fechamento, de fundamentalismos e de violência (verbal ou física). O que eles buscam são certezas, respostas “certas” para tudo o que está acontecendo, regras claras, receitas para serem seguidas na esperança de que no final se obterá o resultado prometido. Entretanto, questiono: esse lugar de fala é o “melhor lugar” do qual partir para lidar com todas essas situações de mudança, de questionamento e crítica ao discurso moral cristão? Eu acredito que não!
O que eu acredito é que, como cristão, devo buscar um caminho que permita me posicionar com honestidade a partir da Boa Notícia de Jesus. Como cristão eu me sinto na obrigação de me colocar diante dessas pessoas e grupos críticos e/ou contrários ao discurso moral cristão (seja de quem quebrou uma imagem sacra ou profanou uma cruz) e de, humildemente, perguntar: Irmão, diga-me o que eu fiz? Como eu provoquei toda essa violência dentro de você? Onde foi que meu discurso religioso te feriu tão profundamente para provocar essa reação? Quero entender! Quero encontrar um caminho para me redimir! Quero ter a coragem de deixá-los responder as minhas perguntas e de saber ouví-los com sinceridade e respeito, mesmo que seja doloroso! Quero entender para tentar agir como Jesus, meu Mestre e Senhor, agiria, a partir do princípio do amor, pois ele ensinou que é pelo amor que “reconhecerão que sois meus discípulos”.[3]
Acredito que a atitude cristã mais coerente nesse contexto que se apresenta é a de abrir os caminhos do diálogo, de “dar a outra face” para sermos capazes de compreender o que realmente está acontecendo.  Precisamos discernir o que a Revelação está trazendo a nossa consciência nesse momento histórico por meio desses acontecimentos para correspondermos generosamente à vontade de Deus.
Escuta, diálogo, perdão, misericórdia e respeito são palavras que deveriam estar presentes no processo de revisão do discurso moral cristão nesse momento histórico de conflitos e mudanças no qual estamos vivendo. Somente assim se pode desenvolver uma moral cristã que ajude a todos a alcançar os valores fundamentais do amor, do bem, da justiça, da vida em plenitude.




[1] Tenho como pano de fundo para essa argumentação a ideia do chamado “efeito rebote”. Ele é usado normalmente no campo da saúde, como uma reação contrária do corpo a uma ação radical nele aplicada como, por exemplo, a retenção de líquidos no corpo causada por uma radical diminuição no consumo de sódio. Aqui estou partindo dessa ideia: um longo período de privação de direitos, de perseguições, de discriminação, muitas vezes motivados por discursos morais religiosos, sofre agora uma reação que se expressa por meio de sentimentos e falas que ficaram reprimidos por séculos.
[2] Tomo emprestado o termo cunhado pelo sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman.
[3] Cf. Evangelho segundo João, capítulo 13, versículos 34 e 35 (Jo 13,34-35).

domingo, 14 de janeiro de 2018

O lugar de fala e o discurso moral religioso (Parte III)

A religião e a cultura de um povo encontram-se em um processo contínuo no qual uma e outra se alimentam mutuamente perpassando toda a vida de uma sociedade. Mesmo aqueles que não professam uma fé religiosa não escapam de sua influência.
No mundo cristão ocidental fomos marcados pela mensagem cristã vivida e depois transmitida pelos primeiros cristãos que eram judeus e entendiam sua fé como uma forma de renovação do próprio judaísmo. Desse modo, muitos elementos da mensagem cristã inicial estavam carregados de elementos da cultura judaica. Eles enfrentaram crises intensas para descobrir um caminho que conseguisse harmonizar a fé judaica tradicional e a mensagem reformadora dos seguidores do Messias Jesus.
Quando a mensagem cristã alcança o mundo pagão, elementos da cultura judaica que estavam presentes no grupo cristão entram em conflito com a cultura helênica do mundo greco-romano. As questões relativas à pureza dos alimentos, aos rituais de purificação, à circuncisão, entre outras, provocaram violentos conflitos entre os cristãos de origem judaica e os de origem gentílica. Dois discursos foram defendidos,[1] um mais tradicionalista, que queria que os não-judeus recebessem a circuncisão e adotassem os costumes judaicos para poderem fazer parte da comunidade cristã, outro mais liberal (do qual Paulo é seu representante mais conhecido) que reinterpretava a Revelação (ou seja, os textos judaicos que se tornaram o Antigo Testamento cristão) de um novo ponto de vista, partindo de um novo lugar de fala que encontrava-se fora da Palestina e de sua perspectiva étnica e cultural.
Partindo do Oriente, a mensagem cristã se espalha por toda a Europa misturando-se com o seu processo histórico de construção: passando do Império Romano aos povos e tribos vizinhos, depois passando da formação dos vários Reinos à formação dos Estados Nacionais (países). Quando se iniciam as grandes navegações e os europeus se espalham pelas diversas regiões desconhecidas por eles no mundo, inicia-se também a ação missionária para levar o Evangelho a esses novos povos. Entretanto, esse anúncio foi acompanhado da cultura europeia, pois não era estranho para eles pensar que o conjunto de sua cultura e a fé que professavam vivendo essa cultura eram a mesma coisa. Desse modo, por exemplo, vestiram os índios com roupas europeias e batizaram à força os negros africanos[2] no intuito de civilizá-los e torná-los cristãos.[3]
Essa pequena e superficial síntese é suficiente para demonstrar como a mentalidade da cultura ocidental (incluindo, portanto, a brasileira) está marcada profundamente pelo discurso cristão independente de professar ou não a fé cristã. Essa relação entre o discurso cristão e os processos históricos nos quais ele se encontrava ajuda a perceber como o lugar de fala deve ser levado em conta para a análise do discurso moral cristão. Afirmo isso, pois esse discurso não é isento da influência desse processo histórico, como também não está isento no momento atual. O discernimento em vista de uma evolução positiva desse discurso deve considerar o papel do lugar de fala das diversas falas morais.
Percebo que atualmente cresce um discurso moral religioso, mais especificamente moral cristão, colocando-se em defesa do que se acredita ser a “verdadeira moral”. Como cristão, creio que os valores do cristianismo contribuíram e continuam a contribuir para o bem da sociedade ocidental. Entretanto, não posso achar que já possuo o discurso moral “perfeito” com todas as respostas para todas as questões. Em cada época os cristãos precisaram desenvolver sua reflexão moral por causa dos novos contextos que foram se apresentando. Esse processo foi marcado pelos elementos culturais das pessoas em cada tempo, como já demonstramos brevemente acima (e nos textos anteriores).
Hoje, novos contextos se apresentam suscitando questionamentos e necessitando de maiores reflexões: o tema do aborto e do direito das mulheres, a pesquisa com células-tronco embrionárias, a eutanásia ou morte assistida, as novas formas de arranjo familiar, as relações homoafetivas e a homofobia, a intolerância religiosa, o fundamentalismo religioso, o retorno da moral do “olho por olho” diante da sensação de impunidade e da violência presente no nosso cotidiano, entre outros tantos possíveis contextos.
Precisamos pensar a moral cristã nesses novos contextos tendo presente sempre os valores fundamentais do amor, da justiça, do bem, da vida (que são valores que retiramos, como cristãos, da Boa Nova de Jesus Cristo). Porém não achemos que faremos isso isentos das influências de nosso meio social e cultural. Por isso, todo nosso discurso precisa ser amadurecido em constante discernimento, considerando o nosso lugar de fala em diálogo com outros lugares de fala. É preciso evitar a posição de juízes que se colocam acima do bem e do mal, que determinam o que é o certo e o que é o errado só porque é “assim que eu penso”. A princípio tenho a liberdade de pensar como eu quiser, mas achar que o que eu penso é a melhor ou única orientação moral válida e querer adequar tudo e todos a ela é o grande problema. É daqui que têm nascido várias formas de fundamentalismos que usam o discurso religioso para confirmar as próprias ideias ou a própria visão de mundo sem buscar perceber a verdadeira realidade que se apresenta ao seu redor.
Para concluir, quero retomar a figura de Paulo, o apóstolo da Bíblia, a quem me referi no início do texto. Ele modificou seu discurso a partir do momento em que ele se deslocou de seu lugar de fala, ou seja, de judeu fariseu, zeloso cumpridor da lei e perseguidor dos seguidores do Messias Jesus, para judeu-cristão, seguidor do Messias Jesus, defensor do acolhimento dos pagãos na comunidade cristã sem impor-lhes os costumes judaicos.[4]
A meu ver ele ilustra bem o que nós, cristãos de hoje, precisamos fazer: precisamos ter a coragem de nos deslocar do nosso lugar de fala e de aproximarmo-nos do lugar de fala dos outros que pensam diferente de nós. Precisamos fazer a experiência da empatia, da compaixão, para discernirmos nosso próprio discurso moral, permitindo uma evolução positiva, retirando os elementos que são apenas a expressão de nosso lugar de fala e não da Revelação cristã, assim como Paulo procurou fazer em relação aos elementos da cultura judaica presentes no discurso moral cristão dirigido aos pagãos. O processo de discernimento feito por Paulo contribuiu significativamente para que a mensagem cristã não ficasse reduzida a um grupo dentro do judaísmo, mas se tornasse Boa Notícia de Jesus Cristo para cada pessoa que a quisesse acolher pela fé, independente de ser ou não judeu. Ele conseguiu perceber o que a Revelação estava querendo dizer naquele contexto e momento histórico.
Eu estou tentando fazer esse processo de deslocamento de meu lugar de fala para ir ao encontro dos outros lugares. Já faz um bom tempo que estou procurando discernir o que a Revelação está querendo nos fazer entender no atual contexto em que vivemos, e acredito que cada cristão e cristã deve procurar fazer esse mesmo processo. Essa série de textos é uma tentativa minha que compartilho com você, caro leitor e leitora.
Na próxima postagem pretendo concluir essa série de reflexões sobre essa temática específica trazendo alguns casos concretos e apresentando minhas impressões e interpretações a partir do meu lugar de fala em diálogo com outros lugares de fala.



[1] Existiam outros discursos, mas eram como variantes desses dois principais. Por isso, me restringi a colocar esses dois como ponto de referência em nossa reflexão. Sobre os conflitos motivados pelas diferentes posições que foram surgindo na história do cristianismo indico um livro básico para leitura: ROQUE, Frangiotti. História das heresias. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 1995.
[2] Indico o filme “A Missão”, de 1986, um drama histórico dirigido por Roland Joffé. Ele se passa no final do século XVIII, apresentando a presença dos jesuítas na região sul do Brasil, sua ação missionária, a luta contra os mercadores de escravos que queriam submeter os índios e as consequências desse conflito.
[3] Claro que em meio a esse processo estava presente também a discussão sobre o “tipo” de humanidade dos índios e dos negros, se eles tinham alma humana ou eram animais. Entre o que se pode encontrar na pesquisa histórica sugiro observar “A controvérsia de Valladolid” na qual os religiosos jesuítas debateram com os conquistadores sobre a legitimidade da escravização dos índios nas novas terras. Ambos os lados utilizam-se de argumentos religiosos: os jesuítas para defender os índios e os conquistadores para justificar sua exploração.
[4] Cf. Carta de Paulo aos Filipenses, capítulo 3, versículos de 5 até 11 (Fl 3,5-11).

domingo, 7 de janeiro de 2018

O lugar de fala e o discurso moral religioso (Parte II)

O problema de certos discursos morais fundamentados em certos princípios religiosos é que eles tendem a sacralizar, a considerar como “divino”, um conjunto de normas, preceitos e interditos e, desse modo, transformam as normas morais em um valor por si mesmas, ao invés de vê-las como elas realmente são: meios, instrumentos, apoios para que se possa alcançar o verdadeiro bem, o verdadeiro valor.[1]
Essa confusão é uma condição que sempre se fez presente em toda história humana. Tratando especificamente do discurso moral cristão, isso acontece não por um defeito do cristianismo (ou de qualquer religião), mas por uma dificuldade que temos para identificar o que é essencial e o que é secundário. Essa dificuldade acontece dentro do processo que todos nós fazemos de busca para descobrir e compreender qual o caminho da virtude, do bem; por causa do desejo que temos por segurança, por referências claras que nos permitam saber o que fazer, o que evitar, o que é o certo e o que é o errado.
O lugar de fala interfere diretamente nesse processo. Por isso é importante tomar consciência dessa interferência, pois isso permite identificar o lugar de fala de certos discursos morais que, em nome do que chamam “moral cristã”, se apresentam muito mais representantes da moral de um lugar de fala específico do que de uma moral inspirada no “Evangelho de Jesus Cristo”.[2] Para ilustrar o que estou apresentando, vamos olhar alguns exemplos tirados da própria história do cristianismo para vermos como não é simples pensar uma moral cristã que seja realmente cristã, ou seja, que nos leve a alcançar o valor fundamental que Jesus nos ensinou que é o mandamento do amor.[3]
Em um texto antigo chamado Carta a Diogneto,[4] encontramos um trecho que fala sobre como viviam os cristãos dentro da sociedade greco-romana. Nesse texto do século II, os cristãos são apresentados como praticantes de uma vida comum, inseridos no dia a dia das cidades, mas se diferenciando por certos valores como o respeito à vida, a partilha fraterna dos bens, a caridade para com os necessitados, o cumprimento das leis da cidade como bons cidadãos. Aqueles que sofriam perseguição pelo fato de serem cristãos, e que não renegavam sua fé, eram considerados testemunhas da verdade dessa fé por sua fidelidade sem apelar para o discurso de ódio nem de vingança. Entretanto, nos séculos seguintes, após o Império Romano tornar o cristianismo a religião oficial de todo o Império, o lugar de fala dos cristãos mudou. Eles saíram da situação de perseguidos, minoria dentro do Império, da condição de uma religião de escravos, de pobres e de camponeses,[5] tornando-se uma religião de todos. Nesse novo lugar, o discurso moral cristão tornou-se o discurso oficial e, de perseguidos, passaram a perseguir os que não se submetiam a sua disciplina. Templos pagãos foram destruídos ou tomados e transformados em templos cristãos[6] sem a menor cerimônia. Em defesa do discurso religioso cristão, aconteceram perseguições e mortes. A mudança do lugar de fala construiu um discurso que justificava essa prática como manifestação da vontade de Deus. Não sei se você, leitor, recorda dos trechos dos evangelhos que ensinam a “amar os inimigos; abençoar que vos persegue; dar a outra face; não resistir ao mal, mas vencê-lo pelo bem”.[7] Parece que esses elementos ficaram meio esquecidos no discurso moral que orientava essa práxis.
Recordo outro exemplo sobre como certos valores podem mudar mediante a mudança do lugar de fala. Nesse caso, recordo a mudança que ocorre por causa da passagem do tempo.[8] Tomemos a práxis em relação ao manuseio da Bíblia. No período da Idade Média, o acesso a sua leitura e interpretação estava reduzido aos círculos eclesiásticos. Os homens religiosos que tinha acesso à instrução (ou seja, a capacidade de ler e escrever) eram os responsáveis pela conservação,  guarda, leitura e interpretação dos textos sagradas. Ao povo em geral (em sua quase totalidade analfabeto) cabia ouvir, aprender e praticar o que era ensinado para poder alcançar a salvação. Com o movimento iniciado com Lutero, a invenção da imprensa e a iniciativa de outros grupos, o texto bíblico começou a ser traduzido do latim, do grego e do hebraico para língua da população, cópias traduzidas do texto foram impressas e disponibilizadas, ampliando o acesso aos textos sagrados. Entretanto, uma das reações da Igreja Católica foi proibir que os cristãos portassem esses textos num misto de zelo pela Palavra Sagrada (pois ela poderia ser profanada nas mãos de uma pessoa sem a instrução considerada necessária para seu manuseio) e de dificuldades que começavam a se apresentar mediante os questionamentos feitos à Igreja que surgiam a partir dessas leituras.
Saltando no tempo, a Igreja Católica atualmente incentiva e orienta a leitura da Bíblia. Promove subsídios para grupos de estudo, dedica um mês do ano para falar sobre a importância da Palavra de Deus na vida dos cristãos entre outras iniciativas.[9] Eu pergunto: o que houve? O que mudou em relação à práxis moral no tocante ao manuseio da Bíblia?
O que mudou foi o lugar de fala. Nesse caso, o lugar de fala está marcado pelo elemento temporal e contextual. Ao mudar o lugar de fala, mudou também a práxis moral em relação à Bíblia.
Esses exemplos acima são exemplos ilustrativos. Eu poderia multiplicá-los em centenas de outros. O que desejo é que você, ao ler, perceba que o discurso moral cristão não pode ser tomado como um absoluto imutável, mas que ele precisa ser entendido como uma realidade em processo, que se modifica mediante o lugar de fala do qual ele parte. Alguns discursos morais que tenho visto atualmente, que se apresentam como defensores de uma pretensa “moral cristã”, me parecem marcados por uma interpretação que parte de um lugar de fala bem específico, às vezes um lugar marcado pelo medo, pelo preconceito e pela intolerância. Muitas vezes, esse tipo de discurso se apresenta como “o discurso”, ou seja, como aquele que diz exatamente o que “é o certo e o que é o errado”.  Por isso, considero importante essa reflexão estamos sobre o lugar de fala e o discurso moral religioso.
Para concluir, espero ter conseguido, até o momento, deixar clara minha perspectiva. Essa perspectiva é que esse discurso moral religioso não é um fim em si mesmo, mas que se desenvolve em função de um objetivo que é ajudar os cristãos a viverem sua vida conforme o ensinamento e práxis de Jesus, nosso Mestre e Senhor. Gostaria que ficasse evidente que esse discurso não pode ser tomado como definitivo e imutável justamente por ser um meio, um instrumento a serviço da Revelação; e que esta Revelação encontra-se a mercê de um processo interpretativo que começou com os primeiros discípulos de Jesus e que continua até hoje, sendo sua compreensão, portanto, ainda limitada, parcial, processual, inesgotada.
Na próxima postagem continuarei aprofundando essa reflexão dando um passo a mais: vamos tentar dialogar com o discurso moral religioso que se apresenta hoje partindo de casos concretos.




[1] Tenho como referência a epistemologia de Juan Luis Segundo, teólogo jesuíta que desenvolveu uma teologia em busca de diálogo com o mundo moderno, procurando tornar o discurso cristão significativo para as pessoas de hoje. Gosto muito de várias abordagens que ele desenvolve.
[2] Expressão usada pelo evangelista Marcos na abertura do seu livro: cf. Evangelho segundo Marcos, capítulo 1, versículo 1 (Mc 1,1).
[3] Na literatura joanina, encontramos expresso o mandamento do amor: Amai-vos como eu vos amei (amo). Cf. Evangelho segundo João capítulo 13, versículos 34 e 35 (Jo 13,34-35); capítulo 15, versículo 12 e 17 (Jo 15,12.17). Esse seria o único mandamento de Jesus, a práxis fundamental, o valor primeiro que deveria conduzir a construção da moral cristã. O grande desafio para os cristãos sempre foi como traduzir esse valor fundamental em uma práxis concreta.
[4] Quem se interessar pode encontrar esse texto na internet por meio de uma busca simples.
[5] Havia também pessoas instruídas, de famílias nobres e ricas que aderiam à fé cristã, mas eram em número bem menor em relação à maioria dos membros das comunidades.
[6] Quando vi o Pantheon , em Roma, percebi claramente esse processo. É um templo pagão que foi transformado em um templo cristão, entretanto, ainda é possível perceber os elementos da religião greco-romana presentes em sua estrutura e em vários elementos de sua ornamentação interna.
[7] Evangelho segundo Lucas, capítulo 6, versículo 35 (Lc 6,35); Evangelho segundo Mateus, capítulo 5, versículo 39 (Mt 5,39); capítulo 5, versículo 44 e 45 (Mt 5,44-45); Carta de Paulo aos Romanos, capítulo 12, versículos de 14 até 21 (Rm 12,14-21).
[8] MANCUSO, em seu livro Eu e Deus: um guia para os perplexos, traz em um capítulo vários exemplos de mudança no discurso moral religioso cristão católico através do tempo.
[9] Para os cristãos católicos, Setembro é considerado o mês da Bíblia. Esse mês foi escolhido por causa do dia 30 no qual celebra-se a memória de São Jerônimo que realizou importantes trabalhos para a organização e tradução dos textos bíblicos no século IV depois de Cristo.

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