O problema de certos discursos
morais fundamentados em certos princípios religiosos é que eles tendem a
sacralizar, a considerar como “divino”, um conjunto de normas, preceitos e
interditos e, desse modo, transformam as normas morais em um valor por si
mesmas, ao invés de vê-las como elas realmente são: meios, instrumentos, apoios
para que se possa alcançar o verdadeiro bem, o verdadeiro valor.[1]
Essa confusão é uma condição que
sempre se fez presente em toda história humana. Tratando especificamente do
discurso moral cristão, isso acontece não por um defeito do cristianismo (ou de
qualquer religião), mas por uma dificuldade que temos para identificar o que é
essencial e o que é secundário. Essa dificuldade acontece dentro do processo
que todos nós fazemos de busca para descobrir e compreender qual o caminho da
virtude, do bem; por causa do desejo que temos por segurança, por referências
claras que nos permitam saber o que fazer, o que evitar, o que é o certo e o
que é o errado.
O lugar de fala interfere
diretamente nesse processo. Por isso é importante tomar consciência dessa
interferência, pois isso permite identificar o lugar de fala de certos
discursos morais que, em nome do que chamam “moral cristã”, se apresentam muito
mais representantes da moral de um lugar de fala específico do que de uma moral
inspirada no “Evangelho de Jesus Cristo”.[2]
Para ilustrar o que estou apresentando, vamos olhar alguns exemplos tirados da
própria história do cristianismo para vermos como não é simples pensar uma
moral cristã que seja realmente cristã, ou seja, que nos leve a alcançar o
valor fundamental que Jesus nos ensinou que é o mandamento do amor.[3]
Em um texto antigo chamado Carta
a Diogneto,[4]
encontramos um trecho que fala sobre como viviam os cristãos dentro da
sociedade greco-romana. Nesse texto do século II, os cristãos são apresentados
como praticantes de uma vida comum, inseridos no dia a dia das cidades, mas se
diferenciando por certos valores como o respeito à vida, a partilha fraterna
dos bens, a caridade para com os necessitados, o cumprimento das leis da cidade
como bons cidadãos. Aqueles que sofriam perseguição pelo fato de serem cristãos,
e que não renegavam sua fé, eram considerados testemunhas da verdade dessa fé
por sua fidelidade sem apelar para o discurso de ódio nem de vingança.
Entretanto, nos séculos seguintes, após o Império Romano tornar o cristianismo
a religião oficial de todo o Império, o lugar de fala dos cristãos mudou. Eles
saíram da situação de perseguidos, minoria dentro do Império, da condição de
uma religião de escravos, de pobres e de camponeses,[5]
tornando-se uma religião de todos. Nesse novo lugar, o discurso moral cristão
tornou-se o discurso oficial e, de perseguidos, passaram a perseguir os que não
se submetiam a sua disciplina. Templos pagãos foram destruídos ou tomados e
transformados em templos cristãos[6]
sem a menor cerimônia. Em defesa do discurso religioso cristão, aconteceram
perseguições e mortes. A mudança do lugar de fala construiu um discurso que
justificava essa prática como manifestação da vontade de Deus. Não sei se você,
leitor, recorda dos trechos dos evangelhos que ensinam a “amar os inimigos;
abençoar que vos persegue; dar a outra face; não resistir ao mal, mas vencê-lo
pelo bem”.[7]
Parece que esses elementos ficaram meio esquecidos no discurso moral que
orientava essa práxis.
Recordo outro exemplo sobre como
certos valores podem mudar mediante a mudança do lugar de fala. Nesse caso,
recordo a mudança que ocorre por causa da passagem do tempo.[8]
Tomemos a práxis em relação ao manuseio da Bíblia. No período da Idade Média, o
acesso a sua leitura e interpretação estava reduzido aos círculos
eclesiásticos. Os homens religiosos que tinha acesso à instrução (ou seja, a
capacidade de ler e escrever) eram os responsáveis pela conservação, guarda, leitura e interpretação dos textos
sagradas. Ao povo em geral (em sua quase totalidade analfabeto) cabia ouvir,
aprender e praticar o que era ensinado para poder alcançar a salvação. Com o
movimento iniciado com Lutero, a invenção da imprensa e a iniciativa de outros
grupos, o texto bíblico começou a ser traduzido do latim, do grego e do
hebraico para língua da população, cópias traduzidas do texto foram impressas e
disponibilizadas, ampliando o acesso aos textos sagrados. Entretanto, uma das
reações da Igreja Católica foi proibir que os cristãos portassem esses textos
num misto de zelo pela Palavra Sagrada (pois ela poderia ser profanada nas mãos
de uma pessoa sem a instrução considerada necessária para seu manuseio) e de
dificuldades que começavam a se apresentar mediante os questionamentos feitos à
Igreja que surgiam a partir dessas leituras.
Saltando no tempo, a Igreja
Católica atualmente incentiva e orienta a leitura da Bíblia. Promove subsídios
para grupos de estudo, dedica um mês do ano para falar sobre a importância da
Palavra de Deus na vida dos cristãos entre outras iniciativas.[9] Eu
pergunto: o que houve? O que mudou em relação à práxis moral no tocante ao
manuseio da Bíblia?
O que mudou foi o lugar de fala.
Nesse caso, o lugar de fala está marcado pelo elemento temporal e contextual.
Ao mudar o lugar de fala, mudou também a práxis moral em relação à Bíblia.
Esses exemplos acima são exemplos
ilustrativos. Eu poderia multiplicá-los em centenas de outros. O que desejo é
que você, ao ler, perceba que o discurso moral cristão não pode ser tomado como
um absoluto imutável, mas que ele precisa ser entendido como uma realidade em
processo, que se modifica mediante o lugar de fala do qual ele parte. Alguns
discursos morais que tenho visto atualmente, que se apresentam como defensores
de uma pretensa “moral cristã”, me parecem marcados por uma interpretação que
parte de um lugar de fala bem específico, às vezes um lugar marcado pelo medo,
pelo preconceito e pela intolerância. Muitas vezes, esse tipo de discurso se
apresenta como “o discurso”, ou seja, como aquele que diz exatamente o que “é o
certo e o que é o errado”. Por isso,
considero importante essa reflexão estamos sobre o lugar de fala e o discurso
moral religioso.
Para concluir, espero ter
conseguido, até o momento, deixar clara minha perspectiva. Essa perspectiva é que
esse discurso moral religioso não é um fim em si mesmo, mas que se desenvolve
em função de um objetivo que é ajudar os cristãos a viverem sua vida conforme o
ensinamento e práxis de Jesus, nosso Mestre e Senhor. Gostaria que ficasse
evidente que esse discurso não pode ser tomado como definitivo e imutável
justamente por ser um meio, um instrumento a serviço da Revelação; e que esta
Revelação encontra-se a mercê de um processo interpretativo que começou com os
primeiros discípulos de Jesus e que continua até hoje, sendo sua compreensão,
portanto, ainda limitada, parcial, processual, inesgotada.
Na próxima postagem continuarei
aprofundando essa reflexão dando um passo a mais: vamos tentar dialogar com o
discurso moral religioso que se apresenta hoje partindo de casos concretos.
[1]
Tenho como referência a epistemologia de Juan Luis
Segundo, teólogo jesuíta que desenvolveu uma teologia em busca de diálogo com o
mundo moderno, procurando tornar o discurso cristão significativo para as
pessoas de hoje. Gosto muito de várias abordagens que ele desenvolve.
[2]
Expressão usada pelo evangelista Marcos na abertura do seu livro: cf. Evangelho
segundo Marcos, capítulo 1, versículo 1 (Mc 1,1).
[3]
Na literatura joanina, encontramos expresso o mandamento do amor: Amai-vos como
eu vos amei (amo). Cf. Evangelho segundo João capítulo 13, versículos 34 e 35
(Jo 13,34-35); capítulo 15, versículo 12 e 17 (Jo 15,12.17). Esse seria o único
mandamento de Jesus, a práxis fundamental, o valor primeiro que deveria
conduzir a construção da moral cristã. O grande desafio para os cristãos sempre
foi como traduzir esse valor fundamental em uma práxis concreta.
[4]
Quem se interessar pode encontrar esse texto na internet por meio de uma busca
simples.
[5]
Havia também pessoas instruídas, de famílias nobres e ricas que aderiam à fé
cristã, mas eram em número bem menor em relação à maioria dos membros das
comunidades.
[6]
Quando vi o Pantheon , em Roma,
percebi claramente esse processo. É um templo pagão que foi transformado em um
templo cristão, entretanto, ainda é possível perceber os elementos da religião
greco-romana presentes em sua estrutura e em vários elementos de sua
ornamentação interna.
[7]
Evangelho segundo Lucas, capítulo 6, versículo 35 (Lc 6,35); Evangelho segundo
Mateus, capítulo 5, versículo 39 (Mt 5,39); capítulo 5, versículo 44 e 45 (Mt
5,44-45); Carta de Paulo aos Romanos, capítulo 12, versículos de 14 até 21 (Rm
12,14-21).
[8]
MANCUSO, em seu livro Eu e Deus: um guia
para os perplexos, traz em um capítulo vários exemplos de mudança no
discurso moral religioso cristão católico através do tempo.
[9]
Para os cristãos católicos, Setembro é considerado o mês da Bíblia. Esse mês
foi escolhido por causa do dia 30 no qual celebra-se a memória de São Jerônimo
que realizou importantes trabalhos para a organização e tradução dos textos
bíblicos no século IV depois de Cristo.
Ótimos seus textos. .Deus abençoe. .
ResponderExcluirObrigado pelo incentivo.
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