domingo, 7 de janeiro de 2018

O lugar de fala e o discurso moral religioso (Parte II)

O problema de certos discursos morais fundamentados em certos princípios religiosos é que eles tendem a sacralizar, a considerar como “divino”, um conjunto de normas, preceitos e interditos e, desse modo, transformam as normas morais em um valor por si mesmas, ao invés de vê-las como elas realmente são: meios, instrumentos, apoios para que se possa alcançar o verdadeiro bem, o verdadeiro valor.[1]
Essa confusão é uma condição que sempre se fez presente em toda história humana. Tratando especificamente do discurso moral cristão, isso acontece não por um defeito do cristianismo (ou de qualquer religião), mas por uma dificuldade que temos para identificar o que é essencial e o que é secundário. Essa dificuldade acontece dentro do processo que todos nós fazemos de busca para descobrir e compreender qual o caminho da virtude, do bem; por causa do desejo que temos por segurança, por referências claras que nos permitam saber o que fazer, o que evitar, o que é o certo e o que é o errado.
O lugar de fala interfere diretamente nesse processo. Por isso é importante tomar consciência dessa interferência, pois isso permite identificar o lugar de fala de certos discursos morais que, em nome do que chamam “moral cristã”, se apresentam muito mais representantes da moral de um lugar de fala específico do que de uma moral inspirada no “Evangelho de Jesus Cristo”.[2] Para ilustrar o que estou apresentando, vamos olhar alguns exemplos tirados da própria história do cristianismo para vermos como não é simples pensar uma moral cristã que seja realmente cristã, ou seja, que nos leve a alcançar o valor fundamental que Jesus nos ensinou que é o mandamento do amor.[3]
Em um texto antigo chamado Carta a Diogneto,[4] encontramos um trecho que fala sobre como viviam os cristãos dentro da sociedade greco-romana. Nesse texto do século II, os cristãos são apresentados como praticantes de uma vida comum, inseridos no dia a dia das cidades, mas se diferenciando por certos valores como o respeito à vida, a partilha fraterna dos bens, a caridade para com os necessitados, o cumprimento das leis da cidade como bons cidadãos. Aqueles que sofriam perseguição pelo fato de serem cristãos, e que não renegavam sua fé, eram considerados testemunhas da verdade dessa fé por sua fidelidade sem apelar para o discurso de ódio nem de vingança. Entretanto, nos séculos seguintes, após o Império Romano tornar o cristianismo a religião oficial de todo o Império, o lugar de fala dos cristãos mudou. Eles saíram da situação de perseguidos, minoria dentro do Império, da condição de uma religião de escravos, de pobres e de camponeses,[5] tornando-se uma religião de todos. Nesse novo lugar, o discurso moral cristão tornou-se o discurso oficial e, de perseguidos, passaram a perseguir os que não se submetiam a sua disciplina. Templos pagãos foram destruídos ou tomados e transformados em templos cristãos[6] sem a menor cerimônia. Em defesa do discurso religioso cristão, aconteceram perseguições e mortes. A mudança do lugar de fala construiu um discurso que justificava essa prática como manifestação da vontade de Deus. Não sei se você, leitor, recorda dos trechos dos evangelhos que ensinam a “amar os inimigos; abençoar que vos persegue; dar a outra face; não resistir ao mal, mas vencê-lo pelo bem”.[7] Parece que esses elementos ficaram meio esquecidos no discurso moral que orientava essa práxis.
Recordo outro exemplo sobre como certos valores podem mudar mediante a mudança do lugar de fala. Nesse caso, recordo a mudança que ocorre por causa da passagem do tempo.[8] Tomemos a práxis em relação ao manuseio da Bíblia. No período da Idade Média, o acesso a sua leitura e interpretação estava reduzido aos círculos eclesiásticos. Os homens religiosos que tinha acesso à instrução (ou seja, a capacidade de ler e escrever) eram os responsáveis pela conservação,  guarda, leitura e interpretação dos textos sagradas. Ao povo em geral (em sua quase totalidade analfabeto) cabia ouvir, aprender e praticar o que era ensinado para poder alcançar a salvação. Com o movimento iniciado com Lutero, a invenção da imprensa e a iniciativa de outros grupos, o texto bíblico começou a ser traduzido do latim, do grego e do hebraico para língua da população, cópias traduzidas do texto foram impressas e disponibilizadas, ampliando o acesso aos textos sagrados. Entretanto, uma das reações da Igreja Católica foi proibir que os cristãos portassem esses textos num misto de zelo pela Palavra Sagrada (pois ela poderia ser profanada nas mãos de uma pessoa sem a instrução considerada necessária para seu manuseio) e de dificuldades que começavam a se apresentar mediante os questionamentos feitos à Igreja que surgiam a partir dessas leituras.
Saltando no tempo, a Igreja Católica atualmente incentiva e orienta a leitura da Bíblia. Promove subsídios para grupos de estudo, dedica um mês do ano para falar sobre a importância da Palavra de Deus na vida dos cristãos entre outras iniciativas.[9] Eu pergunto: o que houve? O que mudou em relação à práxis moral no tocante ao manuseio da Bíblia?
O que mudou foi o lugar de fala. Nesse caso, o lugar de fala está marcado pelo elemento temporal e contextual. Ao mudar o lugar de fala, mudou também a práxis moral em relação à Bíblia.
Esses exemplos acima são exemplos ilustrativos. Eu poderia multiplicá-los em centenas de outros. O que desejo é que você, ao ler, perceba que o discurso moral cristão não pode ser tomado como um absoluto imutável, mas que ele precisa ser entendido como uma realidade em processo, que se modifica mediante o lugar de fala do qual ele parte. Alguns discursos morais que tenho visto atualmente, que se apresentam como defensores de uma pretensa “moral cristã”, me parecem marcados por uma interpretação que parte de um lugar de fala bem específico, às vezes um lugar marcado pelo medo, pelo preconceito e pela intolerância. Muitas vezes, esse tipo de discurso se apresenta como “o discurso”, ou seja, como aquele que diz exatamente o que “é o certo e o que é o errado”.  Por isso, considero importante essa reflexão estamos sobre o lugar de fala e o discurso moral religioso.
Para concluir, espero ter conseguido, até o momento, deixar clara minha perspectiva. Essa perspectiva é que esse discurso moral religioso não é um fim em si mesmo, mas que se desenvolve em função de um objetivo que é ajudar os cristãos a viverem sua vida conforme o ensinamento e práxis de Jesus, nosso Mestre e Senhor. Gostaria que ficasse evidente que esse discurso não pode ser tomado como definitivo e imutável justamente por ser um meio, um instrumento a serviço da Revelação; e que esta Revelação encontra-se a mercê de um processo interpretativo que começou com os primeiros discípulos de Jesus e que continua até hoje, sendo sua compreensão, portanto, ainda limitada, parcial, processual, inesgotada.
Na próxima postagem continuarei aprofundando essa reflexão dando um passo a mais: vamos tentar dialogar com o discurso moral religioso que se apresenta hoje partindo de casos concretos.




[1] Tenho como referência a epistemologia de Juan Luis Segundo, teólogo jesuíta que desenvolveu uma teologia em busca de diálogo com o mundo moderno, procurando tornar o discurso cristão significativo para as pessoas de hoje. Gosto muito de várias abordagens que ele desenvolve.
[2] Expressão usada pelo evangelista Marcos na abertura do seu livro: cf. Evangelho segundo Marcos, capítulo 1, versículo 1 (Mc 1,1).
[3] Na literatura joanina, encontramos expresso o mandamento do amor: Amai-vos como eu vos amei (amo). Cf. Evangelho segundo João capítulo 13, versículos 34 e 35 (Jo 13,34-35); capítulo 15, versículo 12 e 17 (Jo 15,12.17). Esse seria o único mandamento de Jesus, a práxis fundamental, o valor primeiro que deveria conduzir a construção da moral cristã. O grande desafio para os cristãos sempre foi como traduzir esse valor fundamental em uma práxis concreta.
[4] Quem se interessar pode encontrar esse texto na internet por meio de uma busca simples.
[5] Havia também pessoas instruídas, de famílias nobres e ricas que aderiam à fé cristã, mas eram em número bem menor em relação à maioria dos membros das comunidades.
[6] Quando vi o Pantheon , em Roma, percebi claramente esse processo. É um templo pagão que foi transformado em um templo cristão, entretanto, ainda é possível perceber os elementos da religião greco-romana presentes em sua estrutura e em vários elementos de sua ornamentação interna.
[7] Evangelho segundo Lucas, capítulo 6, versículo 35 (Lc 6,35); Evangelho segundo Mateus, capítulo 5, versículo 39 (Mt 5,39); capítulo 5, versículo 44 e 45 (Mt 5,44-45); Carta de Paulo aos Romanos, capítulo 12, versículos de 14 até 21 (Rm 12,14-21).
[8] MANCUSO, em seu livro Eu e Deus: um guia para os perplexos, traz em um capítulo vários exemplos de mudança no discurso moral religioso cristão católico através do tempo.
[9] Para os cristãos católicos, Setembro é considerado o mês da Bíblia. Esse mês foi escolhido por causa do dia 30 no qual celebra-se a memória de São Jerônimo que realizou importantes trabalhos para a organização e tradução dos textos bíblicos no século IV depois de Cristo.

2 comentários:

Postagens anteriores

DESTAQUE DO MÊS

“Teologia Oficial” x Teologia da Libertação: um embate hermenêutico!

Concílio Ecumênico Vaticano II Existe uma discussão no meio teológico movida por questões de compreensão e interpretação da mensagem d...