O tema religioso está em alta
nos discursos, especialmente no campo político. Uma bandeira de campanha tem
sido usar a imagem de pessoa religiosa, de valores religiosos, mais especificamente,
a imagem de “bom cristão” (seja católico seja evangélico) para atrair
potenciais eleitores oriundos desses ambientes.
O Brasil, apesar de ser um
Estado laico, é um país de cultura marcadamente religiosa e cristã. O
imaginário do povo, mesmo daqueles que não mais professam a fé cristã, está
marcado pelo discurso e valores da cultura cristã que ainda permeiam nosso
ambiente social.
Diante desse quadro, considero
esse tipo de postura perigosa, como se usar o rótulo de “bom cristão” fosse o
suficiente para tornar alguém um “bom político” ou “um bom candidato” a algum
cargo eletivo.
É um fato histórico que religião
e política sempre tiveram relações, ora harmoniosas ora conflituosas. Essas
relações são complexas, pois estão entranhadas de interesses de pessoas e de grupos,
disputas de poder e de dominação ideológica, seja para tentar fazer o bem seja
para buscar vantagens que beneficiem os que estão no poder. Para dar alguns
exemplos quero recordar:
- No início do cristianismo, nos primeiros quatro séculos, o
sistema religioso oficial (que não era o cristianismo) garantia ao Império
Romano sua coesão e ao imperador era prestado culto. O cristianismo era uma religião que estava
surgindo e que não se submetia a esse sistema, mas o criticava ao negar o culto
ao imperador e as divindades tradicionais, pregando um Deus diferente e a
adoração somente a Ele e ao Seu Messias Jesus.
- Na idade média, a religião cristã dominava o contexto do
Ocidente. Ela dava validade à autoridade dos reis (os bispos coroavam os reis)
e estes sustentavam o status privilegiado da religião;
- No período dos sistemas socialistas (ou comunistas) na
Europa no século passado, para eles conseguirem alcançar o poder, um dos meios
utilizados foi tentar desconstruir o discurso religioso, pois esse discurso,
naquele contexto, validava e dava sustentação à situação vigente, impedindo, em
muitos lugares, qualquer tentativa de transformação política e social.
Diante de algumas posturas que
tenho visto usando o tema religioso como argumento para justificar certas
posições políticas, levanto alguns questionamentos: o que significa realmente ser
cristão? O que realmente valida alguém como “bom cristão”? Ser identificado
como cristão é sinônimo de ser um bom político?
O termo “cristão”, segundo o que
está relatado no livro dos Atos dos Apóstolos, teria sido usado para
identificar os seguidores de Jesus Cristo (Messias = ungido) pela primeira vez
na comunidade de Antioquia, ao norte da Palestina.[1]
Essa expressão significaria que as pessoas que acreditavam que Jesus era o
Messias esperado, o Salvador, o Filho de Deus, passando a seguir os seus
ensinamentos, se tornava um outro “messias”, ou seja, um outro cristo, um
“ungido”, alguém que em sua vida continuava a vida e missão do Mestre Jesus.
Segundo a tradição do Evangelho segundo
Mateus, ser cristão é reconhecer Jesus como Messias e seguí-lo observando seu
ensinamento.[2]
Entretanto, a salvação não depende única e exclusivamente disso, mas depende da
prática do amor ao próximo, do serviço aos pobres: vestir o nu, visitar o
preso, socorrer o faminto, assistir ao enfermo, acolher o estrangeiro.[3]
No Evangelho segundo Marcos, ser
cristão é crer em Jesus como o Messias, Filho de Deus.[4]
Estar disposto a deixar tudo e segui-lo é uma condição para ser seu discípulo.
Seguir Jesus significa assumir sua práxis de acolhimento e serviço aos que são
considerados os últimos.[5]
Na tradição lucana, o cristão é
aquele que crê em Jesus, escuta sua palavra e a põe em prática.[6] E
a prática principal é saber usar de misericórdia e se fazer próximo de quem
está caído, necessitado.[7]
Na literatura joanina, ser cristão
é crer em Jesus e guardar sua palavra,[8]
mas a identidade de discípulos dEle só pode ser perfeitamente testemunhada por
meio da vivência do amor.[9] E
quem não é capaz de amar seu irmão não pode provar que ama verdadeiramente a
Deus.[10]
Gosto também da Carta de Tiago,
quando diz “a religião pura e sem mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste
nisto: socorrer os órfãos e as viúvas em suas tribulações e guardar-se livre da
corrupção do mundo”, e também “a fé, se não tiver obras, está completamente morta”,[11]
pois indica que ser cristão está relacionado a mais do que um discurso, está
ligado a uma vivência concreta, fruto da fé que se acolheu no coração e
professou pelos lábios.[12]
Essas referências do Novo
Testamento nos ajudam a perceber que ser cristão não é carregar um rótulo, ou simplesmente
praticar certos atos litúrgicos na Igreja, ou apresentar um discurso moral
religioso tradicional, ou apresentar uma imagem de pessoa piedosa. Ser cristão
é uma vida baseada nos valores fundamentais do ensinamento de Jesus: no amor,
no serviço, na misericórdia, na justiça, na defesa da dignidade da vida humana.
Por isso, quando vejo pessoas
elogiando certos políticos como modelos, como “verdadeiros cristãos”, mas que esses
mesmos políticos são os que promovem a xenofobia contra imigrantes e fecham
suas fronteiras para os refugiados de regiões em conflito, que defendem a ideia
de que “bandido bom é bandido morto”, que discriminam as pessoas por sua
condição sexual ou crença religiosa, fico imaginando qual o critério usado para
afirmar que essas pessoas são “bons cristãos”. Parece-me que não é o critério
do Evangelho.
Já faz um bom tempo que percebo
que o discurso religioso muitas vezes é condicionado por nossa visão cultural
de como deveria ser o mundo. Selecionamos o que interessa e acabamos
descartando o essencial: o amor. Precisamos ter muito cuidado para não
manipularmos o discurso religioso em vista de impor aos outros o nosso
interesse político ou a nossa visão de mundo como sendo a única válida e “boa”,
pois isso significa instrumentalizar a fé das pessoas, deturpá-la, utilizando
uma má-fé que deixará danos profundos na verdadeira mensagem cristã que é de
“vida em plenitude”.[13]
É preciso sempre estar voltando
aos Evangelhos, sempre estar dialogando com “os sinais dos tempos”[14],
escutar o que o “Espírito diz as Igrejas”,[15]
sempre estar em atitude humilde de busca, pois não temos todas as respostas nem
conhecemos todos os desígnios de Deus. Para nós, cristãos, Jesus de Nazaré, o
Cristo de Deus, o Filho de Deus, é o nosso referencial. É preciso sempre e de
novo voltar a Ele para não nos perdermos em nossa visão limitada das coisas,
mas podermos aprender a discernir o que verdadeiramente é ser um “bom cristão”.
[1]
Ato dos Apóstolos, capítulo 11, versículo 26 (At 1,26).
[2]
Evangelho segundo Mateus, capítulo 28, versículos de 19 e 20 (Mt 28,19-20).
[3]
Evangelho segundo Mateus, capítulo 25, versículos de 34 até o 40 (Mt 28,19-20).
[4]
Evangelho segundo Marcos, capítulo 1, versículo 1 (Mc 1,1); capítulo 15,
versículo 39 (Mc 15,39).
[5]
Evangelho segundo Marcos, capítulo 2, versículos de 15 até 17 (Mc 2,15-17);
capítulo 3, versículos de 1 até o 6 (Mc 3,1-6).
[6]
Evangelho segundo Lucas, capítulo 2, versículo 19 (Lc 2,19); capítulo 8,
versículos de 19 até o 21 (Lc 8,19-21); capítulo 11, versículos 27 e 28 (Lc
11,27-28).
[7]
Evangelho segundo Lucas, capítulo 6, versículos de 36 até o 39 (Lc 6,36-39);
capítulo 7, versículos de 36 até o 50 (Lc 7,36-50); capítulo 10, versículos do
29 até 37 (Lc10,29-37); capítulo 15 (Lc 15).
[8]
Evangelho segundo João, capítulo 14, versículo 23 (Jo 14,23).
[9]
Evangelho segundo João, capítulo 13, versículos 34 e 35 (Jo 13, 34-35); capítulo
15, versículos de 12 até 14 (Jo 15,12-14).
[10]
Primeira epístola de João, capítulo 4, versículo 20 (I Jo 4,20). Recomendo ler
todo o capítulo.
[11]
Carta de Tiago capítulo 1, versículo 27 (Tg 1,27); capítulo 2, versículo 17 (Tg
2,17).
[12]
Carta de Paulo aos Romanos, capítulo 10, versículo 9 (Rm 10,9).
[13]
Evangelho segundo João, capítulo 10, versículo 10 (Jo 10,10).
[14]
Um princípio presente na reflexão do Concílio Vaticano II.
[15]
Expressão usada no livro do Apocalipse.
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