domingo, 4 de fevereiro de 2018

O “bom cristão” e o discurso político

O tema religioso está em alta nos discursos, especialmente no campo político. Uma bandeira de campanha tem sido usar a imagem de pessoa religiosa, de valores religiosos, mais especificamente, a imagem de “bom cristão” (seja católico seja evangélico) para atrair potenciais eleitores oriundos desses ambientes.
O Brasil, apesar de ser um Estado laico, é um país de cultura marcadamente religiosa e cristã. O imaginário do povo, mesmo daqueles que não mais professam a fé cristã, está marcado pelo discurso e valores da cultura cristã que ainda permeiam nosso ambiente social.
Diante desse quadro, considero esse tipo de postura perigosa, como se usar o rótulo de “bom cristão” fosse o suficiente para tornar alguém um “bom político” ou “um bom candidato” a algum cargo eletivo.
É um fato histórico que religião e política sempre tiveram relações, ora harmoniosas ora conflituosas. Essas relações são complexas, pois estão entranhadas de interesses de pessoas e de grupos, disputas de poder e de dominação ideológica, seja para tentar fazer o bem seja para buscar vantagens que beneficiem os que estão no poder. Para dar alguns exemplos quero recordar:

- No início do cristianismo, nos primeiros quatro séculos, o sistema religioso oficial (que não era o cristianismo) garantia ao Império Romano sua coesão e ao imperador era prestado culto.  O cristianismo era uma religião que estava surgindo e que não se submetia a esse sistema, mas o criticava ao negar o culto ao imperador e as divindades tradicionais, pregando um Deus diferente e a adoração somente a Ele e ao Seu Messias Jesus.
- Na idade média, a religião cristã dominava o contexto do Ocidente. Ela dava validade à autoridade dos reis (os bispos coroavam os reis) e estes sustentavam o status privilegiado da religião;
- No período dos sistemas socialistas (ou comunistas) na Europa no século passado, para eles conseguirem alcançar o poder, um dos meios utilizados foi tentar desconstruir o discurso religioso, pois esse discurso, naquele contexto, validava e dava sustentação à situação vigente, impedindo, em muitos lugares, qualquer tentativa de transformação política e social.

Diante de algumas posturas que tenho visto usando o tema religioso como argumento para justificar certas posições políticas, levanto alguns questionamentos: o que significa realmente ser cristão? O que realmente valida alguém como “bom cristão”? Ser identificado como cristão é sinônimo de ser um bom político?
O termo “cristão”, segundo o que está relatado no livro dos Atos dos Apóstolos, teria sido usado para identificar os seguidores de Jesus Cristo (Messias = ungido) pela primeira vez na comunidade de Antioquia, ao norte da Palestina.[1] Essa expressão significaria que as pessoas que acreditavam que Jesus era o Messias esperado, o Salvador, o Filho de Deus, passando a seguir os seus ensinamentos, se tornava um outro “messias”, ou seja, um outro cristo, um “ungido”, alguém que em sua vida continuava a vida e missão do Mestre Jesus.
Segundo a tradição do Evangelho segundo Mateus, ser cristão é reconhecer Jesus como Messias e seguí-lo observando seu ensinamento.[2] Entretanto, a salvação não depende única e exclusivamente disso, mas depende da prática do amor ao próximo, do serviço aos pobres: vestir o nu, visitar o preso, socorrer o faminto, assistir ao enfermo, acolher o estrangeiro.[3]
No Evangelho segundo Marcos, ser cristão é crer em Jesus como o Messias, Filho de Deus.[4] Estar disposto a deixar tudo e segui-lo é uma condição para ser seu discípulo. Seguir Jesus significa assumir sua práxis de acolhimento e serviço aos que são considerados os últimos.[5]
Na tradição lucana, o cristão é aquele que crê em Jesus, escuta sua palavra e a põe em prática.[6] E a prática principal é saber usar de misericórdia e se fazer próximo de quem está caído, necessitado.[7]
Na literatura joanina, ser cristão é crer em Jesus e guardar sua palavra,[8] mas a identidade de discípulos dEle só pode ser perfeitamente testemunhada por meio da vivência do amor.[9] E quem não é capaz de amar seu irmão não pode provar que ama verdadeiramente a Deus.[10]
Gosto também da Carta de Tiago, quando diz “a religião pura e sem mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste nisto: socorrer os órfãos e as viúvas em suas tribulações e guardar-se livre da corrupção do mundo”, e também “a fé, se não tiver obras, está completamente morta”,[11] pois indica que ser cristão está relacionado a mais do que um discurso, está ligado a uma vivência concreta, fruto da fé que se acolheu no coração e professou pelos lábios.[12]
Essas referências do Novo Testamento nos ajudam a perceber que ser cristão não é carregar um rótulo, ou simplesmente praticar certos atos litúrgicos na Igreja, ou apresentar um discurso moral religioso tradicional, ou apresentar uma imagem de pessoa piedosa. Ser cristão é uma vida baseada nos valores fundamentais do ensinamento de Jesus: no amor, no serviço, na misericórdia, na justiça, na defesa da dignidade da vida humana.
Por isso, quando vejo pessoas elogiando certos políticos como modelos, como “verdadeiros cristãos”, mas que esses mesmos políticos são os que promovem a xenofobia contra imigrantes e fecham suas fronteiras para os refugiados de regiões em conflito, que defendem a ideia de que “bandido bom é bandido morto”, que discriminam as pessoas por sua condição sexual ou crença religiosa, fico imaginando qual o critério usado para afirmar que essas pessoas são “bons cristãos”. Parece-me que não é o critério do Evangelho.
Já faz um bom tempo que percebo que o discurso religioso muitas vezes é condicionado por nossa visão cultural de como deveria ser o mundo. Selecionamos o que interessa e acabamos descartando o essencial: o amor. Precisamos ter muito cuidado para não manipularmos o discurso religioso em vista de impor aos outros o nosso interesse político ou a nossa visão de mundo como sendo a única válida e “boa”, pois isso significa instrumentalizar a fé das pessoas, deturpá-la, utilizando uma má-fé que deixará danos profundos na verdadeira mensagem cristã que é de “vida em plenitude”.[13]
É preciso sempre estar voltando aos Evangelhos, sempre estar dialogando com “os sinais dos tempos”[14], escutar o que o “Espírito diz as Igrejas”,[15] sempre estar em atitude humilde de busca, pois não temos todas as respostas nem conhecemos todos os desígnios de Deus. Para nós, cristãos, Jesus de Nazaré, o Cristo de Deus, o Filho de Deus, é o nosso referencial. É preciso sempre e de novo voltar a Ele para não nos perdermos em nossa visão limitada das coisas, mas podermos aprender a discernir o que verdadeiramente é ser um “bom cristão”.




[1] Ato dos Apóstolos, capítulo 11, versículo 26 (At 1,26).
[2] Evangelho segundo Mateus, capítulo 28, versículos de 19 e 20 (Mt 28,19-20).
[3] Evangelho segundo Mateus, capítulo 25, versículos de 34 até o 40 (Mt 28,19-20).
[4] Evangelho segundo Marcos, capítulo 1, versículo 1 (Mc 1,1); capítulo 15, versículo 39 (Mc 15,39).
[5] Evangelho segundo Marcos, capítulo 2, versículos de 15 até 17 (Mc 2,15-17); capítulo 3, versículos de 1 até o 6 (Mc 3,1-6).
[6] Evangelho segundo Lucas, capítulo 2, versículo 19 (Lc 2,19); capítulo 8, versículos de 19 até o 21 (Lc 8,19-21); capítulo 11, versículos 27 e 28 (Lc 11,27-28).
[7] Evangelho segundo Lucas, capítulo 6, versículos de 36 até o 39 (Lc 6,36-39); capítulo 7, versículos de 36 até o 50 (Lc 7,36-50); capítulo 10, versículos do 29 até 37 (Lc10,29-37); capítulo 15 (Lc 15).
[8] Evangelho segundo João, capítulo 14, versículo 23 (Jo 14,23).
[9] Evangelho segundo João, capítulo 13, versículos 34 e 35 (Jo 13, 34-35); capítulo 15, versículos de 12 até 14 (Jo 15,12-14).
[10] Primeira epístola de João, capítulo 4, versículo 20 (I Jo 4,20). Recomendo ler todo o capítulo.
[11] Carta de Tiago capítulo 1, versículo 27 (Tg 1,27); capítulo 2, versículo 17 (Tg 2,17).
[12] Carta de Paulo aos Romanos, capítulo 10, versículo 9 (Rm 10,9).
[13] Evangelho segundo João, capítulo 10, versículo 10 (Jo 10,10).
[14] Um princípio presente na reflexão do Concílio Vaticano II.
[15] Expressão usada no livro do Apocalipse.

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