domingo, 24 de junho de 2018

Alguém só é bandido se quiser! (Parte II)




Continuando nossa reflexão sobre o problema da violência e da criminalidade, vamos buscar em Jesus e nos seus seguidores algumas luzes que nos ajudem a olhar para essa realidade com uma perspectiva iluminada pelo Evangelho.
Jesus e seus discípulos viviam dentro do Império Romano num contexto de grande pobreza, injustiças e exploração. As pessoas reagiam de diversas formas a essa situação, entre essas reações temos a presença de grupos violentos, bandidos e salteadores, que procuravam por meio da violência e do crime sobreviver ao sistema do poder romano.
Jesus viva na periferia, numa região sofrida pela exploração do Império. Em sua região, na Galileia, eram comuns grupos revoltosos e bandos de salteadores que atacavam os ricos e as caravanas de comerciantes dos romanos. Jesus conviveu desde criança com tudo isso e conhecia bem essa realidade.
Jesus não entendia que essas pessoas eram bandidas porque escolheram ser. Ele também não ensinou que se é bandido ou não por uma questão de caráter. Podemos ver nos ensinamentos de Jesus uma profunda consciência do drama humano do sofrimento, da luta pela sobrevivência, das dificuldades concretas da vida que impedem as pessoas de poder viver com dignidade.
Jesus ensinou que os valores “desse mundo” (ou seja, os valores que regiam a vida das pessoas de sua época marcada pela exploração e pela violência) não podiam ser os valores de seus seguidores. Porém ele sabia que outros valores não são possíveis de ser cultivados e vividos pela consciência individual sem uma ajuda externa. Desse modo, ele forma comunidade, depois essa comunidade se torna Igreja. É criando um espaço em que se possa viver diferente, descobrir novos horizontes, cultivar e compartilhar valores éticos e morais, experimentar outra forma estar no mundo e de construir relações, que Jesus e os seus seguidores promoveram o enfrentamento desse contexto em que viviam.
Em um episódio do Evangelho, Jesus se encontrava em uma sinagoga em dia de sábado.[1] O sábado era um dia sagrado para os judeus e, por isso, não se podia fazer nenhum tipo de trabalho ou atividade nesse dia. Jesus vê um homem que tem a mão atrofiada (seca) e o chama para o meio da sinagoga, em seguida ele pergunta aos que estão presentes se é lícito ou não fazer o bem no dia de sábado. Como ninguém tem coragem de responder, pois estão com sua visão de mundo e estrutura socio-cultural marcadas por um modo de ver esse dia sagrado, Jesus cura o homem e o despede afirmando uma outra visão que deveria orientar a forma como as relações entre as pessoas deveriam acontecer. Entretanto, os guardiões do status quo se reuniram e começaram a tramar como poderiam matar Jesus porque ele estava mexendo com a atual estrutura sócio-cultural-religiosa que eles consideravam a única verdadeira e adequada para eles.
É interessante perceber, nos Evangelhos, que grupos como o dos fariseus (que questionavam e criticavam o modo como Jesus ensinava, agia e vivia) afirmavam que o povo pobre da Palestina eram pecadores por não cumprir os mandamentos da Lei de Moises como estava escrito porque eram preguiçosos, acomodados, infiéis e, por isso, estariam longe de Deus e de Sua Aliança. Porém, o fato é que o povo pobre da Palestina não podia cumprir todas as prescrições a Lei Mosaica por estarem empenhados na busca pela sobrevivência. Eles sofriam com a exploração do Império Romano, sofriam com o peso das exigências religiosas do Templo que cobrava ofertas e dízimos que também pesavam na economia das famílias pobres, sofriam com a criminalidade e violência dos grupos que iam se formando e que provocavam as autoridades romanas que os reprimiam com violência atingindo indiscriminadamente os pobres da periferia da Palestina. Há casos de vilas inteiras que foram destruídas e seus habitantes vendidos como escravos como forma de reprimir esses grupos revoltosos.[2]
Jesus, com seu grupo, apresentou outra forma de construir as relações entre as pessoas e, consequentemente, uma nova perspectiva de estrutura social. Ele mostrou para os pobres da periferia que Deus estava próximo deles, que o fato de não conseguirem cumprir todas as normas da Lei de Moisés não os afastava do amor e da bondade de Deus. A comunidade cristã revolucionou a perspectiva das estruturas de relação social ao colocar na mesma mesa, partilhando do mesmo pão, escravos e livres, pobres e ricos, homens e mulheres, pois as relações sociais nessa época não permitiam esse tipo de convivência. Essa prática dos cristãos era nova e subvertia os valores e a forma como a sociedade estava estrutura.
Também é interessante destacar como, na obra de Flávio Josefo,[3] os grupos de resistência ao Império Romano são descritos. Josefo coloca todos no “mesmo saco” classificando-os como bandidos e salteadores. Uma interpretação típica de quem se encontra em uma classe social diferente da classe social de onde nascem esses grupos e movimentos. Ele olha do ponto de vista da elite de seu tempo que vê nesses grupos uma ameaça ao seu poder, por isso os classifica todos como bandidos e criminosos. Esses grupos perturbam a ordem social que lhes é favorável, assim sendo, precisavam ser violentamente eliminados. Josefo junta grupos realmente criminosos que existiam com os movimentos de revolta contra o controle do Império Romano. Isso me recorda como hoje uma certa classe social tem disseminado um discurso parecido, criminalizando as pessoas e grupos que defendem aqueles que vivem nas periferias como se fossem “defensores de bandidos”. Colocam no “mesmo saco” os grupos e facções criminosas, que se instalaram e dominam as periferias de nossas cidades, e os defensores dos direitos humanos, as associações de moradores, movimentos sociais e movimentos contra a discriminação racial e de gênero etc. Isso se dá pela mesma causa que no tempo de Jesus: os que se beneficiam da atual situação não querem que as estruturas sociais, econômicas, políticas e religiosas sejam mexidas. É mais confortável para essa classe que as coisas se mantenham assim, por isso alimentam esse discurso na nossa cabeça e a gente acaba repetindo sem refletir: “a pessoa é bandida porque quis ser”. Desse modo, desviam nosso olhar para longe das verdadeiras causas da criminalidade e violência.
Hoje, nós que nos apresentamos como seguidores de Jesus de Nazaré, precisamos aprender com ele que o caminho de enfrentamento do crime e da violência não está em simplesmente culpar o criminoso por sua “escolha” por uma vida criminosa, mas está em mudar as estruturas que geram as condições para que pessoas se tornem criminosas.
Precisamos não nos conformar com este mundo[4] (com esta realidade que nos cerca). Precisamos ser promotores de espaços que permitam as pessoas ampliarem seus horizontes, perceberem valores diferentes dos valores do mercado capitalista, espaços que não se limitem a nossas sacristias, mas que se dirijam para as estruturas sociais que tem gerado uma distância cada vez maior entre ricos e pobres.
Não há como esperar mudança concreta em nossa realidade de violência por meio de uma simples decisão pessoal, de uma escolha moral, sem levar em conta o conjunto de fatores sociais e estruturais que estão presentes nesse processo de escolha.
Ninguém é bandido simplesmente porque quer! Se fosse assim a palavra “conversão”, tão cara ao cristianismo, cairia no vazio voluntarista de uma escolha pessoal, ao invés de ser a experiência de descoberta de um novo horizonte com outros valores que permitem a pessoa vislumbrar que uma vida diferente é possível e que vale a pena lutar por ela. E mais! Que vale a pena lutar não somente para si mesma, mas para todas as pessoas.
Desde Jesus, que comia com os pecadores, até seus seguidores com a partilha igualitária do pão ao celebrar a memória de Jesus, abriu-se um novo horizonte de vida e de valores para as pessoas, mostrando que é possível uma forma diferente de convivência, que podemos mudar uma situação que gera violência e criminalidade por meio de novas estruturas sociais que criem relações sociais mais justas, fraternas, humanas. Aprendamos com a vida e a práxis de Jesus a olhar para além das aparências e dos discursos rasos e simplistas que nos impedem de nos comprometermos com a construção de um mundo no qual todas as pessoas possam viver com dignidade, segundo o desejo de Deus que Jesus tão bem expressou: “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância”.[5]



[1] Cf. Mc 3,1-6.
[2] Um interessante estudo sobre esse contexto pode ser encontrado em STEGEMANN, E. W.; STEGEMANN, W. História social do protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2004.
[3] Flávio Josefo, ou apenas Josefo foi um historiador e apologista judaico-romano, descendente de uma linhagem de importantes sacerdotes e reis, que registrou in loco a destruição de Jerusalém, em 70 d.C., pelas tropas do imperador romano Vespasiano, comandadas por seu filho Tito, futuro imperador. As obras de Josefo fornecem um importante panorama do judaísmo no século I.
Suas duas obras mais importantes são A Guerra dos Judeus e Antiguidades Judaicas. A primeira é fonte primária para o estudo da revolta judaica contra Roma (66-70 d.C.), enquanto a segunda conta a história do mundo sob uma perspectiva judaica. Estas obras fornecem informações valiosas sobre a sociedade judaica da época, bem como sobre o período que viu a separação definitiva do cristianismo do judaísmo e as origens da dinastia flaviana, que reinou de 69 a 96 d.C.
[4] “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito.” (Rm 12,2).
[5] Cf. Jo 10,10.

domingo, 17 de junho de 2018

Alguém só é bandido se quiser! (Parte I)


Vivemos em tempos de respostas prontas para problemas complexos. Existem pessoas que realmente acreditam que alguém só é bandido porque escolheu ser bandido. Típico pensamento marcado pelo subjetivismo e pelo individualismo modernos que reduzem a realidade aos indivíduos, negando as questões sociais e de classe, como se as pessoas todas gozassem das mesmas condições e oportunidades, dos mesmos benefícios e vantagens, vivendo em um mundo e uma sociedade onde todos são iguais desde o berço.
Desse modo, a única explicação para alguém se tornar um criminoso seria sua livre escolha. A pessoa se tornaria um bandido porque assim quis. “Eu passei dificuldades na vida, mas nunca pensei em ser bandido”, afirma alguém que toma como parâmetro de medida e de análise sua vida pessoal, como se ela fosse modelo padrão para se compreender e explicar os motivos que levam alguém a se tornar um criminoso.
Essa atitude, infelizmente, é muito comum porque todos nós tendemos a partir de nós mesmo e de nossas experiências pessoais para julgar o que as outras pessoas pensam, sentem, escolhem etc.
O grave problema dessa postura é reduzir a questão da violência, da criminalidade, do crescimento dos grupos e facções criminosas, a uma simples escolha livre e consciente de cada pessoa. Partindo desse diagnóstico, a solução lógica pareceria ser simplesmente “acabar” com essas pessoas, já que elas escolheram esse caminho. Não podemos impedi-las a não ser fazendo com que essas pessoas deixem de existir. Uma vez que elas não existam mais, o problema estará resolvido. Quem sabe a “pena de morte” seja a solução!? Afinal, elas escolheram ser bandidas!
“Por que não foram estudar e se esforçaram para vencer na vida como eu?”
“Elas são pobres porque não tem coragem para trabalhar e acham mais fácil roubar.”
“Veja o caso de FULANO! Ele era catador de lixo e hoje é empresário, venceu na vida! Se ele conseguiu todos podem conseguir!”
“Se pobreza fosse causa de violência e de crime países pobres como a Índia e regiões da África seriam campeões de violência e isso não acontece.”
“Ser honesto ou não é questão de caráter, não tem nada a ver com pobreza ou classe social.”
Frases como essas são repetidas como “mantras” de sabedoria em discursos, postagens nas redes sociais, em conversas animadas em um bar ou na sacristia de nossas igrejas. Entretanto, o problema é muito mais complexo e as respostas não são tão simples assim. Eu e minha história de vida pessoal não são a “medida da verdade” que pode servir de resposta para todos. Mesmo os valores que orientam meu grupo religioso não estão livres dos limites interpretativos de meu tempo e de minha cultura para responder ao desafio que enfrentamos da violência e da criminalidade.
Sobre este tema quero deixar clara minha posição, e o que eu penso é: NÃO!!!! Uma pessoa não se torna bandida simplesmente (ou somente) porque escolheu ser! Afirmo mais ainda! Sem excluir a possibilidade da escolha, que sempre estará presente em algum nível do processo, uma pessoa entra no caminho da criminalidade por uma complexa inter-relação de fatores que não só contemplam a questão da escolha, mas que também limitam essa capacidade de escolha e até mesmo roubam-lhe essa capacidade.
Outra questão presente é que ao se falar de violência e de criminalidade temos diante de nossos olhos, geralmente, os pobres. Pensamos em assaltantes, gangues, traficantes nas periferias, mas não pensamos em crime e violência nascidos e praticados nos meios sociais dos ricos e poderosos, que geram um tipo de violência que não chama a atenção nas estatísticas policiais porque é mais sutil, porém profundamente perversa e danosa.
O interessante é que esse tipo de discurso de que se é bandido porque quer, porque é preguiçoso etc, normalmente acontece partindo dessa classe abastada e referindo-se as classes pobres, culpabilizando os pobres por sua condição de pobreza e pelo quadro de violência que estamos vendo em nossa sociedade.
Como essa temática é muito complexa e não é possível discutí-la com toda profundidade que ela mereceria em uma postagem de um blog, quero partir das frases que colocamos acima e oferecer outros elementos para nossa reflexão.

“Por que não foram estudar e se esforçaram para vencer na vida como eu?”
A educação é fundamental para abrir portas e ampliar horizontes na vida das pessoas. Todos concordam que a educação é o caminho para vencer o problema da pobreza e da violência. Entretanto, nossa estrutura social no Brasil criou um sistema educacional de “primeira classe” e de “segunda classe”. Quem tem dinheiro para colégios particulares tem acesso a uma educação de “primeira classe”. O sistema público de educação, ao qual os pobres tem acesso, vem sendo sucateado à décadas. Uma criança dentro desse sistema não tem os mesmos recursos e estímulos que as escolas particulares oferecem. Desse modo, veem-se limitadas em seu horizonte de possibilidades, de sonhos, se tornando mais vulneráveis as seduções do mundo do crime. O mundo do crime é, para essas crianças e jovens, em muitos casos, o único mundo que elas conhecem que pode lhes oferecer dinheiro, prestígio e poder. Por isso eu pergunto, será que simplesmente a pessoa escolheu ser criminosa? Será que tantos fatores não estão presentes nesse processo?

“Elas são pobres porque não tem coragem para trabalhar e acham mais fácil roubar.”
O mercado de trabalho é um mundo de possibilidades, mas também tem suas exigências para acolher a mão de obra disponível. Em um sistema no qual as pessoas não estão capacitadas, sem acesso a uma educação familiar e escolar adequadas, muitos vão sendo excluídos desse mercado. Uma economia que valoriza o mercado especulativo ao invés de investir nos processos de produção (que geram empregos de verdade!) provoca o fechamento de postos de trabalho e o desemprego aumenta rapidamente. O desespero pode levar as pessoas a escolherem o caminho do crime como uma possibilidade para sobreviver. Não adiante pegar um exemplo isolado de FULANO, quando o quadro geral é outro. O exemplo isolado, infelizmente, é uma exceção não é a regra. A regra é o espaço que se abre para a possibilidade do crime como meio de sobreviver. Outro problema é que jovens acabam entrando por esse caminho e o adotam como meio de vida, sem nem pensar em outra possibilidade, por ser o meio que lhes oferece “retorno rápido”. Isso é consequência de um conjunto de fatores que lhes fez enxergar essa forma de vida como um valor, como uma coisa “boa”, não como um problema.

“Se pobreza fosse causa de violência e de crime países pobres como a Índia e regiões da África seriam campeões de violência e isso não acontece.”
Dois pontos precisam ser esclarecidos. Primeiro, existe muita violência nesses países, entretanto, essa violência tem natureza diferente da que experimentamos aqui no Brasil. É preciso olhar as estatísticas junto com os dados sociais da pobreza, das mortes, das relações sociais de classe e gênero, aí veremos um quadro de violência infelizmente grave também nesses países. O segundo ponto passa por elementos culturais. Nesses países certos valores presentes nas relações sociais limitam alguns tipos de violência que parecem ser mais comuns entre nós. Para dar um exemplo, na Índia a religião predominante é o hinduísmo. Dentre os valores religiosos e sociais que essa religião ensina está o sistema de “castas” por meio do qual se explica porque algumas pessoas são ricas e outras pobres. Desse modo, justificam-se as desigualdades sociais por meio de um discurso religioso-cultural, promovendo um certo “conformismo” que limita a criminalidade. Nós, aqui no Brasil, não temos esse sistema.  Nossos valores são marcados pela cultura capitalista ocidental que ensina que a pessoa vale pelo que ela possui. “Consumo, logo existo!” Por isso, se quero me sentir alguém, se quero existir, preciso consumir, preciso possuir e, para isso, o crime se torna, para muitos, um meio para esse fim. Um contexto social de pobreza crescente, que exclui desse mundo de consumo milhares de pessoas, abre espaço para o caminho do crime como meio para que se possa conseguir “consumir” o que o capitalismo ensina, repetidamente pelo pesado sistema de propaganda, que é o “bom”, o que traz “felicidade”.

“Ser honesto ou não é questão de caráter, não tem nada a ver com pobreza ou classe social.”
Realmente os valores que carregamos e que orientam nossa vida passam pelo nosso caráter.  Porém, onde o nosso caráter se forma? Como ele é formado? Porque essa frase parece partir do pressuposto de que o caráter é algo que recebemos pronto, definido, pré-estabelecido. Na verdade, nosso caráter se forma dentro de uma complexa relação entre os estímulos externos que recebemos desde nossa infância (criação familiar, amigos, educação, meio de convívio social, religião, informações pelos meios de comunicação etc) e a forma como nossa estrutura subjetiva recebe, filtra, interpreta, significa, objetiva, define todos esses estímulos e os exterioriza na vida prática. É essa complexidade que nos permite entender como pessoas em situação de pobreza conseguem manter seus valores morais e, mesmo sofrendo, não seguir por um caminho de violência e de crimes. Assim como podemos entender também como pessoas ricas e abastadas abusam de seu poder exploram, roubam e geram a morte de centenas de pessoas para satisfazer sua ganância. O caráter é marcado por essa complexidade de elementos.
Uma pessoa que entra em uma vida de crime e violência não o faz por uma simples escolha moral, por uma “falta de caráter”, como se ela vivesse em uma redoma de vidro e com uma consciência clara e límpida dissesse “quero ser bandido”. Tratando especificamente dos pobres, infelizmente estes estão sujeitos ao caminho do crime e da violência por já iniciarem suas vidas em uma classe socialmente condenada à desestruturação familiar e social.[1] Estes estão mais vulneráveis por crescerem em famílias que não tem como lhes oferecer educação com qualidade, referenciais de valores, devido à prioridade da luta pela sobrevivência. Crianças crescem sem uma presença mais afetiva e efetiva dos pais que passam o dia fora tentando botar comida na mesa (na maioria das vezes somente a mãe porque o pai geralmente está ausente ou é desconhecido). Desse modo, essas crianças já crescem a mercê de todo tipo de violência que elas podem sofrer e/ou, com o tempo, aprender a causar aos outros como meio para viver.
No Novo Testamento parece que Jesus e os primeiros cristãos tinham uma perspectiva interessante sobre essa situação. Vamos continuar essa reflexão falando um pouco mais sobre isso na próxima semana!


[1] Uma análise muito interessante sobre a forma como as desigualdades sociais foram estabelecidas no Brasil e como elas tem se perpetuado pode ser lida na obra A ralé brasileira, de Jessé Souza.

domingo, 10 de junho de 2018

A saga de Maria Madalena

Cartaz do filme

Há alguns meses atrás fui assistir ao filme “Maria Madalena”.[1] Eu tinha expectativas de que a película fosse trazer alguma coisa das teorias e elementos das pesquisas sobre a figura dessa mulher tão importante na história do cristianismo nascente. Confesso que o filme não conseguiu preencher bem essas expectativas, porém ele ainda é um bom filme com muitos elementos interessantes e provocações por parte do olhar do diretor, que nos apresentam uma visão diferente sobre Maria Madalena.
Nessa postagem não pretendo dar spoliers do filme, mas comentarei algumas coisas que vi nele. Desejo compartilhar aqui algumas das minhas impressões fazendo ligação com algumas questões teológicas que considero interessantes.
A figura de Maria Madalena (ou de Magdala) despertou curiosidades e interesses em vários momentos da história. Ela é citada nos Evangelhos, em textos apócrifos, textos gnósticos e existem lendas em torno de sua pessoa. Por causa disso, muitas “teorias da conspiração” surgiram, como é o caso do que Down Brown utiliza como base para seu romance de suspense policial “O Código Da Vinci”.
Uma informação erroneamente difundida entre os cristãos é que Maria Madalena teria sido uma prostituta que foi perdoada por Jesus e, depois, se tornou sua seguidora. Entretanto, a classificação dela como prostituta foi um erro de interpretação que acabou por se tornar senso comum. Quando isso teria ocorrido não sei dizer com precisão, pois isso vem desde o início da idade média.[2]
O filme resgata o que a exegese moderna tem afirmado com tranquilidade: Maria Madalena foi uma seguidora de Jesus de Nazaré, que o acompanhou até sua morte na cruz e que se tornou a primeira testemunha de sua ressurreição. Sobre a sua vida antes do seguimento de Jesus, os evangelhos apenas dizem que Jesus a teria libertado de “sete demônios”.[3]
Contudo, o filme também traz adaptações que são próprias de uma narrativa cinematográfica para falar de como Jesus e Madalena se encontraram e de como ela se tornou sua discípula.
Vários elementos me chamaram a atenção na narrativa do filme.
Jesus conversa com Judas
Cena do filme Maria Madalena
A apresentação de Jesus como um discípulo de João Batista, conhecido pelas pessoas como um “curador”, uma espécie de mestre andarilho que ensinava e fazia curas, que batizava e chamava as pessoas à conversão, e que anunciava a vinda do Reino de Deus. Essa caracterização, a meu ver, não é o que nossa piedade religiosa costumeiramente pensa sobre Jesus, mas é bem verossímil. Basta estudar melhor o ambiente da Palestina do século I para ver que Jesus era visto como “mais um” pregador entre outros que havia em seu tempo, alimentando a esperança do povo de que Deus mudaria sua situação de opressão sob o domínio do Império Romano.
Uma diferença entre Jesus e alguns dos movimentos que existiam em seu tempo é que ele não buscava uma revolução armada, mas acreditava e ensinava que Deus poderia mudar a situação se as pessoas mudassem (conversão), pelo amor, pelo serviço, pela busca da justiça conforme o “coração” de Deus.
Os discípulos também me pareceram bem verossímeis: não entendiam bem o que Jesus ensinava, tinham dúvidas de como as coisas iriam acontecer, acreditavam num Reino fruto de um levante do povo contra os Romanos, acreditavam que Jesus seria um profeta ou o próprio messias prometido a Israel.
Agora, sobre a figura de Maria Madalena, temos uma mistura de elementos do Novo Testamento com elementos da literatura apócrifa e a interpretação do diretor. Como não temos muitas informações sobre essa personagem no texto bíblico, era de se esperar que as lacunas fossem preenchidas com outras fontes.
Batismo de Maria Madalena
Cena do filme Maria Madalena
Claramente há a presença de uma teologia feminista,[4] que é um ramo da teologia que procura resgatar a figura feminina dentro da tradição bíblica. Essa teologia faz a critica da leitura patriarcal do texto bíblico e procura identificar os elementos da Revelação que manifestam o projeto de Deus em relação às mulheres. Achei isso muito positivo, pois esse ramo da pesquisa teológica defende a tese de que Maria Madalena teria tido mais importância no cristianismo nascente do que é possível perceber nos Evangelhos. Essa pesquisa chama a atenção para o fato de alguns Evangelhos colocar Madalena como primeira testemunha da ressurreição de Jesus, pois isso vai contra a tendência da cultura patriarcal judaica que não considerava a mulher como uma pessoa autônoma, sendo ela totalmente dependente do homem. Desse modo, poderíamos supor que ela realmente teria um papel importante no cristianismo primitivo.
Ao procurar mostrar a proximidade entre Madalena e Jesus, o filme evitou acertadamente entrar nas teorias de que eles seriam um casal, de que ela teria sido companheira de Jesus, pois isso só criaria polêmica tirando a atenção dela e colocando a atenção na pessoa de Jesus. Se o objetivo é falar de Madalena, de sua história, essa perspectiva não ajudaria em nada, inclusive porque é uma teoria sem muita sustentação plausível. Porém, o filme segue alguns textos apócrifos para desenvolver sua figura como uma discípula fiel e próxima de Jesus.
Gostaria de destacar, agora, dois aspectos que não me agradaram no filme.
O primeiro aspecto, talvez consequência do uso de fontes gnósticas, é uma imagem de Jesus e de seu projeto como algo meramente espiritual, que visa atingir as pessoas no seu “coração”, sem preocupação social e política. Madalena acaba sendo apresentada como o modelo do “discípulo que entendeu” a mensagem de Jesus nessa perspectiva espiritualista da vida e da mensagem dele, enquanto os demais discípulos seriam representantes da “errônea visão” política e social do significado de Jesus.
Assim, o filme acaba caindo num maniqueísmo de extremos que não ajudam no que se refere à compreensão da mensagem do Evangelho de Jesus, além de deixar uma perspectiva negativa para a figura de Madalena (isso na perspectiva teológica de modelo de discípulo). Nesse sentido o filme acaba tendo também um tom anacrônico, pois essas perspectivas do modo como aparecem no filme se parecem mais com os problemas interpretativos atuais que enfrentamos na discussão teológica do que com os dilemas próprios da época de Jesus.
O segundo elemento é que o filme se preocupou em enfocar a história de Madalena na sua relação com Jesus como discípula, deixando de lado outros temas interessantes que poderiam ter sido tratados sobre a história dela. O filme não se interessou em aproveitar algumas teorias que afirmam que Maria Madalena teria sido uma líder e uma apóstola ativa após a páscoa de Jesus, ou a lenda que afirma que ela teria ido até o sul da França e lá teria evangelizado e vivido em uma gruta que, hoje, é um santuário dedicado a ela. Confesso que senti falta de alguns desses elementos que poderiam provocar nossa imaginação sobre essa figura singular nos Evangelhos e provocar uma boa discussão sobre o papel da mulher na comunidade cristã primitiva.
Maria Madalena
                Cena do filme Maria Madalena
Depois desse nosso comentário, minha avaliação é que esse é um bom filme. Vale a pena assisti-lo e deixar-se provocar por sua visão sobre Maria Madalena. Em uma sociedade patriarcal do século I, Maria Madalena nos aponta para um elemento profundamente revolucionário presente no cristianismo primitivo: as mulheres como membros ativos da comunidade e também como responsáveis pelo anúncio do Evangelho como missionárias.




[1] Caso haja interesse, deixo aqui a ficha técnica do filme:
·         Título original: Mary Magdalene
·         Nacionalidade: Reino Unido
·         Gêneros: Histórico, Biografia, Drama
·         Ano de produção: 2017
·         Estréia: 22 de março de 2018
·         Direção: Garth Davis
·         Roteiro: Helen Edmundson, Philippa Goslett
·         Produção: Iain Canning, Emile Sherman, Liz Watts
·         Música: Hildur Guðnadóttir, Jóhann Jóhannsson
·         Fotografia: Greig Fraser
·         Editor: Alexandre de Franceschi, Melanie Oliver
·         Direção de arte: Cristina Onori
·         Distribuição: Universal Pictures
[2] O mais provável é que tenha sido São Gregório Magno quem a considerou como uma prostituta ao identificá-la como a "pecadora" de Lucas 7,36 – 8,3. A interpretação se tornou senso comum sendo ainda difundida hoje em dia. Entretanto, a exegese moderna já comprovou que essa interpretação está errada.
[3] cf. Mc 16,9; Lc 8,2.
[4] Indico uma breve explicação sobre o tema em LIBÂNIO, J. B.; MURAD, Afonso. Introdução à teologia: perfil, enfoques e tarefas. 5ª ed. São Paulo: Loyola, p. 255-258.

domingo, 3 de junho de 2018

“Teologia Oficial” x Teologia da Libertação: um embate hermenêutico!

Concílio Ecumênico Vaticano II
Existe uma discussão no meio teológico movida por questões de compreensão e interpretação da mensagem da Revelação cristã. Ela coloca em oposição dois discursos teológicos em que temos, de um lado, uma chamada “teologia oficial”[1] que apresentaria o verdadeiro ensinamento sobre a fé cristã por acreditar-se fundamentada na Tradição e no Magistério da Igreja. No outro lado está a chamada “teologia da libertação” que seria uma reflexão teológica marginal, cheia de erros porque estaria fundamentada em uma ideologia marxistas-comunista, que desprezaria as verdades fundamentais da fé cristã para colocar no centro a luta de classes e a revolução social.
Muitas pessoas, especialmente nas redes sociais, fazem postagens com críticas à teologia da libertação em nome da “teologia oficial” que seria a verdadeira teologia. Porém, seriam as coisas assim tão claras? Seria mesmo a teologia da libertação uma falsa teologia, corruptora da fé cristã?
Eu tenho como princípio que todo discurso religioso e, consequentemente, teológico acontece dentro de um processo hermenêutico. É partindo desse princípio que quero desenvolver essa nossa conversa.
A “teologia oficial” é assim chamada por ser o discurso teológico que se tornou normativo para a comunidade de fé que é a Igreja. Ele se tornou normativo porque, após as experiências vividas e os frutos experimentados, a comunidade de fé reconheceu nele um valor que ajuda a viver de modo positivo a vida cristã. Entretanto, essa “teologia oficial” nunca foi estática, mas passou e continua passando por um processo de amadurecimento, de atualização, de revisão, de purificação, como diz o documento do Concílio Vaticano II sobre a Igreja, Lumen Gentium n. 8,[2] ao falar da própria Igreja, sendo uma teologia sempre necessitada de reforma, de revisão, porque é feita por homens e mulheres pecadores, limitados, que não são capazes de esgotar todo o conteúdo da Revelação.
Do mesmo modo, a Teologia da Libertação é um discurso teológico que passa pelo mesmo processo da “teologia oficial”. Ela propõe uma maneira de fazer teologia que parte da realidade de exclusão e de morte em que vivem milhões de pessoas, em busca de uma vivência da fé cristã que não ignore essa realidade, mas assuma uma práxis transformadora à luz da Revelação que é a fonte de toda e qualquer teologia cristã. Por causa disso, a Teologia da Libertação destaca alguns aspectos da Revelação em busca de uma práxis cristã autenticamente libertadora dentro dessa realidade injusta.
A diferença fundamental entre essas “teologias”, ao meu ver, encontra-se no fato de que a chamada “teologia oficial” é considerada a teologia normativa, ou seja, é o discurso teológico que estabelece a base do discurso de fé assumido pela Igreja como um todo, fruto de sua bagagem histórica amadurecida com as diversas experiências e teologias vividas. Já a Teologia da Libertação é um discurso que busca ligar a fé e a vida em um contexto concreto, procurando responder a uma realidade concreta a luz da Revelação cristã.
Ambas as teologias, dentro de um processo contínuo de reflexão e interpretação, estão em constante evolução, com acertos e erros, em um amadurecimento contínuo. Porém, não posso deixar de destacar que a Teologia da Libertação oferece uma importante contribuição para o universo do pensamento teológico, pois ela deu destaque para a pessoa do pobre e para a realidade da pobreza dentro da reflexão teológica, oferecendo um princípio hermenêutico que procura partir da vida concreta, buscando lê-la em diálogo com a Revelação, e isso trouxe importantes avanços para o fazer teológico, inclusive enriquecendo o discurso da “teologia oficial” com novas perspectivas.
Assim sendo, acho estranho certos discursos que atacam a Teologia da Libertação, pois ao ouvi-los ou lê-los eles me soam como clichês que são repetidos por pessoas que nunca leram textos importantes produzidos por essa corrente teológica. Apenas repetem estereótipos sem nenhum conteúdo significativo, ou repetem teólogos críticos à Teologia da Libertação, “representantes” da “teologia oficial”, simplesmente para ter uma autoridade que sustente sua posição, mas eles mesmos não conhecem nada de verdade sobre o assunto.
Acredito que esse tipo de postura não contribui em nada para a teologia como um todo.
O debate teológico sempre fez parte da vida da Igreja. Os Concílios e Sínodos ocorridos no decorrer da história estão marcados por embates teológicos que permitiram a reflexão sobre a Revelação se desenvolver. Uma característica interessante é que várias coisas foram ajustadas, corrigidas e revogadas com o passar do tempo, fruto desse saudável (mesmo que nem sempre tranquilo) embate entre diferentes correntes teológicas.
Acredito que o debate deve continuar, faz parte de toda e qualquer ciência. Entretanto, não posso admitir um debate superficial, movido por argumentos rasos sem conhecimento de causa. O discurso teológico oficial possui elementos que precisam e devem ser criticados para que possa continuar se desenvolvendo, assim como a Teologia da Libertação, enquanto corrente teológica nascida na América Latina, mas parte da grande tradição teológica da Igreja, também precisa ser criticada para que possa corrigir-se e avançar.
Ambas “teologias” fazem parte de um processo hermenêutico que busca compreender e meios para viver a Revelação de Deus em Jesus Cristo, fundamento da nossa fé cristã. Cada qual segue princípios metodológicos que hora são comuns ora são próprios. Qual a melhor? Para mim não há melhor, o que há são caminhos. Sou, por formação, muito mais simpático à proposta metodológica da Teologia da Libertação, entretanto, sei que ela, enquanto uma corrente teológica entre outras, não esgota as possibilidades de reflexão e de respostas que buscamos por meio da teologia.
Quero convidar você a ler e se aprofundar sobre as diversas abordagens teológicas que existem. Aqui tratei somente da Teologia da Libertação colocando-a em paralelo com a chamada “teologia oficial”. Entretanto, existem várias correntes teológicas que desenvolvem sua reflexão a partir de várias perspectivas.[3] Para citar algumas temos: a teologia existencial, a teologia política, a teologia da história, a teologia da secularização, entre outras. Todas elas estão procurando descobrir como a Revelação pode ser resposta significativa para os homens e mulheres do nosso tempo.
Portanto, vamos ler, vamos estudar, vamos conhecer, somente depois disso, vamos debater, vamos nos posicionar, vamos “teologar” sobre tudo isso. Assim poderemos contribuir de maneira significativa com o pensamento teológico.




[1] Utilizo esse termo entre aspas e com iniciais em minúsculo porque entendo que não existe uma “teologia oficial”, o que existe é Teologia com suas correntes. Em meio a essas correntes há um discurso oficial, sustentado pelo Magistério da Igreja, que tem por finalidade conservar os fundamentos da fé cristã, mas não é uma corrente em si mesmo, pois ele vai assumindo com o passar do tempo elementos das várias correntes teológicas na medida em que a reflexão teológica avança. Há também a Teologia da Libertação que é uma corrente teológica entre outras e, por isso a escrevo com iniciais maiúsculas, por ser ela identificável de forma específica.
[2] “[...] a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação.” (LG 8).
[3] Indico um excelente livro: GIBELLINI, Rosino. A Teologia do século XX. 2.ed. Trad. João Paixão Neto. São Paulo: Loyola, 2002.

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