domingo, 17 de junho de 2018

Alguém só é bandido se quiser! (Parte I)


Vivemos em tempos de respostas prontas para problemas complexos. Existem pessoas que realmente acreditam que alguém só é bandido porque escolheu ser bandido. Típico pensamento marcado pelo subjetivismo e pelo individualismo modernos que reduzem a realidade aos indivíduos, negando as questões sociais e de classe, como se as pessoas todas gozassem das mesmas condições e oportunidades, dos mesmos benefícios e vantagens, vivendo em um mundo e uma sociedade onde todos são iguais desde o berço.
Desse modo, a única explicação para alguém se tornar um criminoso seria sua livre escolha. A pessoa se tornaria um bandido porque assim quis. “Eu passei dificuldades na vida, mas nunca pensei em ser bandido”, afirma alguém que toma como parâmetro de medida e de análise sua vida pessoal, como se ela fosse modelo padrão para se compreender e explicar os motivos que levam alguém a se tornar um criminoso.
Essa atitude, infelizmente, é muito comum porque todos nós tendemos a partir de nós mesmo e de nossas experiências pessoais para julgar o que as outras pessoas pensam, sentem, escolhem etc.
O grave problema dessa postura é reduzir a questão da violência, da criminalidade, do crescimento dos grupos e facções criminosas, a uma simples escolha livre e consciente de cada pessoa. Partindo desse diagnóstico, a solução lógica pareceria ser simplesmente “acabar” com essas pessoas, já que elas escolheram esse caminho. Não podemos impedi-las a não ser fazendo com que essas pessoas deixem de existir. Uma vez que elas não existam mais, o problema estará resolvido. Quem sabe a “pena de morte” seja a solução!? Afinal, elas escolheram ser bandidas!
“Por que não foram estudar e se esforçaram para vencer na vida como eu?”
“Elas são pobres porque não tem coragem para trabalhar e acham mais fácil roubar.”
“Veja o caso de FULANO! Ele era catador de lixo e hoje é empresário, venceu na vida! Se ele conseguiu todos podem conseguir!”
“Se pobreza fosse causa de violência e de crime países pobres como a Índia e regiões da África seriam campeões de violência e isso não acontece.”
“Ser honesto ou não é questão de caráter, não tem nada a ver com pobreza ou classe social.”
Frases como essas são repetidas como “mantras” de sabedoria em discursos, postagens nas redes sociais, em conversas animadas em um bar ou na sacristia de nossas igrejas. Entretanto, o problema é muito mais complexo e as respostas não são tão simples assim. Eu e minha história de vida pessoal não são a “medida da verdade” que pode servir de resposta para todos. Mesmo os valores que orientam meu grupo religioso não estão livres dos limites interpretativos de meu tempo e de minha cultura para responder ao desafio que enfrentamos da violência e da criminalidade.
Sobre este tema quero deixar clara minha posição, e o que eu penso é: NÃO!!!! Uma pessoa não se torna bandida simplesmente (ou somente) porque escolheu ser! Afirmo mais ainda! Sem excluir a possibilidade da escolha, que sempre estará presente em algum nível do processo, uma pessoa entra no caminho da criminalidade por uma complexa inter-relação de fatores que não só contemplam a questão da escolha, mas que também limitam essa capacidade de escolha e até mesmo roubam-lhe essa capacidade.
Outra questão presente é que ao se falar de violência e de criminalidade temos diante de nossos olhos, geralmente, os pobres. Pensamos em assaltantes, gangues, traficantes nas periferias, mas não pensamos em crime e violência nascidos e praticados nos meios sociais dos ricos e poderosos, que geram um tipo de violência que não chama a atenção nas estatísticas policiais porque é mais sutil, porém profundamente perversa e danosa.
O interessante é que esse tipo de discurso de que se é bandido porque quer, porque é preguiçoso etc, normalmente acontece partindo dessa classe abastada e referindo-se as classes pobres, culpabilizando os pobres por sua condição de pobreza e pelo quadro de violência que estamos vendo em nossa sociedade.
Como essa temática é muito complexa e não é possível discutí-la com toda profundidade que ela mereceria em uma postagem de um blog, quero partir das frases que colocamos acima e oferecer outros elementos para nossa reflexão.

“Por que não foram estudar e se esforçaram para vencer na vida como eu?”
A educação é fundamental para abrir portas e ampliar horizontes na vida das pessoas. Todos concordam que a educação é o caminho para vencer o problema da pobreza e da violência. Entretanto, nossa estrutura social no Brasil criou um sistema educacional de “primeira classe” e de “segunda classe”. Quem tem dinheiro para colégios particulares tem acesso a uma educação de “primeira classe”. O sistema público de educação, ao qual os pobres tem acesso, vem sendo sucateado à décadas. Uma criança dentro desse sistema não tem os mesmos recursos e estímulos que as escolas particulares oferecem. Desse modo, veem-se limitadas em seu horizonte de possibilidades, de sonhos, se tornando mais vulneráveis as seduções do mundo do crime. O mundo do crime é, para essas crianças e jovens, em muitos casos, o único mundo que elas conhecem que pode lhes oferecer dinheiro, prestígio e poder. Por isso eu pergunto, será que simplesmente a pessoa escolheu ser criminosa? Será que tantos fatores não estão presentes nesse processo?

“Elas são pobres porque não tem coragem para trabalhar e acham mais fácil roubar.”
O mercado de trabalho é um mundo de possibilidades, mas também tem suas exigências para acolher a mão de obra disponível. Em um sistema no qual as pessoas não estão capacitadas, sem acesso a uma educação familiar e escolar adequadas, muitos vão sendo excluídos desse mercado. Uma economia que valoriza o mercado especulativo ao invés de investir nos processos de produção (que geram empregos de verdade!) provoca o fechamento de postos de trabalho e o desemprego aumenta rapidamente. O desespero pode levar as pessoas a escolherem o caminho do crime como uma possibilidade para sobreviver. Não adiante pegar um exemplo isolado de FULANO, quando o quadro geral é outro. O exemplo isolado, infelizmente, é uma exceção não é a regra. A regra é o espaço que se abre para a possibilidade do crime como meio de sobreviver. Outro problema é que jovens acabam entrando por esse caminho e o adotam como meio de vida, sem nem pensar em outra possibilidade, por ser o meio que lhes oferece “retorno rápido”. Isso é consequência de um conjunto de fatores que lhes fez enxergar essa forma de vida como um valor, como uma coisa “boa”, não como um problema.

“Se pobreza fosse causa de violência e de crime países pobres como a Índia e regiões da África seriam campeões de violência e isso não acontece.”
Dois pontos precisam ser esclarecidos. Primeiro, existe muita violência nesses países, entretanto, essa violência tem natureza diferente da que experimentamos aqui no Brasil. É preciso olhar as estatísticas junto com os dados sociais da pobreza, das mortes, das relações sociais de classe e gênero, aí veremos um quadro de violência infelizmente grave também nesses países. O segundo ponto passa por elementos culturais. Nesses países certos valores presentes nas relações sociais limitam alguns tipos de violência que parecem ser mais comuns entre nós. Para dar um exemplo, na Índia a religião predominante é o hinduísmo. Dentre os valores religiosos e sociais que essa religião ensina está o sistema de “castas” por meio do qual se explica porque algumas pessoas são ricas e outras pobres. Desse modo, justificam-se as desigualdades sociais por meio de um discurso religioso-cultural, promovendo um certo “conformismo” que limita a criminalidade. Nós, aqui no Brasil, não temos esse sistema.  Nossos valores são marcados pela cultura capitalista ocidental que ensina que a pessoa vale pelo que ela possui. “Consumo, logo existo!” Por isso, se quero me sentir alguém, se quero existir, preciso consumir, preciso possuir e, para isso, o crime se torna, para muitos, um meio para esse fim. Um contexto social de pobreza crescente, que exclui desse mundo de consumo milhares de pessoas, abre espaço para o caminho do crime como meio para que se possa conseguir “consumir” o que o capitalismo ensina, repetidamente pelo pesado sistema de propaganda, que é o “bom”, o que traz “felicidade”.

“Ser honesto ou não é questão de caráter, não tem nada a ver com pobreza ou classe social.”
Realmente os valores que carregamos e que orientam nossa vida passam pelo nosso caráter.  Porém, onde o nosso caráter se forma? Como ele é formado? Porque essa frase parece partir do pressuposto de que o caráter é algo que recebemos pronto, definido, pré-estabelecido. Na verdade, nosso caráter se forma dentro de uma complexa relação entre os estímulos externos que recebemos desde nossa infância (criação familiar, amigos, educação, meio de convívio social, religião, informações pelos meios de comunicação etc) e a forma como nossa estrutura subjetiva recebe, filtra, interpreta, significa, objetiva, define todos esses estímulos e os exterioriza na vida prática. É essa complexidade que nos permite entender como pessoas em situação de pobreza conseguem manter seus valores morais e, mesmo sofrendo, não seguir por um caminho de violência e de crimes. Assim como podemos entender também como pessoas ricas e abastadas abusam de seu poder exploram, roubam e geram a morte de centenas de pessoas para satisfazer sua ganância. O caráter é marcado por essa complexidade de elementos.
Uma pessoa que entra em uma vida de crime e violência não o faz por uma simples escolha moral, por uma “falta de caráter”, como se ela vivesse em uma redoma de vidro e com uma consciência clara e límpida dissesse “quero ser bandido”. Tratando especificamente dos pobres, infelizmente estes estão sujeitos ao caminho do crime e da violência por já iniciarem suas vidas em uma classe socialmente condenada à desestruturação familiar e social.[1] Estes estão mais vulneráveis por crescerem em famílias que não tem como lhes oferecer educação com qualidade, referenciais de valores, devido à prioridade da luta pela sobrevivência. Crianças crescem sem uma presença mais afetiva e efetiva dos pais que passam o dia fora tentando botar comida na mesa (na maioria das vezes somente a mãe porque o pai geralmente está ausente ou é desconhecido). Desse modo, essas crianças já crescem a mercê de todo tipo de violência que elas podem sofrer e/ou, com o tempo, aprender a causar aos outros como meio para viver.
No Novo Testamento parece que Jesus e os primeiros cristãos tinham uma perspectiva interessante sobre essa situação. Vamos continuar essa reflexão falando um pouco mais sobre isso na próxima semana!


[1] Uma análise muito interessante sobre a forma como as desigualdades sociais foram estabelecidas no Brasil e como elas tem se perpetuado pode ser lida na obra A ralé brasileira, de Jessé Souza.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagens anteriores

DESTAQUE DO MÊS

“Teologia Oficial” x Teologia da Libertação: um embate hermenêutico!

Concílio Ecumênico Vaticano II Existe uma discussão no meio teológico movida por questões de compreensão e interpretação da mensagem d...