Vivemos em tempos de respostas
prontas para problemas complexos. Existem pessoas que realmente acreditam que
alguém só é bandido porque escolheu ser bandido. Típico pensamento marcado pelo
subjetivismo e pelo individualismo modernos que reduzem a realidade aos
indivíduos, negando as questões sociais e de classe, como se as pessoas todas
gozassem das mesmas condições e oportunidades, dos mesmos benefícios e
vantagens, vivendo em um mundo e uma sociedade onde todos são iguais desde o
berço.
Desse modo, a única explicação
para alguém se tornar um criminoso seria sua livre escolha. A pessoa se
tornaria um bandido porque assim quis. “Eu passei dificuldades na vida, mas
nunca pensei em ser bandido”, afirma alguém que toma como parâmetro de medida e
de análise sua vida pessoal, como se ela fosse modelo padrão para se
compreender e explicar os motivos que levam alguém a se tornar um criminoso.
Essa atitude, infelizmente, é
muito comum porque todos nós tendemos a partir de nós mesmo e de nossas
experiências pessoais para julgar o que as outras pessoas pensam, sentem,
escolhem etc.
O grave problema dessa postura é
reduzir a questão da violência, da criminalidade, do crescimento dos grupos e
facções criminosas, a uma simples escolha livre e consciente de cada pessoa.
Partindo desse diagnóstico, a solução lógica pareceria ser simplesmente
“acabar” com essas pessoas, já que elas escolheram esse caminho. Não podemos
impedi-las a não ser fazendo com que essas pessoas deixem de existir. Uma vez
que elas não existam mais, o problema estará resolvido. Quem sabe a “pena de
morte” seja a solução!? Afinal, elas escolheram ser bandidas!
“Por que não foram estudar e se
esforçaram para vencer na vida como eu?”
“Elas são pobres porque não tem
coragem para trabalhar e acham mais fácil roubar.”
“Veja o caso de FULANO! Ele era
catador de lixo e hoje é empresário, venceu na vida! Se ele conseguiu todos
podem conseguir!”
“Se pobreza fosse causa de
violência e de crime países pobres como a Índia e regiões da África seriam
campeões de violência e isso não acontece.”
“Ser honesto ou não é questão de
caráter, não tem nada a ver com pobreza ou classe social.”
Frases como essas são repetidas
como “mantras” de sabedoria em discursos, postagens nas redes sociais, em
conversas animadas em um bar ou na sacristia de nossas igrejas. Entretanto, o
problema é muito mais complexo e as respostas não são tão simples assim. Eu e
minha história de vida pessoal não são a “medida da verdade” que pode servir de
resposta para todos. Mesmo os valores que orientam meu grupo religioso não
estão livres dos limites interpretativos de meu tempo e de minha cultura para
responder ao desafio que enfrentamos da violência e da criminalidade.
Sobre este tema quero deixar
clara minha posição, e o que eu penso é: NÃO!!!! Uma pessoa não se torna
bandida simplesmente (ou somente) porque escolheu ser! Afirmo mais ainda! Sem
excluir a possibilidade da escolha, que sempre estará presente em algum nível
do processo, uma pessoa entra no caminho da criminalidade por uma complexa
inter-relação de fatores que não só contemplam a questão da escolha, mas que
também limitam essa capacidade de escolha e até mesmo roubam-lhe essa
capacidade.
Outra questão presente é que ao
se falar de violência e de criminalidade temos diante de nossos olhos,
geralmente, os pobres. Pensamos em assaltantes, gangues, traficantes nas
periferias, mas não pensamos em crime e violência nascidos e praticados nos
meios sociais dos ricos e poderosos, que geram um tipo de violência que não
chama a atenção nas estatísticas policiais porque é mais sutil, porém
profundamente perversa e danosa.
O interessante é que esse tipo
de discurso de que se é bandido porque quer, porque é preguiçoso etc,
normalmente acontece partindo dessa classe abastada e referindo-se as classes
pobres, culpabilizando os pobres por sua condição de pobreza e pelo quadro de
violência que estamos vendo em nossa sociedade.
Como essa temática é muito
complexa e não é possível discutí-la com toda profundidade que ela mereceria em
uma postagem de um blog, quero partir das frases que colocamos acima e oferecer
outros elementos para nossa reflexão.
“Por que não foram
estudar e se esforçaram para vencer na vida como eu?”
A educação é fundamental para abrir
portas e ampliar horizontes na vida das pessoas. Todos concordam que a educação
é o caminho para vencer o problema da pobreza e da violência. Entretanto, nossa
estrutura social no Brasil criou um sistema educacional de “primeira classe” e
de “segunda classe”. Quem tem dinheiro para colégios particulares tem acesso a
uma educação de “primeira classe”. O sistema público de educação, ao qual os
pobres tem acesso, vem sendo sucateado à décadas. Uma criança dentro desse
sistema não tem os mesmos recursos e estímulos que as escolas particulares
oferecem. Desse modo, veem-se limitadas em seu horizonte de possibilidades, de
sonhos, se tornando mais vulneráveis as seduções do mundo do crime. O mundo do
crime é, para essas crianças e jovens, em muitos casos, o único mundo que elas
conhecem que pode lhes oferecer dinheiro, prestígio e poder. Por isso eu
pergunto, será que simplesmente a pessoa escolheu ser criminosa? Será que
tantos fatores não estão presentes nesse processo?
“Elas são pobres
porque não tem coragem para trabalhar e acham mais fácil roubar.”
O mercado de trabalho é um mundo
de possibilidades, mas também tem suas exigências para acolher a mão de obra
disponível. Em um sistema no qual as pessoas não estão capacitadas, sem acesso
a uma educação familiar e escolar adequadas, muitos vão sendo excluídos desse
mercado. Uma economia que valoriza o mercado especulativo ao invés de investir
nos processos de produção (que geram empregos de verdade!) provoca o fechamento
de postos de trabalho e o desemprego aumenta rapidamente. O desespero pode
levar as pessoas a escolherem o caminho do crime como uma possibilidade para
sobreviver. Não adiante pegar um exemplo isolado de FULANO, quando o quadro
geral é outro. O exemplo isolado, infelizmente, é uma exceção não é a regra. A
regra é o espaço que se abre para a possibilidade do crime como meio de
sobreviver. Outro problema é que jovens acabam entrando por esse caminho e o
adotam como meio de vida, sem nem pensar em outra possibilidade, por ser o meio
que lhes oferece “retorno rápido”. Isso é consequência de um conjunto de
fatores que lhes fez enxergar essa forma de vida como um valor, como uma coisa
“boa”, não como um problema.
“Se pobreza fosse
causa de violência e de crime países pobres como a Índia e regiões da África
seriam campeões de violência e isso não acontece.”
Dois pontos precisam ser
esclarecidos. Primeiro, existe muita violência nesses países, entretanto, essa
violência tem natureza diferente da que experimentamos aqui no Brasil. É
preciso olhar as estatísticas junto com os dados sociais da pobreza, das
mortes, das relações sociais de classe e gênero, aí veremos um quadro de
violência infelizmente grave também nesses países. O segundo ponto passa por
elementos culturais. Nesses países certos valores presentes nas relações
sociais limitam alguns tipos de violência que parecem ser mais comuns entre
nós. Para dar um exemplo, na Índia a religião predominante é o hinduísmo.
Dentre os valores religiosos e sociais que essa religião ensina está o sistema
de “castas” por meio do qual se
explica porque algumas pessoas são ricas e outras pobres. Desse modo,
justificam-se as desigualdades sociais por meio de um discurso
religioso-cultural, promovendo um certo “conformismo” que limita a
criminalidade. Nós, aqui no Brasil, não temos esse sistema. Nossos valores são marcados pela cultura
capitalista ocidental que ensina que a pessoa vale pelo que ela possui.
“Consumo, logo existo!” Por isso, se quero me sentir alguém, se quero existir,
preciso consumir, preciso possuir e, para isso, o crime se torna, para muitos,
um meio para esse fim. Um contexto social de pobreza crescente, que exclui
desse mundo de consumo milhares de pessoas, abre espaço para o caminho do crime
como meio para que se possa conseguir “consumir” o que o capitalismo ensina,
repetidamente pelo pesado sistema de propaganda, que é o “bom”, o que traz
“felicidade”.
“Ser honesto ou não é
questão de caráter, não tem nada a ver com pobreza ou classe social.”
Realmente os valores que
carregamos e que orientam nossa vida passam pelo nosso caráter. Porém, onde o nosso caráter se forma? Como
ele é formado? Porque essa frase parece partir do pressuposto de que o caráter
é algo que recebemos pronto, definido, pré-estabelecido. Na verdade, nosso
caráter se forma dentro de uma complexa relação entre os estímulos externos que
recebemos desde nossa infância (criação familiar, amigos, educação, meio de
convívio social, religião, informações pelos meios de comunicação etc) e a
forma como nossa estrutura subjetiva recebe, filtra, interpreta, significa,
objetiva, define todos esses estímulos e os exterioriza na vida prática. É essa
complexidade que nos permite entender como pessoas em situação de pobreza
conseguem manter seus valores morais e, mesmo sofrendo, não seguir por um
caminho de violência e de crimes. Assim como podemos entender também como
pessoas ricas e abastadas abusam de seu poder exploram, roubam e geram a morte
de centenas de pessoas para satisfazer sua ganância. O caráter é marcado por
essa complexidade de elementos.
Uma pessoa que entra em uma vida
de crime e violência não o faz por uma simples escolha moral, por uma “falta de
caráter”, como se ela vivesse em uma redoma de vidro e com uma consciência clara
e límpida dissesse “quero ser bandido”. Tratando especificamente dos pobres, infelizmente
estes estão sujeitos ao caminho do crime e da violência por já iniciarem suas
vidas em uma classe socialmente condenada à desestruturação familiar e social.[1]
Estes estão mais vulneráveis por crescerem em famílias que não tem como lhes
oferecer educação com qualidade, referenciais de valores, devido à prioridade
da luta pela sobrevivência. Crianças crescem sem uma presença mais afetiva e
efetiva dos pais que passam o dia fora tentando botar comida na mesa (na
maioria das vezes somente a mãe porque o pai geralmente está ausente ou é
desconhecido). Desse modo, essas crianças já crescem a mercê de todo tipo de
violência que elas podem sofrer e/ou, com o tempo, aprender a causar aos outros
como meio para viver.
No Novo Testamento parece que
Jesus e os primeiros cristãos tinham uma perspectiva interessante sobre essa
situação. Vamos continuar essa reflexão falando um pouco mais sobre isso na
próxima semana!
[1]
Uma análise muito interessante sobre a forma como as desigualdades sociais
foram estabelecidas no Brasil e como elas tem se perpetuado pode ser lida na
obra A ralé brasileira, de Jessé Souza.
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