Cartaz do filme |
Há alguns meses atrás fui assistir
ao filme “Maria Madalena”.[1] Eu
tinha expectativas de que a película fosse trazer alguma coisa das teorias e
elementos das pesquisas sobre a figura dessa mulher tão importante na história
do cristianismo nascente. Confesso que o filme não conseguiu preencher bem essas
expectativas, porém ele ainda é um bom filme com muitos elementos interessantes
e provocações por parte do olhar do diretor, que nos apresentam uma visão
diferente sobre Maria Madalena.
Nessa postagem não pretendo dar spoliers do filme, mas comentarei
algumas coisas que vi nele. Desejo compartilhar aqui algumas das minhas
impressões fazendo ligação com algumas questões teológicas que considero
interessantes.
A figura de Maria Madalena (ou de Magdala) despertou curiosidades e
interesses em vários momentos da história. Ela é citada nos Evangelhos, em
textos apócrifos, textos gnósticos e existem lendas em torno de sua pessoa. Por
causa disso, muitas “teorias da conspiração” surgiram, como é o caso do que Down
Brown utiliza como base para seu romance de suspense policial “O Código Da
Vinci”.
Uma informação erroneamente
difundida entre os cristãos é que Maria Madalena teria sido uma prostituta que
foi perdoada por Jesus e, depois, se tornou sua seguidora. Entretanto, a
classificação dela como prostituta foi um erro de interpretação que acabou por
se tornar senso comum. Quando isso teria ocorrido não sei dizer com precisão,
pois isso vem desde o início da idade média.[2]
O filme resgata o que a exegese
moderna tem afirmado com tranquilidade: Maria Madalena foi uma seguidora de
Jesus de Nazaré, que o acompanhou até sua morte na cruz e que se tornou a
primeira testemunha de sua ressurreição. Sobre a sua vida antes do seguimento
de Jesus, os evangelhos apenas dizem que Jesus a teria libertado de “sete
demônios”.[3]
Contudo, o filme também traz
adaptações que são próprias de uma narrativa cinematográfica para falar de como
Jesus e Madalena se encontraram e de como ela se tornou sua discípula.
Vários elementos me chamaram a
atenção na narrativa do filme.
Jesus conversa com Judas Cena do filme Maria Madalena |
A apresentação de Jesus como um
discípulo de João Batista, conhecido pelas pessoas como um “curador”, uma
espécie de mestre andarilho que ensinava e fazia curas, que batizava e chamava
as pessoas à conversão, e que anunciava a vinda do Reino de Deus. Essa
caracterização, a meu ver, não é o que nossa piedade religiosa costumeiramente
pensa sobre Jesus, mas é bem verossímil. Basta estudar melhor o ambiente da
Palestina do século I para ver que Jesus era visto como “mais um” pregador
entre outros que havia em seu tempo, alimentando a esperança do povo de que
Deus mudaria sua situação de opressão sob o domínio do Império Romano.
Uma diferença entre Jesus e
alguns dos movimentos que existiam em seu tempo é que ele não buscava uma
revolução armada, mas acreditava e ensinava que Deus poderia mudar a situação
se as pessoas mudassem (conversão), pelo amor, pelo serviço, pela busca da
justiça conforme o “coração” de Deus.
Os discípulos também me
pareceram bem verossímeis: não entendiam bem o que Jesus ensinava, tinham
dúvidas de como as coisas iriam acontecer, acreditavam num Reino fruto de um levante
do povo contra os Romanos, acreditavam que Jesus seria um profeta ou o próprio
messias prometido a Israel.
Agora, sobre a figura de Maria
Madalena, temos uma mistura de elementos do Novo Testamento com elementos da
literatura apócrifa e a interpretação do diretor. Como não temos muitas
informações sobre essa personagem no texto bíblico, era de se esperar que as
lacunas fossem preenchidas com outras fontes.
Batismo de Maria Madalena Cena do filme Maria Madalena |
Claramente há a presença de uma
teologia feminista,[4]
que é um ramo da teologia que procura resgatar a figura feminina dentro da
tradição bíblica. Essa teologia faz a critica da leitura patriarcal do texto
bíblico e procura identificar os elementos da Revelação que manifestam o
projeto de Deus em relação às mulheres. Achei isso muito positivo, pois esse
ramo da pesquisa teológica defende a tese de que Maria Madalena teria tido mais
importância no cristianismo nascente do que é possível perceber nos Evangelhos.
Essa pesquisa chama a atenção para o fato de alguns Evangelhos colocar Madalena
como primeira testemunha da ressurreição de Jesus, pois isso vai contra a
tendência da cultura patriarcal judaica que não considerava a mulher como uma
pessoa autônoma, sendo ela totalmente dependente do homem. Desse modo,
poderíamos supor que ela realmente teria um papel importante no cristianismo
primitivo.
Ao procurar mostrar a
proximidade entre Madalena e Jesus, o filme evitou acertadamente entrar nas
teorias de que eles seriam um casal, de que ela teria sido companheira de Jesus,
pois isso só criaria polêmica tirando a atenção dela e colocando a atenção na
pessoa de Jesus. Se o objetivo é falar de Madalena, de sua história, essa
perspectiva não ajudaria em nada, inclusive porque é uma teoria sem muita
sustentação plausível. Porém, o filme segue alguns textos apócrifos para
desenvolver sua figura como uma discípula fiel e próxima de Jesus.
Gostaria de destacar, agora,
dois aspectos que não me agradaram no filme.
O primeiro aspecto, talvez
consequência do uso de fontes gnósticas, é uma imagem de Jesus e de seu projeto
como algo meramente espiritual, que visa atingir as pessoas no seu “coração”,
sem preocupação social e política. Madalena acaba sendo apresentada como o
modelo do “discípulo que entendeu” a mensagem de Jesus nessa perspectiva
espiritualista da vida e da mensagem dele, enquanto os demais discípulos seriam
representantes da “errônea visão” política e social do significado de Jesus.
Assim, o filme acaba caindo num
maniqueísmo de extremos que não ajudam no que se refere à compreensão da
mensagem do Evangelho de Jesus, além de deixar uma perspectiva negativa para a
figura de Madalena (isso na perspectiva teológica de modelo de discípulo).
Nesse sentido o filme acaba tendo também um tom anacrônico, pois essas
perspectivas do modo como aparecem no filme se parecem mais com os problemas
interpretativos atuais que enfrentamos na discussão teológica do que com os
dilemas próprios da época de Jesus.
O segundo elemento é que o filme
se preocupou em enfocar a história de Madalena na sua relação com Jesus como
discípula, deixando de lado outros temas interessantes que poderiam ter sido
tratados sobre a história dela. O filme não se interessou em aproveitar algumas
teorias que afirmam que Maria Madalena teria sido uma líder e uma apóstola
ativa após a páscoa de Jesus, ou a lenda que afirma que ela teria ido até o sul
da França e lá teria evangelizado e vivido em uma gruta que, hoje, é um
santuário dedicado a ela. Confesso que senti falta de alguns desses elementos
que poderiam provocar nossa imaginação sobre essa figura singular nos
Evangelhos e provocar uma boa discussão sobre o papel da mulher na comunidade
cristã primitiva.
Maria Madalena Cena do filme Maria Madalena |
[1]
Caso haja interesse, deixo aqui a ficha técnica do filme:
·
Título original: Mary Magdalene
·
Nacionalidade: Reino Unido
·
Gêneros: Histórico, Biografia, Drama
·
Ano de produção: 2017
·
Estréia: 22 de março de 2018
·
Direção: Garth Davis
·
Roteiro: Helen Edmundson, Philippa
Goslett
·
Produção: Iain Canning, Emile
Sherman, Liz Watts
·
Música: Hildur Guðnadóttir, Jóhann
Jóhannsson
·
Fotografia: Greig Fraser
·
Editor: Alexandre de Franceschi,
Melanie Oliver
·
Direção de arte: Cristina Onori
·
Distribuição: Universal Pictures
[2]
O mais provável é que tenha sido São Gregório Magno quem a considerou como uma
prostituta ao identificá-la como a "pecadora" de Lucas 7,36 – 8,3. A
interpretação se tornou senso comum sendo ainda difundida hoje em dia.
Entretanto, a exegese moderna já comprovou que essa interpretação está errada.
[3]
cf. Mc 16,9; Lc 8,2.
[4]
Indico uma breve explicação sobre o tema em LIBÂNIO, J. B.; MURAD, Afonso. Introdução à teologia: perfil, enfoques
e tarefas. 5ª ed. São
Paulo: Loyola, p. 255-258.
Nenhum comentário:
Postar um comentário