domingo, 10 de junho de 2018

A saga de Maria Madalena

Cartaz do filme

Há alguns meses atrás fui assistir ao filme “Maria Madalena”.[1] Eu tinha expectativas de que a película fosse trazer alguma coisa das teorias e elementos das pesquisas sobre a figura dessa mulher tão importante na história do cristianismo nascente. Confesso que o filme não conseguiu preencher bem essas expectativas, porém ele ainda é um bom filme com muitos elementos interessantes e provocações por parte do olhar do diretor, que nos apresentam uma visão diferente sobre Maria Madalena.
Nessa postagem não pretendo dar spoliers do filme, mas comentarei algumas coisas que vi nele. Desejo compartilhar aqui algumas das minhas impressões fazendo ligação com algumas questões teológicas que considero interessantes.
A figura de Maria Madalena (ou de Magdala) despertou curiosidades e interesses em vários momentos da história. Ela é citada nos Evangelhos, em textos apócrifos, textos gnósticos e existem lendas em torno de sua pessoa. Por causa disso, muitas “teorias da conspiração” surgiram, como é o caso do que Down Brown utiliza como base para seu romance de suspense policial “O Código Da Vinci”.
Uma informação erroneamente difundida entre os cristãos é que Maria Madalena teria sido uma prostituta que foi perdoada por Jesus e, depois, se tornou sua seguidora. Entretanto, a classificação dela como prostituta foi um erro de interpretação que acabou por se tornar senso comum. Quando isso teria ocorrido não sei dizer com precisão, pois isso vem desde o início da idade média.[2]
O filme resgata o que a exegese moderna tem afirmado com tranquilidade: Maria Madalena foi uma seguidora de Jesus de Nazaré, que o acompanhou até sua morte na cruz e que se tornou a primeira testemunha de sua ressurreição. Sobre a sua vida antes do seguimento de Jesus, os evangelhos apenas dizem que Jesus a teria libertado de “sete demônios”.[3]
Contudo, o filme também traz adaptações que são próprias de uma narrativa cinematográfica para falar de como Jesus e Madalena se encontraram e de como ela se tornou sua discípula.
Vários elementos me chamaram a atenção na narrativa do filme.
Jesus conversa com Judas
Cena do filme Maria Madalena
A apresentação de Jesus como um discípulo de João Batista, conhecido pelas pessoas como um “curador”, uma espécie de mestre andarilho que ensinava e fazia curas, que batizava e chamava as pessoas à conversão, e que anunciava a vinda do Reino de Deus. Essa caracterização, a meu ver, não é o que nossa piedade religiosa costumeiramente pensa sobre Jesus, mas é bem verossímil. Basta estudar melhor o ambiente da Palestina do século I para ver que Jesus era visto como “mais um” pregador entre outros que havia em seu tempo, alimentando a esperança do povo de que Deus mudaria sua situação de opressão sob o domínio do Império Romano.
Uma diferença entre Jesus e alguns dos movimentos que existiam em seu tempo é que ele não buscava uma revolução armada, mas acreditava e ensinava que Deus poderia mudar a situação se as pessoas mudassem (conversão), pelo amor, pelo serviço, pela busca da justiça conforme o “coração” de Deus.
Os discípulos também me pareceram bem verossímeis: não entendiam bem o que Jesus ensinava, tinham dúvidas de como as coisas iriam acontecer, acreditavam num Reino fruto de um levante do povo contra os Romanos, acreditavam que Jesus seria um profeta ou o próprio messias prometido a Israel.
Agora, sobre a figura de Maria Madalena, temos uma mistura de elementos do Novo Testamento com elementos da literatura apócrifa e a interpretação do diretor. Como não temos muitas informações sobre essa personagem no texto bíblico, era de se esperar que as lacunas fossem preenchidas com outras fontes.
Batismo de Maria Madalena
Cena do filme Maria Madalena
Claramente há a presença de uma teologia feminista,[4] que é um ramo da teologia que procura resgatar a figura feminina dentro da tradição bíblica. Essa teologia faz a critica da leitura patriarcal do texto bíblico e procura identificar os elementos da Revelação que manifestam o projeto de Deus em relação às mulheres. Achei isso muito positivo, pois esse ramo da pesquisa teológica defende a tese de que Maria Madalena teria tido mais importância no cristianismo nascente do que é possível perceber nos Evangelhos. Essa pesquisa chama a atenção para o fato de alguns Evangelhos colocar Madalena como primeira testemunha da ressurreição de Jesus, pois isso vai contra a tendência da cultura patriarcal judaica que não considerava a mulher como uma pessoa autônoma, sendo ela totalmente dependente do homem. Desse modo, poderíamos supor que ela realmente teria um papel importante no cristianismo primitivo.
Ao procurar mostrar a proximidade entre Madalena e Jesus, o filme evitou acertadamente entrar nas teorias de que eles seriam um casal, de que ela teria sido companheira de Jesus, pois isso só criaria polêmica tirando a atenção dela e colocando a atenção na pessoa de Jesus. Se o objetivo é falar de Madalena, de sua história, essa perspectiva não ajudaria em nada, inclusive porque é uma teoria sem muita sustentação plausível. Porém, o filme segue alguns textos apócrifos para desenvolver sua figura como uma discípula fiel e próxima de Jesus.
Gostaria de destacar, agora, dois aspectos que não me agradaram no filme.
O primeiro aspecto, talvez consequência do uso de fontes gnósticas, é uma imagem de Jesus e de seu projeto como algo meramente espiritual, que visa atingir as pessoas no seu “coração”, sem preocupação social e política. Madalena acaba sendo apresentada como o modelo do “discípulo que entendeu” a mensagem de Jesus nessa perspectiva espiritualista da vida e da mensagem dele, enquanto os demais discípulos seriam representantes da “errônea visão” política e social do significado de Jesus.
Assim, o filme acaba caindo num maniqueísmo de extremos que não ajudam no que se refere à compreensão da mensagem do Evangelho de Jesus, além de deixar uma perspectiva negativa para a figura de Madalena (isso na perspectiva teológica de modelo de discípulo). Nesse sentido o filme acaba tendo também um tom anacrônico, pois essas perspectivas do modo como aparecem no filme se parecem mais com os problemas interpretativos atuais que enfrentamos na discussão teológica do que com os dilemas próprios da época de Jesus.
O segundo elemento é que o filme se preocupou em enfocar a história de Madalena na sua relação com Jesus como discípula, deixando de lado outros temas interessantes que poderiam ter sido tratados sobre a história dela. O filme não se interessou em aproveitar algumas teorias que afirmam que Maria Madalena teria sido uma líder e uma apóstola ativa após a páscoa de Jesus, ou a lenda que afirma que ela teria ido até o sul da França e lá teria evangelizado e vivido em uma gruta que, hoje, é um santuário dedicado a ela. Confesso que senti falta de alguns desses elementos que poderiam provocar nossa imaginação sobre essa figura singular nos Evangelhos e provocar uma boa discussão sobre o papel da mulher na comunidade cristã primitiva.
Maria Madalena
                Cena do filme Maria Madalena
Depois desse nosso comentário, minha avaliação é que esse é um bom filme. Vale a pena assisti-lo e deixar-se provocar por sua visão sobre Maria Madalena. Em uma sociedade patriarcal do século I, Maria Madalena nos aponta para um elemento profundamente revolucionário presente no cristianismo primitivo: as mulheres como membros ativos da comunidade e também como responsáveis pelo anúncio do Evangelho como missionárias.




[1] Caso haja interesse, deixo aqui a ficha técnica do filme:
·         Título original: Mary Magdalene
·         Nacionalidade: Reino Unido
·         Gêneros: Histórico, Biografia, Drama
·         Ano de produção: 2017
·         Estréia: 22 de março de 2018
·         Direção: Garth Davis
·         Roteiro: Helen Edmundson, Philippa Goslett
·         Produção: Iain Canning, Emile Sherman, Liz Watts
·         Música: Hildur Guðnadóttir, Jóhann Jóhannsson
·         Fotografia: Greig Fraser
·         Editor: Alexandre de Franceschi, Melanie Oliver
·         Direção de arte: Cristina Onori
·         Distribuição: Universal Pictures
[2] O mais provável é que tenha sido São Gregório Magno quem a considerou como uma prostituta ao identificá-la como a "pecadora" de Lucas 7,36 – 8,3. A interpretação se tornou senso comum sendo ainda difundida hoje em dia. Entretanto, a exegese moderna já comprovou que essa interpretação está errada.
[3] cf. Mc 16,9; Lc 8,2.
[4] Indico uma breve explicação sobre o tema em LIBÂNIO, J. B.; MURAD, Afonso. Introdução à teologia: perfil, enfoques e tarefas. 5ª ed. São Paulo: Loyola, p. 255-258.

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