domingo, 24 de junho de 2018

Alguém só é bandido se quiser! (Parte II)




Continuando nossa reflexão sobre o problema da violência e da criminalidade, vamos buscar em Jesus e nos seus seguidores algumas luzes que nos ajudem a olhar para essa realidade com uma perspectiva iluminada pelo Evangelho.
Jesus e seus discípulos viviam dentro do Império Romano num contexto de grande pobreza, injustiças e exploração. As pessoas reagiam de diversas formas a essa situação, entre essas reações temos a presença de grupos violentos, bandidos e salteadores, que procuravam por meio da violência e do crime sobreviver ao sistema do poder romano.
Jesus viva na periferia, numa região sofrida pela exploração do Império. Em sua região, na Galileia, eram comuns grupos revoltosos e bandos de salteadores que atacavam os ricos e as caravanas de comerciantes dos romanos. Jesus conviveu desde criança com tudo isso e conhecia bem essa realidade.
Jesus não entendia que essas pessoas eram bandidas porque escolheram ser. Ele também não ensinou que se é bandido ou não por uma questão de caráter. Podemos ver nos ensinamentos de Jesus uma profunda consciência do drama humano do sofrimento, da luta pela sobrevivência, das dificuldades concretas da vida que impedem as pessoas de poder viver com dignidade.
Jesus ensinou que os valores “desse mundo” (ou seja, os valores que regiam a vida das pessoas de sua época marcada pela exploração e pela violência) não podiam ser os valores de seus seguidores. Porém ele sabia que outros valores não são possíveis de ser cultivados e vividos pela consciência individual sem uma ajuda externa. Desse modo, ele forma comunidade, depois essa comunidade se torna Igreja. É criando um espaço em que se possa viver diferente, descobrir novos horizontes, cultivar e compartilhar valores éticos e morais, experimentar outra forma estar no mundo e de construir relações, que Jesus e os seus seguidores promoveram o enfrentamento desse contexto em que viviam.
Em um episódio do Evangelho, Jesus se encontrava em uma sinagoga em dia de sábado.[1] O sábado era um dia sagrado para os judeus e, por isso, não se podia fazer nenhum tipo de trabalho ou atividade nesse dia. Jesus vê um homem que tem a mão atrofiada (seca) e o chama para o meio da sinagoga, em seguida ele pergunta aos que estão presentes se é lícito ou não fazer o bem no dia de sábado. Como ninguém tem coragem de responder, pois estão com sua visão de mundo e estrutura socio-cultural marcadas por um modo de ver esse dia sagrado, Jesus cura o homem e o despede afirmando uma outra visão que deveria orientar a forma como as relações entre as pessoas deveriam acontecer. Entretanto, os guardiões do status quo se reuniram e começaram a tramar como poderiam matar Jesus porque ele estava mexendo com a atual estrutura sócio-cultural-religiosa que eles consideravam a única verdadeira e adequada para eles.
É interessante perceber, nos Evangelhos, que grupos como o dos fariseus (que questionavam e criticavam o modo como Jesus ensinava, agia e vivia) afirmavam que o povo pobre da Palestina eram pecadores por não cumprir os mandamentos da Lei de Moises como estava escrito porque eram preguiçosos, acomodados, infiéis e, por isso, estariam longe de Deus e de Sua Aliança. Porém, o fato é que o povo pobre da Palestina não podia cumprir todas as prescrições a Lei Mosaica por estarem empenhados na busca pela sobrevivência. Eles sofriam com a exploração do Império Romano, sofriam com o peso das exigências religiosas do Templo que cobrava ofertas e dízimos que também pesavam na economia das famílias pobres, sofriam com a criminalidade e violência dos grupos que iam se formando e que provocavam as autoridades romanas que os reprimiam com violência atingindo indiscriminadamente os pobres da periferia da Palestina. Há casos de vilas inteiras que foram destruídas e seus habitantes vendidos como escravos como forma de reprimir esses grupos revoltosos.[2]
Jesus, com seu grupo, apresentou outra forma de construir as relações entre as pessoas e, consequentemente, uma nova perspectiva de estrutura social. Ele mostrou para os pobres da periferia que Deus estava próximo deles, que o fato de não conseguirem cumprir todas as normas da Lei de Moisés não os afastava do amor e da bondade de Deus. A comunidade cristã revolucionou a perspectiva das estruturas de relação social ao colocar na mesma mesa, partilhando do mesmo pão, escravos e livres, pobres e ricos, homens e mulheres, pois as relações sociais nessa época não permitiam esse tipo de convivência. Essa prática dos cristãos era nova e subvertia os valores e a forma como a sociedade estava estrutura.
Também é interessante destacar como, na obra de Flávio Josefo,[3] os grupos de resistência ao Império Romano são descritos. Josefo coloca todos no “mesmo saco” classificando-os como bandidos e salteadores. Uma interpretação típica de quem se encontra em uma classe social diferente da classe social de onde nascem esses grupos e movimentos. Ele olha do ponto de vista da elite de seu tempo que vê nesses grupos uma ameaça ao seu poder, por isso os classifica todos como bandidos e criminosos. Esses grupos perturbam a ordem social que lhes é favorável, assim sendo, precisavam ser violentamente eliminados. Josefo junta grupos realmente criminosos que existiam com os movimentos de revolta contra o controle do Império Romano. Isso me recorda como hoje uma certa classe social tem disseminado um discurso parecido, criminalizando as pessoas e grupos que defendem aqueles que vivem nas periferias como se fossem “defensores de bandidos”. Colocam no “mesmo saco” os grupos e facções criminosas, que se instalaram e dominam as periferias de nossas cidades, e os defensores dos direitos humanos, as associações de moradores, movimentos sociais e movimentos contra a discriminação racial e de gênero etc. Isso se dá pela mesma causa que no tempo de Jesus: os que se beneficiam da atual situação não querem que as estruturas sociais, econômicas, políticas e religiosas sejam mexidas. É mais confortável para essa classe que as coisas se mantenham assim, por isso alimentam esse discurso na nossa cabeça e a gente acaba repetindo sem refletir: “a pessoa é bandida porque quis ser”. Desse modo, desviam nosso olhar para longe das verdadeiras causas da criminalidade e violência.
Hoje, nós que nos apresentamos como seguidores de Jesus de Nazaré, precisamos aprender com ele que o caminho de enfrentamento do crime e da violência não está em simplesmente culpar o criminoso por sua “escolha” por uma vida criminosa, mas está em mudar as estruturas que geram as condições para que pessoas se tornem criminosas.
Precisamos não nos conformar com este mundo[4] (com esta realidade que nos cerca). Precisamos ser promotores de espaços que permitam as pessoas ampliarem seus horizontes, perceberem valores diferentes dos valores do mercado capitalista, espaços que não se limitem a nossas sacristias, mas que se dirijam para as estruturas sociais que tem gerado uma distância cada vez maior entre ricos e pobres.
Não há como esperar mudança concreta em nossa realidade de violência por meio de uma simples decisão pessoal, de uma escolha moral, sem levar em conta o conjunto de fatores sociais e estruturais que estão presentes nesse processo de escolha.
Ninguém é bandido simplesmente porque quer! Se fosse assim a palavra “conversão”, tão cara ao cristianismo, cairia no vazio voluntarista de uma escolha pessoal, ao invés de ser a experiência de descoberta de um novo horizonte com outros valores que permitem a pessoa vislumbrar que uma vida diferente é possível e que vale a pena lutar por ela. E mais! Que vale a pena lutar não somente para si mesma, mas para todas as pessoas.
Desde Jesus, que comia com os pecadores, até seus seguidores com a partilha igualitária do pão ao celebrar a memória de Jesus, abriu-se um novo horizonte de vida e de valores para as pessoas, mostrando que é possível uma forma diferente de convivência, que podemos mudar uma situação que gera violência e criminalidade por meio de novas estruturas sociais que criem relações sociais mais justas, fraternas, humanas. Aprendamos com a vida e a práxis de Jesus a olhar para além das aparências e dos discursos rasos e simplistas que nos impedem de nos comprometermos com a construção de um mundo no qual todas as pessoas possam viver com dignidade, segundo o desejo de Deus que Jesus tão bem expressou: “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância”.[5]



[1] Cf. Mc 3,1-6.
[2] Um interessante estudo sobre esse contexto pode ser encontrado em STEGEMANN, E. W.; STEGEMANN, W. História social do protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2004.
[3] Flávio Josefo, ou apenas Josefo foi um historiador e apologista judaico-romano, descendente de uma linhagem de importantes sacerdotes e reis, que registrou in loco a destruição de Jerusalém, em 70 d.C., pelas tropas do imperador romano Vespasiano, comandadas por seu filho Tito, futuro imperador. As obras de Josefo fornecem um importante panorama do judaísmo no século I.
Suas duas obras mais importantes são A Guerra dos Judeus e Antiguidades Judaicas. A primeira é fonte primária para o estudo da revolta judaica contra Roma (66-70 d.C.), enquanto a segunda conta a história do mundo sob uma perspectiva judaica. Estas obras fornecem informações valiosas sobre a sociedade judaica da época, bem como sobre o período que viu a separação definitiva do cristianismo do judaísmo e as origens da dinastia flaviana, que reinou de 69 a 96 d.C.
[4] “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito.” (Rm 12,2).
[5] Cf. Jo 10,10.

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