Continuando nossa reflexão sobre
o problema da violência e da criminalidade, vamos buscar em Jesus e nos seus
seguidores algumas luzes que nos ajudem a olhar para essa realidade com uma
perspectiva iluminada pelo Evangelho.
Jesus e seus discípulos viviam
dentro do Império Romano num contexto de grande pobreza, injustiças e
exploração. As pessoas reagiam de diversas formas a essa situação, entre essas
reações temos a presença de grupos violentos, bandidos e salteadores, que
procuravam por meio da violência e do crime sobreviver ao sistema do poder
romano.
Jesus viva na periferia, numa
região sofrida pela exploração do Império. Em sua região, na Galileia, eram
comuns grupos revoltosos e bandos de salteadores que atacavam os ricos e as
caravanas de comerciantes dos romanos. Jesus conviveu desde criança com tudo
isso e conhecia bem essa realidade.
Jesus não entendia que essas
pessoas eram bandidas porque escolheram ser. Ele também não ensinou que se é
bandido ou não por uma questão de caráter. Podemos ver nos ensinamentos de
Jesus uma profunda consciência do drama humano do sofrimento, da luta pela
sobrevivência, das dificuldades concretas da vida que impedem as pessoas de
poder viver com dignidade.
Jesus ensinou que os valores
“desse mundo” (ou seja, os valores que regiam a vida das pessoas de sua época
marcada pela exploração e pela violência) não podiam ser os valores de seus
seguidores. Porém ele sabia que outros valores não são possíveis de ser
cultivados e vividos pela consciência individual sem uma ajuda externa. Desse
modo, ele forma comunidade, depois essa comunidade se torna Igreja. É criando
um espaço em que se possa viver diferente, descobrir novos horizontes, cultivar
e compartilhar valores éticos e morais, experimentar outra forma estar no mundo
e de construir relações, que Jesus e os seus seguidores promoveram o
enfrentamento desse contexto em que viviam.
Em um episódio do Evangelho,
Jesus se encontrava em uma sinagoga em dia de sábado.[1] O
sábado era um dia sagrado para os judeus e, por isso, não se podia fazer nenhum
tipo de trabalho ou atividade nesse dia. Jesus vê um homem que tem a mão
atrofiada (seca) e o chama para o meio da sinagoga, em seguida ele pergunta aos
que estão presentes se é lícito ou não fazer o bem no dia de sábado. Como
ninguém tem coragem de responder, pois estão com sua visão de mundo e estrutura
socio-cultural marcadas por um modo de ver esse dia sagrado, Jesus cura o homem
e o despede afirmando uma outra visão que deveria orientar a forma como as
relações entre as pessoas deveriam acontecer. Entretanto, os guardiões do status quo se reuniram e começaram a
tramar como poderiam matar Jesus porque ele estava mexendo com a atual
estrutura sócio-cultural-religiosa que eles consideravam a única verdadeira e
adequada para eles.
É interessante perceber, nos
Evangelhos, que grupos como o dos fariseus (que questionavam e criticavam o
modo como Jesus ensinava, agia e vivia) afirmavam que o povo pobre da Palestina
eram pecadores por não cumprir os mandamentos da Lei de Moises como estava
escrito porque eram preguiçosos, acomodados, infiéis e, por isso, estariam
longe de Deus e de Sua Aliança. Porém, o fato é que o povo pobre da Palestina
não podia cumprir todas as prescrições a Lei Mosaica por estarem empenhados na
busca pela sobrevivência. Eles sofriam com a exploração do Império Romano,
sofriam com o peso das exigências religiosas do Templo que cobrava ofertas e
dízimos que também pesavam na economia das famílias pobres, sofriam com a
criminalidade e violência dos grupos que iam se formando e que provocavam as
autoridades romanas que os reprimiam com violência atingindo
indiscriminadamente os pobres da periferia da Palestina. Há casos de vilas
inteiras que foram destruídas e seus habitantes vendidos como escravos como
forma de reprimir esses grupos revoltosos.[2]
Jesus, com seu grupo, apresentou
outra forma de construir as relações entre as pessoas e, consequentemente, uma
nova perspectiva de estrutura social. Ele mostrou para os pobres da periferia
que Deus estava próximo deles, que o fato de não conseguirem cumprir todas as
normas da Lei de Moisés não os afastava do amor e da bondade de Deus. A
comunidade cristã revolucionou a perspectiva das estruturas de relação social
ao colocar na mesma mesa, partilhando do mesmo pão, escravos e livres, pobres e
ricos, homens e mulheres, pois as relações sociais nessa época não permitiam
esse tipo de convivência. Essa prática dos cristãos era nova e subvertia os valores
e a forma como a sociedade estava estrutura.
Também é interessante destacar
como, na obra de Flávio Josefo,[3] os
grupos de resistência ao Império Romano são descritos. Josefo coloca todos no
“mesmo saco” classificando-os como bandidos e salteadores. Uma interpretação
típica de quem se encontra em uma classe social diferente da classe social de
onde nascem esses grupos e movimentos. Ele olha do ponto de vista da elite de
seu tempo que vê nesses grupos uma ameaça ao seu poder, por isso os classifica
todos como bandidos e criminosos. Esses grupos perturbam a ordem social que
lhes é favorável, assim sendo, precisavam ser violentamente eliminados. Josefo
junta grupos realmente criminosos que existiam com os movimentos de revolta
contra o controle do Império Romano. Isso me recorda como hoje uma certa classe
social tem disseminado um discurso parecido, criminalizando as pessoas e grupos
que defendem aqueles que vivem nas periferias como se fossem “defensores de
bandidos”. Colocam no “mesmo saco” os grupos e facções criminosas, que se
instalaram e dominam as periferias de nossas cidades, e os defensores dos
direitos humanos, as associações de moradores, movimentos sociais e movimentos
contra a discriminação racial e de gênero etc. Isso se dá pela mesma causa que
no tempo de Jesus: os que se beneficiam da atual situação não querem que as
estruturas sociais, econômicas, políticas e religiosas sejam mexidas. É mais
confortável para essa classe que as coisas se mantenham assim, por isso
alimentam esse discurso na nossa cabeça e a gente acaba repetindo sem refletir:
“a pessoa é bandida porque quis ser”. Desse modo, desviam nosso olhar para
longe das verdadeiras causas da criminalidade e violência.
Hoje, nós que nos apresentamos
como seguidores de Jesus de Nazaré, precisamos aprender com ele que o caminho
de enfrentamento do crime e da violência não está em simplesmente culpar o
criminoso por sua “escolha” por uma vida criminosa, mas está em mudar as
estruturas que geram as condições para que pessoas se tornem criminosas.
Precisamos não nos conformar com
este mundo[4]
(com esta realidade que nos cerca). Precisamos ser promotores de espaços que
permitam as pessoas ampliarem seus horizontes, perceberem valores diferentes
dos valores do mercado capitalista, espaços que não se limitem a nossas
sacristias, mas que se dirijam para as estruturas sociais que tem gerado uma
distância cada vez maior entre ricos e pobres.
Não há como esperar mudança
concreta em nossa realidade de violência por meio de uma simples decisão
pessoal, de uma escolha moral, sem levar em conta o conjunto de fatores sociais
e estruturais que estão presentes nesse processo de escolha.
Ninguém é bandido simplesmente
porque quer! Se fosse assim a palavra “conversão”, tão cara ao cristianismo,
cairia no vazio voluntarista de uma escolha pessoal, ao invés de ser a
experiência de descoberta de um novo horizonte com outros valores que permitem
a pessoa vislumbrar que uma vida diferente é possível e que vale a pena lutar
por ela. E mais! Que vale a pena lutar não somente para si mesma, mas para
todas as pessoas.
Desde Jesus, que comia com os
pecadores, até seus seguidores com a partilha igualitária do pão ao celebrar a
memória de Jesus, abriu-se um novo horizonte de vida e de valores para as
pessoas, mostrando que é possível uma forma diferente de convivência, que
podemos mudar uma situação que gera violência e criminalidade por meio de novas
estruturas sociais que criem relações sociais mais justas, fraternas, humanas.
Aprendamos com a vida e a práxis de Jesus a olhar para além das aparências e
dos discursos rasos e simplistas que nos impedem de nos comprometermos com a
construção de um mundo no qual todas as pessoas possam viver com dignidade,
segundo o desejo de Deus que Jesus tão bem expressou: “Eu vim para que todos
tenham vida, e a tenham em abundância”.[5]
[1]
Cf. Mc 3,1-6.
[2]
Um interessante estudo sobre esse contexto pode ser encontrado em STEGEMANN, E.
W.; STEGEMANN, W. História social do protocristianismo: os primórdios no
judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. São Leopoldo: Sinodal;
São Paulo: Paulus, 2004.
[3]
Flávio Josefo, ou apenas Josefo foi um historiador e apologista judaico-romano,
descendente de uma linhagem de importantes sacerdotes e reis, que registrou in loco a destruição de Jerusalém, em 70
d.C., pelas tropas do imperador romano Vespasiano, comandadas por seu filho
Tito, futuro imperador. As obras de Josefo fornecem um importante panorama do
judaísmo no século I.
Suas duas obras mais importantes são A Guerra dos Judeus e Antiguidades
Judaicas. A primeira é fonte primária para o estudo da revolta judaica contra
Roma (66-70 d.C.), enquanto a segunda conta a história do mundo sob uma
perspectiva judaica. Estas obras fornecem informações valiosas sobre a
sociedade judaica da época, bem como sobre o período que viu a separação
definitiva do cristianismo do judaísmo e as origens da dinastia flaviana, que
reinou de 69 a 96 d.C.
[4]
“Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso
espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o
que lhe agrada e o que é perfeito.” (Rm 12,2).
[5]
Cf. Jo 10,10.
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