domingo, 27 de maio de 2018

O Espírito Santo prometido no Evangelho Segundo João (Parte II)



Continuando nossa reflexão sobre o Espírito Santo no Discurso de Despedida de Jesus no IV (Quarto) Evangelho,[1] vamos ver mais duas expressões usadas pelo evangelista.

O Espírito da Verdade
Entre os textos utilizados para falar sobre o Paráclito, encontramos alguns que também utilizam a expressão “Espírito da Verdade”, que pode ser vista, num primeiro momento, como uma espécie de qualificação do Paráclito.[2] Porém, esta forma de se dirigir ao Espírito Santo oferece mais elementos que nos ajudam a melhor perceber como o IV Evangelho apresenta este Espírito.
O Espírito Santo é o Espírito da Verdade porque Ele a comunica e a ela conduz (cf. Jo 16,13). Esta verdade é o próprio Jesus (cf. Jo 14,6) e o Espírito é a força da verdade.
Sendo o Espírito o amor leal manifestado pelo Pai no Filho, este mesmo Espírito manifestará a Verdade sobre Deus que revelou a força do seu amor (cf. Jo 3,16) e sobre o ser humano, fazendo-o conhecer o projeto de Deus sobre a humanidade e o capacitando para realizá-lo. Esta verdade fará o ser humano livre (cf. Jo 8,31-32) e o Espírito continuará o processo de libertação iniciado com Jesus.
Somente aqueles que receberam Jesus e com Ele permaneceram serão capazes de receber o Espírito da Verdade (Jo 14,17; 15,26-27).
O Espírito da Verdade permite o conhecimento da pessoa de Jesus e de sua mensagem e, deste modo, oferece a chave de leitura da história como dialética entre o “mundo” e o projeto de Deus a partir da morte e exaltação de Jesus, que abriu uma nova etapa da história.
No texto de Jo 16,13-15, falando sobre a vinda do Espírito da Verdade, o IV Evangelho coloca quatro funções do Espírito: falar, anunciar, guiar e glorificar.
A função de falar não se refere à função oral, mas ao conteúdo do que foi dito. O Espírito será o “porta-voz” de Jesus ausente na vida da comunidade. Ele falará aquilo que ouvir de Jesus ou sobre o próprio Jesus. Esta função manifesta mais uma vez a dimensão profética do Espírito.
O Espírito “[...] anunciará as coisas futuras [...]”. Esta função não se refere à ideia de que Ele “revelará novidades”, mas indica que ao anunciar a mensagem recebida, realizará o conhecimento de Jesus e o que Ele significa para cada época, revelando o sentido cristológico[3] de toda história da salvação. Também aqui encontramos a dimensão profética do Espírito que revela o sentido escatológico[4] inerente à palavra e a obra de Cristo.
O Espírito da Verdade “guia na verdade”. A verdade é o próprio Jesus, revelação definitiva. O Espírito guiará para a compreensão e penetração nesta verdade. Ele fará com que a mensagem de salvação de Jesus penetre no coração dos crentes.
A função de glorificar aparece como fruto das outras funções ou atividades. O Espírito realiza a mediação para a glorificação de Jesus que se dá pela manifestação de sua unidade com o Pai, a afirmação de sua divindade e do caráter divino de sua missão e revelação. Fazendo-nos conhecer quem é Jesus e sua mensagem salvífica, o Espírito glorifica Jesus.

Espírito Santo
Em Jo 14,26, encontramos este termo junto com o termo Paráclito, como uma espécie de aposto para explicar quem é o Paráclito.
Dentro do discurso de despedida este é o único momento em que aparece esta expressão, ao contrário do que se vê no restante dos textos do IV Evangelho.
Entretanto, é importante sua colocação aqui, pois deixa claro quem é o Paráclito e reafirma a divindade e missão do Espírito. Ele é santo, isto é, separado, porque é divino e, ao mesmo tempo, tem a missão de santificar, separar, consagrar os homens, retirando-os das trevas para a luz, assemelhando-os a Jesus,  o Consagrado do Pai (cf. Jo 6,69).
Podemos concluir, por meio de toda essa reflexão, que o Espírito Santo é quem garante, por sua ação na comunidade, a presença atualizada de Jesus e de sua mensagem. Ele oferece a garantia de que a comunidade será fiel a sua missão de continuadora da obra de Jesus na história, ensinando, guiando, anunciando, testemunhando e fazendo recordar em cada momento aquilo que Ele recebe do  próprio Jesus (cf.Jo 14,26; 15,26s; 16,8.13-15).


[1] Toda a argumentação desenvolvida nesse estudo se apoia na seguinte bibliografia:
BÍLBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém: revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.
DOOD, Charles H.. Interpretação do Quarto Evangelho. Teológica/Paulus, São Paulo: 2003, pp. 283-301.
DUSSANT, E. Cothenet L.; FORT, P. Le; PRIGENT, P. Os escritos de São João e a Epístola aos Hebreus. Paulinas, São Paulo: 1988, pp 108-114.
MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de São João. Paulinas, São Paulo: 1989. (Grande Comentário Bíblico)
MATEOS, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João. Paulinas, São Paulo: 1989.
SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João. Santuário, Aparecida: 1994, pp. 239-274.
[2] Em alguns comentários não se distingue “Paráclito” e “Espírito da Verdade”, mas são apresentados de forma mesclada. Aqui se tenta separar para destacar o aspecto da “verdade” que foi atribuída ao “Espírito” para designá-lo, entretanto, algumas das reflexões já estão contempladas no comentário anterior sobre o Paráclito. Por isso, procuraremos nos restringir àquilo que ainda não fora aprofundado.
[3] Termo usado para falar de Cristo e de sua pessoa. Deriva da palavra Cristologia que é o estudo da pessoa de Jesus Cristo.
[4] Termo derivado da palavra Escatologia que é o estudo das realidades últimas: o fim da história, juízo, salvação e condenação etc.

domingo, 20 de maio de 2018

O Espírito Santo prometido no Evangelho Segundo João (Parte I)



Celebrando a Festa de Pentecostes, olhamos de modo particular para a terceira pessoa da Trindade: o Espírito Santo. Gostaria de convidar você, cara leitora e caro leitor, a fazermos um pequeno estudo sobre como o Espírito Santo nos é apresentado no Discurso de Despedida de Jesus (Jo 14 – 17) no IV (Quarto) Evangelho.[1]
Neste conjunto de textos, três expressões aparecem para falar sobre o Espírito Santo: Paráclito (Jo 14,16.26; 15,26; 16,7), Espírito da Verdade (Jo 14,17; 15,26; 16,13) e Espírito Santo (Jo 14,26). Essas expressões estão cheias de significado que precisamos aprofundar um pouco mais dentro dos textos para compreender melhor seu conteúdo.

O Paráclito
O termo “paráclito” é portador de vários significados, sendo, por isso, intraduzível. Porém, ele evoca as ideias de: defensor (advogado), intercessor e consolador.
Filologicamente, o “paráclito” é “alguém chamado para que esteja no lado/ para que assista”. Na primeira carta de São João este termo aparece com o sentido de intercessor (I Jo 2,1).
Fica evidente a variedade de sentido que a expressão “paráclito” carrega. Entretanto, no IV Evangelho, precisamos aprofundar sobre quem é o “paráclito” e qual sua atividade.
Em Jo 14,16, podemos perceber que o Paráclito é um dom, pois é dado aos discípulos. Porém, não é um dom qualquer, mas um dom divino, pois o verbo “dar” utilizado neste texto é o mesmo presente em outros textos tanto do Antigo como do Novo Testamento para referir-se aos dons divinos concedidos por Deus a alguém em alguma ocasião. Portanto, este Paráclito não pode ser obtido com as próprias forças, mas somente pode ser recebido como dom gratuito da parte de Deus. Este dom será concedido pela mediação de Jesus diante do Pai: “... e eu rogarei ao Pai e ele vos dará...”, ficando evidente que a comunidade recebe este dom somente através de Jesus.
Ainda em Jo 14,16, encontramos outra informação fundamental: Jesus chama o Paráclito de “outro Paráclito”. Diante desta expressão podemos perguntar: quem é o primeiro Paráclito? E a resposta é: Jesus, pois Ele é quem defende, protege, consola e intercede por seus discípulos e, com sua morte, eles ficarão sem esta assistência (cf. Jo 17,6.9.11-12.14-19). Desta resposta podemos chegar a duas conclusões prévias:

1 - o “outro Paráclito” vem como continuador e intérprete da mensagem de Jesus (aprofundaremos este elemento mais adiante);
2 - este texto revela uma dependência e subordinação do papel do “outro Paráclito” em relação a Jesus (aqui temos uma concentração cristológica, ou seja, na pessoa de Jesus).

Em Jo 14,26, o IV Evangelho identifica o Paráclito como sendo o Espírito Santo. Mais uma vez o texto reforça a ideia de que este Paráclito será enviado pelo pai em nome de Jesus. Ou seja, o Pai e o Filho são o princípio da missão do Paráclito (cf. também Jo 16,7).
Encontramos, também, neste texto, duas atividades que deverão ser realizadas por este Espírito Paráclito: ensinar e recordar.
O verbo ensinar é um verbo de revelação. Entretanto, o Paráclito não revelará “coisas novas”, mas deverá ensinar tudo o que foi dito por Jesus. Ele não falará a partir de si mesmo, mas ensinará recordando e explicando a mensagem de Jesus, ou seja, o ensino do Espírito é o ensino do próprio Jesus.[2] O Paráclito realizará esta obra por meio de uma atividade interior no coração dos discípulos (cf. I Jo 2,20.27). Também o verbo ensinar aponta para a dimensão didática do Paráclito, característica esta fundamental dentro do IV Evangelho.
A atividade de recordar faz paralelo com a de ensinar, pois o Paráclito ensinará fazendo recordar tudo o que Jesus disse e fez. Neste caso, fazer lembrar é um ensinamento. Por um lado, essas recordações os auxiliarão nos momentos de perseguição (cf. Jo 15,20; 16, 4); por outro lado, as recordações serão também interpretações, pois o Paráclito recordará iluminando o significado profundo dos atos e palavras de Jesus. Sua função não é uma mera lembrança, mas uma atualização vital, como mediador-intérprete da tradição. O que Jesus foi e o que Ele significa estarão, portanto, unidos pela recordação (anamnese) atualizante e criadora do Paráclito.
Outra atividade do Paráclito é o de dar testemunho de Jesus (Jo 15,26). Ele dará este testemunho aos discípulos e ao mundo, mas também fará dos discípulos testemunhas porque fortalecerá a sua fé e a manterá (Jo 19,35; 20,20-22).
Ao utilizar a expressão “testemunhar”, o IV Evangelho aponta para além do simples anúncio de Jesus. Ele evoca o aspecto conflituoso deste anúncio. Como em um tribunal, os discípulos enfrentarão os opositores de Jesus que o acusarão. Neste momento será preciso testemunhar a seu favor para que se manifeste o julgamento daqueles que creem e daqueles que rejeitam a Jesus (Jo 3,16-18). Portanto, podemos dizer que o testemunho do Paráclito também é profético, pois manifesta a Jesus e o dá a conhecer, ao mesmo tempo em que denuncia as “obras das trevas” que se opõem a Ele e a sua palavra (cf. Jo 3,19-21).
Também o Paráclito irá estabelecer a culpa do mundo sobre o pecado, a justiça e o julgamento (Jo 16,8-11). Aqui, encontramos uma abordagem mais jurídica para o termo “paráclito”, colocando em um contexto de julgamento no qual será estabelecida a culpa do “transgressor”. Porém, aplicar a perspectiva jurídica de modo absoluto para interpretar a ação do Paráclito dentro deste contexto pode levar a equívocos, pois o estabelecimento da culpa nem sempre visa à condenação, mas pode ser também um convite a conversão.[3]
O Paráclito abre de novo o processo a fim de pronunciar a sentença contrária a que fora aplicada contra Jesus. Os que se arvoraram em juízes são os culpados, e o condenado é que tinha razão. Em consequência, o sistema que se atreveu a cometer tamanha injustiça está condenado por Deus. O pecado consiste em integrar-se a esta ordem perversa, fazendo-se solidário da sua injustiça.
Portanto, a ação do Paráclito em relação ao pecado de juntar-se ao sistema e não crer em Jesus ( cf. Jo 3,19; 12,48; 15,22; 16,9), a partida de Jesus para o Pai, que o ressuscita, manifestando a verdadeira justiça e a injustiça dos que o condenaram (cf. Jo 16,10), e a exaltação de Jesus que julga o “Príncipe deste mundo” (cf. Jo 12,31; 16, 11.33), mais do que a perspectiva jurídica, expressa sua ação profética que denuncia o mundo. Esta é uma importante obra do Paráclito na comunidade, pois deste modo, ele a anima e a confirma.
Na próxima semana concluiremos esse tema analisando as outras duas expressões que faltam: o Espirito da Verdade e o Espírito Santo.


[1] Toda a argumentação desenvolvida nesse estudo se apoia na seguinte bibliografia:
BÍLBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém: revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.
DOOD, Charles H.. Interpretação do Quarto Evangelho. Teológica/Paulus, São Paulo: 2003, pp. 283-301.
DUSSANT, E. Cothenet L.; FORT, P. Le; PRIGENT, P. Os escritos de São João e a Epístola aos Hebreus. Paulinas, São Paulo: 1988, pp 108-114.
MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de São João. Paulinas, São Paulo: 1989. (Grande Comentário Bíblico)
MATEOS, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João. Paulinas, São Paulo: 1989.
SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João. Santuário, Aparecida: 1994, pp. 239-274.
[2] Aqui se colocou em forma de síntese o pensamento de Juan Mateos e Juan Barreto junto com a explicação de Bento Silva Santos de modo que, para ver separadamente a reflexão de cada autor, veja as obras: MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de São João. Grande Comentário Bíblico, pp. 614; e SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João. pp. 250.
[3] Santos preocupa-se com uma leitura que restrinja a interpretação deste texto ao aspecto jurídico. Ele afirma que se pode encontrar um convite a conversão para aqueles que, vendo a culpabilidade do mundo que rejeita Jesus, se abrem à fé. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João. pp. 263-265.273.

domingo, 13 de maio de 2018

A pluralidade do cristianismo e a intolerância entre os cristãos

Christian World Communions

Uma questão que sempre volta no meio religioso cristão é a intolerância. Existem pessoas que, por ingenuidade ou por desconhecimento da própria história do cristianismo ou, infelizmente, por um fundamentalismo doentio, acabam por acreditar cegamente que sua tradição cristã é a única correta e verdadeira e que quem não se encaixa no seu “modelo” de cristianismo está no erro, no pecado ou condenado ao inferno.
Nesta semana em que realizamos a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, gostaria de recorda com você, cara leitora e caro leitor, um pouco da nossa história enquanto comunidade cristã no mundo. Acredito que esse breve olhar pode trazer outra perspectiva sobre nós mesmos enquanto Igrejas e Comunidades Eclesiais que se auto-identificam como seguidoras de Jesus Cristo.[1]
O cristianismo nasceu como um grupo, uma “seita”,[2] dentro do judaísmo. Os discípulos de Jesus, após a experiência de sua páscoa, pregavam que esse Jesus seria o messias enviado por Deus para realizar a salvação de todos os que nele cressem e de levar o judaísmo a alcançar o cumprimento das promessas que Deus lhe havia feito por meio dos profetas.[3]
Esse novo grupo dentro do judaísmo irá passar por um processo traumático de ruptura com o judaísmo a partir da segunda metade do século I depois de Cristo (d.C.). Dentre as diversas razões dessa ruptura, destaco a acolhida de não-judeus no grupo dos seguidores de Jesus e o contexto do próprio judaísmo depois da queda de Jerusalém depois do ano 70 d.C..
O cristianismo nasceu, então, de um cisma com o judaísmo. Já nascemos em meio a uma “briga” com nossa “religião-mãe”. Assim, passamos a ter Cristianismo de um lado e Judaísmo do outro.
Em seguida, recordo que dentro das comunidades cristãs sempre existiram tensões e momentos de ruptura nesses primeiros séculos. Uma primeira tensão foi entre aqueles que achavam que para ser da comunidade cristã as pessoas tinham que adotar os costumes judaicos (circuncisão, rituais de purificação, seguir a Lei de Moisés etc) e aqueles que diziam que isso não era necessário, bastando crer em Jesus como messias e seguir o que ele ensinou.
Outras tendências foram surgindo e gerando tensões, tais como: se Jesus era divino ou não; se ele morreu de verdade ou só aparentemente, já que Deus não pode morrer; como ele seria Filho de Deus etc. Essas e outras questões geraram tantos conflitos que a Igreja cristã, nos primeiros 8 (oito) séculos, realizou grandes Concílios tentando encontrar soluções para essas e outras questões de forma que se guardasse o fundamental da fé e a unidade do cristianismo.
Entre esses vários contextos, recordo o caso do Arianismo. Essa corrente de pensamento considerada herética por vários Concílios permaneceu dividindo internamente a Igreja por aproximadamente 3 séculos. Seu pensamento não tinha como objetivo destruir o cristianismo, mas era uma tentativa de explicar como Jesus poderia ser homem e ser Deus ao mesmo tempo. A maioria dos líderes do cristianismo rejeitou a teoria de Ário, por isso ela foi considerada herética, contudo ela permaneceu por muito tempo sendo fonte de conflitos internos.
Por volta do ano de 1054, ocorreu o “Cisma Ocidente-Oriente” ou o “Grande Cisma”. A Igreja Católica (assim chamada não como denominação, mas como compreensão de que ela é universal - para todo o mundo) se dividiu entre o Oriente e o Ocidente. As causas giraram em torno de questões teológicas sobre a natureza do Espírito Santo e questões sobre a autoridade entre as Igrejas do Oriente e do Ocidente cristão. Assim, o mundo cristão ficou dividido entre a Igreja Católica Apostólica Romana, no Ocidente,  e a Igreja Católica Apostólica Ortodoxa, no Oriente.
No século XV, com o monge agostiniano Martinho Lutero, inicia-se o movimento  que será chamado de Reforma Protestante. O monge Lutero apresenta suas 95 teses que questionam posturas e formas de interpretação da fé cristã por parte das lideranças da Igreja Católica no Ocidente. Conflitos, perseguições, interesses políticos levaram ao “Cisma do Ocidente”, dando origem a Igreja Católica Apostólica Romana (o termo “Católica” aqui entendida como denominação específica dentro do universo das Igrejas cristãs) e as Igrejas e Comunidades Eclesiais da Reforma.[4]
Em seguida, dentro do próprio movimento da reforma, diferentes perspectivas geraram diferentes Igrejas, fragmentando em diversas denominações o cristianismo da Reforma.
Na Igreja Católica, apesar de não ter ocorrido fragmentações externas tão intensamento como a do tipo ocorrido no mundo protestante, internamente sempre existiram tendências, interpretações e tensões teológicas que exigiram e exigem constante necessidade de revisão e diálogo para evitar maiores divisões. Mesmo assim, algumas divisões menores já ocorreram no século passado. Cito aqui dois casos: a Fraternidade Sacerdotal de São Pio X, fundada pelo bispo francês Lefebvre, que não aceitou as decisões do Concílio Vaticano II (1962-1965); a Igreja Católica Apostólica Brasileira, que recusa o dogma da infalibilidade do Papa e que tem uma interpretação menos rígida das orientações morais cristãs, nascida com cisma do bispo Carlos Duarte Costa que vivia na região do Estado de São Paulo, em 1945.
Essa breve exposição nos ajuda a perceber que nossa história, como história do cristianismo, nunca foi tranquila nem uniforme. Sempre existiram tensões e conflitos que em alguns momentos conseguimos superar, mas que em outros acabamos por nos dividir.
A consciência dessa história comum a todos os cristãos provocou vários cristãos e cristãs, e em suas Igrejas, o desejo por um novo caminho que pudesse nos ajudar a resgatar a comunhão que os evangelhos nos apresentam como o grande desejo de Jesus.[5]
Nascido entre as Igrejas da Reforma em meados do século XX, o Movimento Ecumênico se expandiu e tem sido um sinal de esperança na busca da unidade entre as diversas denominações cristãs. A segunda metade do século XX foi profundamente marcada pelo esforço de líderes das diversas Igrejas e Comunidades Eclesiais em cultivar o caminho do diálogo ecumênico como meio para vivermos uma nova comunhão entre as seguidoras e os seguidores de Jesus.
 Entretanto, tenho sentido nesse início do século XXI uma tendência crescente de uma perspectiva fundamentalista, fechada ao diálogo e ávida por um cristianismo normativo que coloque todas as pessoas em uma espécie de fôrma (seja ela uma interpretação fundamentalista da Bíblia ou a palavra de uma autoridade da sua Igreja), que apresente com toda clareza quais são todas as regras para se conseguir ser um bom cristão, que tire da consciência pessoal a responsabilidade por suas escolhas, pois se deseja pensar e  agir em conformidade com o que “alguém” determina (seja a Bíblia ou a autoridade religiosa), transferindo para esse “alguém” toda a responsabilidade das consequências de suas decisões e ações.
As pessoas que têm apresentado essa postura de fechamento em suas Igrejas parecem não entender que não há como nos protegermos dos desafios que a existência de outras Igrejas cristãs, que honestamente professam sua fé no mesmo Jesus Cristo e que lêem e interpretam a mesma Bíblia, nos apresentam como seguidores e seguidoras de Jesus. Basta olhar nossa história comum como cristãos para entender que a busca da unidade sempre foi um desafio e um sonho desejado, mas nunca plenamente realizado.
É obvio que o caminho não é fácil e que existem diferenças entre nossas Igrejas que são difíceis (no presente momento) de serem superadas. Porém isso não nos impede de nos olharmos com respeito e esperança, com amor fraterno e desejo de construir pontes entre nós.
Atitudes de fechamento manifestam nosso medo diante daquilo que não entendemos ou conhecemos. Elas reforçam o que há de pior em nós: intolerância, falta de misericórdia, legalismos, violência em nome de Deus, exclusão e condenação das pessoas que não pensam como “nós”.
Vamos construir pontes, vamos aprender a ouvir o outro como um irmão (não como um adversário)! Vamos dialogar com respeito e verdade no coração e nas palavras! O pluralismo entre os cristãos não precisa ser necessariamente um mal, ele pode ser uma oportunidade para nos retirar do nosso “ponto de conforto” e nos ajudar a crescer na fé que professamos juntos.
Temos um longo caminho a percorrer rumo à comunhão fraterna entre nós. Eu prefiro percorrê-lo de mãos dadas do que entre cotoveladas.




[1] Não vamos apresentar um estudo exaustivo. Facilmente se encontra bibliografia especializada que pode servir para aprofundar o estudo sobre a história do cristianismo. Aqui nos basta apresentar os acontecimentos de forma breve para informar e ajudar a entender nossa reflexão.
[2] Uso o termo “seita” no seu sentido básico, ou seja, um grupo separado dentro de outro grupo maior.
[3] cf. At 2,22-24.29-36; 3,15;  4,9-12; 5,9-32; 10,37-43; 13,26-31; I Cor 15,3-7.
[4] Uso a expressão genérica “Igrejas e Comunidades Eclesiais da Reforma” porque são muitas as denominações que surgiram nessa primeira fase do processo: Lutera, Calvinista, Presbiterianos, Batistas etc. Dessa forma, sintetizo nessa expressão a diversidade de denominações que foram surgindo com a Reforma.
[5] Jo 17,20-21.

domingo, 6 de maio de 2018

A tradição da fé cristã e a questão dos pobres (Parte II)



Continuando nossa reflexão sobre os pobres na tradição cristã, vamos avançar passando brevemente no período escolástico e em seguida apresentando alguns pronunciamentos em documentos do Magistério da Igreja no século XX.[1]

 Da Escolástica ao período Contemporâneo
Após o período patrístico o tema do pobre vai gradualmente dando lugar ao tema da propriedade; ao tema do que é justo ou não na posse e no uso dos bens, como também nas relações de trabalho. Porém, olhando bem, o tema do direito do pobre aparece indiretamente já que, ao se tratar sobre a justiça em relação aos bens em vista do bem comum e as relações de trabalho, os pobres estão incluídos.
Na escolástica destacamos S. Tomás com a reflexão sobre a justiça comutativa e a justiça distributiva. Para ele há um direito do pobre (justiça distributiva) e há um direito de propriedade (justiça comutativa), porém o proprietário não pode usar para si mesmo os bens próprios de que não necessita (supérfluo), porque os pobres têm DIREITO a eles.
Ao entrar no período contemporâneo o tema do direito do pobre ganha perfis mais plurais devido às profundas mudanças sócio-econômicas e político-estruturais pelas quais o mundo estava passando.
A Igreja vai refletindo e posicionando-se na medida em que as questões vão surgindo. O tema do “pobre” desaparece de modo explícito e só irá reaparecer com o Concílio Vaticano II, na sua inculturação na realidade Latino-Americana. As temáticas ganham contornos mais amplos e diversos, porém tendo sempre em vista aqueles que estão expostos à injustiça e a exploração.

-          LEÃO XIII: Rerum Novarum (1891) – Tratando sobre a classe operária explorada dentro da revolução industrial que o mundo passava, buscando a justa medida entre capitalismo e socialismo, nas relações entre patrão e operário, entre produção e salário digno; afirma também o direito natural à propriedade, mas lembra da função social que tais bens possuem.

-          PIO XI: Quadragésimo Anno (1931) – Crítica ao individualismo capitalista, à instrumentalização do Estado pelos detentores do Capital e o incentivo ao “Corporativismo Cristão” como mediação entre os indivíduos e o Estado.

-    PIO XII: Seu pensamento se encontra difuso em declarações e discursos nos quais reafirma o direito natural a propriedade sem prescindir da função social dos bens; defende os pequenos agricultores que sofrem pressões violentas do sistema capitalista para abandonar o campo; defende o direito a imigração; também lança as primeiras sementes da ética ecológica: Deus confiou um patrimônio à humanidade, sua Criação.

-     JOAO XXIII:      
Mater et Magistra (1961) – reflete sobre as tensões entre povos desenvolvidos e subdesenvolvidos; reflete sobre o êxodo rural; reflete sobre o subdesenvolvimento das nações (tema abordado pela primeira vez): nações economicamente fortes que desejam dominar as nações economicamente fracas.
Pacem in Terris (1963) – apresenta a paz fundada no respeito aos direitos naturais de todos os homens como meio para se alcançar uma solidariedade universal.

-          PAULO VI:
Gaudium et Spes (Vaticano II) – Tratando sobre a autonomia das realidades terrestres.
Populorum Progressio (1967) – Tratou sobre o desenvolvimento dos povos; incorporou a temática do subdesenvolvimento; apontou para a frustração do mito do desenvolvimento e para o perigo do mito das soluções violentas; convocou a solidariedade diante de 2/3 de subdesenvolvidos na humanidade.
Octogésimo Adveniens – Não se preocupa em oferecer modelos de sociedade para resolver os problemas da sociedade atual, mas incentiva as comunidades de base; questiona a civilização industrial e as bases que oferece aos sistemas capitalista e comunista; faz a primeira referência ao problema ecológico do meio ambiente dentro de um documento do magistério.

-          JOÃO PAULO II:[2]
Discurso na República Dominicana (1979) – fala sobre os pobres como agentes de sua própria promoção.
Discurso em Puebla – fala dos bispos como defensores da dignidade humana; sobre o compromisso preferencial, não exclusivo, pelos pobres; sobre o cuidado com os radicalismos e as ambigüidades (correntes verticalistas e horizontalistas); sobre a responsabilidade dos leigos no processo de transformação das estruturas sociais injustas; sobre a violação dos direitos dos trabalhadores.
Redemptoris Hominis (1979) – retoma o tema ecológico; fala sobre a sociedade consumista; sobre as exigências éticas da justiça e do respeito à dignidade do homem; sobre um humanismo novo; sobre a estreita relação entre a justiça e a paz.
Visita ao Brasil (1980) – em seus discursos fala sobre a necessidade de reformas, mas não como fruto do desenvolvimento econômico; sobre o repúdio a violência como meio para conseguir mudanças (luta de classes); sobre a missão social da Igreja: Pastoral Social; sobre a convergência de esforços para se alcançar a “civilização do amor”; sobre a defesa da pessoa humana em seus direitos fundamentais; sobre o direito a propriedade e sua função social.
Laborem Exercens (1981) – Trata sobre o tema do trabalho humano e o homem do trabalho.

Concluímos nesse ponto nossa reflexão, pois a obra na qual baseamos essa pesquisa termina esse tema no período do início dos anos 80. Entretanto, existem outras bibliografias mais atuais que podem oferecer uma excelente leitura.
Essa exposição não quis esgotar o tema, mas apenas provocar o interesse, pois não podemos ficar indiferente a realidade dos pobres e da pobreza no mundo. Nossa tradição cristã exige de cada um de nós o compromisso pela promoção de uma vida digna para todos.




[1] O que apresento a seguir é uma síntese feita a partir da obra: BIGO, Pierre; ÁVIA, Fernando Bastos. Fé cristã e o compromisso social: elementos para uma reflexão sobre a América Latina à luz da Doutrina Social da Igreja. 2a ed., São Paulo: Paulinas, pp. 159-227, 1983. Devido a data dessa obra, nossa reflexão ficará limitada até o início dos anos 80.

[2] Sobre o pensamento de João Paulo II o livro trata somente até o ano de 1981, pois a obra base deste trabalho foi editada neste período. Por isso as referências se restringirão ao período da obra.

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