domingo, 18 de novembro de 2018

O combate ao clericalismo e as reformas de Francisco



FONTE DESTE TEXTO: Instituto Humanitas Unisinos 

“Este artigo não é anticlerical. Ele é contra o clericalismo, que necessita dos padres e dos leigos, duas categorias que não existem uma sem a outra.”
A opinião é do teólogo francês Bernard Paillot, professor do Centro de Teologia Universitária de Rouen, na França, em artigo publicado por Baptises.fr, 28-10-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

“Nem todos morriam, mas todos eram atingidos” (“Os animais doentes de peste”, La Fontaine)
Não se trata de voltar à invectiva de Gambetta (“Le cléricalisme, voilà l’ennemi”, discurso de 4 de maio de 1877), mas de avançar com o nosso papa quando ele escreve: “O clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes quanto pelos leigos, gera uma divisão no corpo eclesial que beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que hoje denunciamos”. Três cartas recentes do nosso papa, uma das quais destinada “ao povo de Deus”, levaram-me a redigir este texto [1].
Tento propor aqui uma reflexão teológica evocando alguns desvios nos quais se baseia o clericalismo.
Duas considerações preliminares:
- Este artigo não é anticlerical. Ele é contra o clericalismo, que necessita dos padres e dos leigos, duas categorias que não existem uma sem a outra. O denominador comum de todas as facetas do clericalismo é uma relação desigual entre padres e leigos, sendo os padres e os leigos corresponsáveis quando aceitam livremente essas relações insalubres (evidentemente, não se trata de condenar as vítimas, que, ao contrário, sofrem a relação!);
- também não se trata, aqui, de focar nos abusos sexuais, embora a revelação desse escândalo mundial tenha sido a ocasião das recentes cartas de Francisco. Muitos já se ocupam disso. Reconhecemos, com o nosso papa, que o clericalismo foi uma das condições da sua existência, da sua difusão e da sua impunidade até tempos recentes. Mas o clericalismo tem outros efeitos bem diferentes sobre as inteligências e as consciências. “Ele não só anula a personalidade dos cristãos, mas também tem uma tendência a diminuir e desvalorizar a graça batismal que o Espírito Santo pôs no coração do nosso povo”, escreve Francisco.
Eu escreverei sucessivamente sobre:
- o desvio de sentido de certas expressões;
- certos erros relativos ao sacramento da ordem;
- certas deformações do ministério presbiteral.

1. O clericalismo se aproveita de certas expressões mal compreendidas ou utilizadas erroneamente

Uma dessas expressões é “alter Christus” e “in persona Christi” ou a sua variante “in persona Christi capitis” que, não traduzidas, são facilmente percebidas por alguns com uma aura de mistério, como uma espécie de “transfiguração” que contribui, erroneamente, para sacralizar o padre.
De acordo com a origem etimológica, em referência ao teatro grego antigo, devemos compreender “persona” como “papel”. Trata-se do papel desempenhado pelo padre nos sacramentos.
Assim, nas assembleias eucarísticas, o padre faz, “in persona Christi”, o relato da Última Ceia e pronuncia as palavras de Jesus, mas é Cristo que age através do padre, e não o padre que faz Cristo “aparecer”. Essa representação não se aplica aos atos e palavras não sacramentais do padre. Na vida religiosa atual e para as atividades profanas, o pároco não encarna Cristo na sua paróquia, nem o bispo na sua diocese.

2. Dois erros concernentes ao sacramento da ordem

A associação entre a ordenação e um grau superior de santidade
A associação entre a ordenação e um grau superior de santidade está em muitas mentes há muito tempo. Não era incomum ouvir: “Ele se tornou padre para salvar a sua alma”!
No decreto do Vaticano II sobre o ministério e a vida dos padres, lemos um enunciado (Presbyterorum ordinis §12) que pode parecer ambíguo, porque, mesmo que o artigo comece recordando que certos padres “já pela consagração do Batismo receberam com os restantes fiéis o sinal e o dom de tão insigne vocação e graça para que, mesmo na fraqueza humana, possam e devam alcançar a perfeição”, acrescenta: “Fazendo todo o sacerdote, a seu modo, as vezes da própria pessoa de Cristo, de igual forma é enriquecido de graça especial para que, servindo todo o Povo de Deus e a porção que lhe foi confiada, possa alcançar de maneira conveniente a perfeição d’Aquele de quem faz as vezes”. Mas a graça do sacramento da ordem é uma graça para os outros.
A ordenação não é um superbatismo, que constitui uma classe de supercristãos. Os Padres do Concílio Vaticano II expressam firmemente: “Comum é a dignidade dos membros (do povo de Deus), pela regeneração em Cristo; comum a graça de filhos, comum a vocação à perfeição; uma só salvação, uma só esperança e uma caridade indivisa. Nenhuma desigualdade, portanto, em Cristo e na Igreja” (Constituição sobre a Igreja, Lumen gentium, LG § 32).
Afirmamos muito claramente que a santidade não depende do estado de cada um – celibatário, casado, viúva, padre –, mas da sua resposta pessoal à graça que é concedida a todos, porque Deus quer que todas as pessoas sejam salvas.
A ordenação e seus limites
O batismo é a única fonte de toda a vida cristã. Os sacramentos posteriores à iniciação cristã conferem uma “qualificação” própria. A ordem, assim como o matrimônio, consagra caminhos diferentes da vida batismal comum e confere àqueles que recebem o sacramento uma atitude nova e um lugar determinado na comunidade. Trata-se de uma modificação do modo de ser-para-os-outros, mas não de uma modificação da essência. Novamente, não existem super-humanos!
Francisco recorda isso em sua carta ao cardeal Ouellet: “Nossa primeira e fundamental consagração afunda suas raízes em nosso batismo. Ninguém foi batizado padre nem bispo”.
No entanto, Pio X, na sua encíclica Vehementer nos (1906), descreveu a Igreja como uma “sociedade de essência desigual que compreende duas categorias de pessoas”. E continuava: “Essas categorias são tão claramente distintas entre si que só no corpo pastoral residem o direito e autoridade necessários para promover e dirigir todos os membros rumo às finalidades sociais; e que a multidão não tem outro dever senão o de se deixar guiar e de seguir, como um dócil rebanho, os seus Pastores”, imagem ainda impressa em muitas mentes.
Se os Padres do Concílio Vaticano II escreveram: “O sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico se diferenciam essencialmente” (LG § 10), eles também enunciaram firmemente a igual dignidade de todos os batizados (§ 12). São os sacerdócios que diferem essencialmente, não os filhos de Deus!
Francisco insiste: “Mas [...] essa afirmação da igual dignidade no seio da Igreja pode provocar e justificar [...] sentimentos de indignação quando essa dignidade, afirmada em linha de princípio, não parece honrada pela instituição, pelo seu discurso, pelas suas regras, pelas suas tradições, pela sua casuística etc., em relação às aspirações que emergem legitimamente nas consciências e nas comunidades”.
É desde o seminário que os desvios ocorrem. Os seminários têm o efeito de integrar no espírito dos seminaristas um ordo, uma ordem constituída, que segue o espírito de Pio Xe que não pode deixar de recordar o Ancien Régime e as suas três ordens. E esse estado de espírito se desdobra facilmente em uma monarquia clerical que ignora que muitas questões devem ser tratadas segundo a subsidiariedade e a colegialidade (incluindo os leigos).
Por que alguns bispos mandam seus postulantes para uma instituição fora da sua diocese, embora uma parte dos estudos seja dispensada em sua própria diocese e permita que os leigos obtenham diplomas canônicos?
São inúmeros os pontos da vida das paróquias e das dioceses que deveriam envolver todos os batizados, os quais deveriam poder exercer responsabilidades de acordo com suas competências, mas são impedidos pelo espírito de poder que predomina sobre o do serviço junto a certos padres e leigos clericalizados”!
Pelo contrário, vale a pena se debruçar sobre a iniciativa significativa e exemplar do Papa Francisco na preparação dos sínodos dos bispos sobre a família e depois no sínodo sobre os jovens e a fé cristã: ao contrário do costume relativo ao clericalismo, ele pediu a participação de todos os batizados na preparação do documento de trabalho dos Padres sinodais! Uma preparação de baixo para cima! Algo jamais visto antes!
A mediação do padre não é absolutamente necessária. Ela é subordinada (à de Cristo), útil (se procede da misericórdia do Pai), mas não indispensável ao Espírito (que sopra onde quer).

3. O padre está a serviço dos batizados... mas, de fato, o poder suplanta o serviço muito frequentemente

Nos Evangelhos, os apelos de Jesus (palavras e atos) ao serviço e à caridade são numerosos demais para serem lembrados aqui. Mas talvez possamos meditar sobre a interrogação que surge depois de lavar os pés dos discípulos: “Vocês compreenderam o que acabei de fazer?” (Jo 13, 12b). Podemos ler tanto um convite à reflexão quanto uma consternação diante das resistências humanas.
A propósito de desvios do serviço em poder, vejamos a realidade dos direitos dos fiéis na Igreja. Evocarei apenas dois aspectos, a título de exemplo.
a) O direito de expressão
É um direito explicitado no Direito Canônico (formulado com o estilo que convém): “Os fiéis, segundo a ciência, a competência e a proeminência de que desfrutam, têm o direito e mesmo por vezes o dever, de manifestar aos sagrados Pastores a sua opinião acerca das coisas atinentes ao bem da Igreja, e de a exporem aos restantes fiéis, salva a integridade da fé e dos costumes, a reverência devida aos Pastores, e tendo em conta a utilidade comum e a dignidade das pessoas” (c. 212 § 3). E o cânone 221 § 1 afirma que “aos fiéis compete o direito de reivindicar legitimamente os direitos de que gozam na Igreja, e de os defender no foro eclesiástico competente segundo as normas do direito”.
Ad intra, a expressão do cristão leva a evocar o sensus fidei. Este pode ser considerado, em nível pessoal, como uma capacidade de perceber a verdade da fé, recebida do Espírito Santo que “nos introduz a toda a verdade”. Em nível comunitário, embora o sensus fideie a opinião pública não sejam da mesma natureza, eles estão intimamente ligados, mas não entraremos nessa distinção aqui. Deixaremos a questão em aberto: vox populi vox Dei?
Se o direito de expressão dos fiéis na Igreja é reconhecido, individualmente ou em associação, onde ele pode ser exercido? Existem lugares de expressão e de debate na Igreja? Infelizmente, na prática, muito frequentemente, constatamos que se escutam aqueles que se optou por escutar, e se ouvem aqueles que se tem a vontade de ouvir! É o que pode acontecer nos sínodos diocesanos, que muitas vezes parecem ser lugares de reflexão e de diálogo para os fiéis. Mas eles são convocados, como conselhos, pelo bispo sobre um assunto que ele define e é ele, no fim, quem redige e promulga os decretos do sínodo e os transmite a Roma.
Assim, não é raro que os participantes nas assembleias sinodais fiquem, ao mesmo tempo, entusiasmados com a iniciativa e frustrados com a impossibilidade de discutir certas questões ou a sua omissão no documento final.
Ad extra, e apesar de padres e bispos não serem os porta-vozes dos fiéis, que absolutamente não participaram da sua nomeação, a mídia busca principalmente a palavra da hierarquia clerical do que a dos fiéis que, em sua grande parte, estão acostumados e resignados com esse fato. Assim, as declarações públicas dos leigos que tentam expressar suas diferenças são facilmente marginalizadas. Restam as redes sociais, em que, como em outros âmbitos, há de tudo, para o bem e para o mal.
b) Direitos trabalhistas
Igreja expressou-se amplamente sobre o assunto com uma rica e abundante “doutrina social”, concernente ao mundo do trabalho, aos seus papéis, às suas regras... E na prática, dentro das instituições, organizações e comunidades eclesiais? Cada vez mais, os leigos exercem – na maioria dos casos voluntariamente, mas às vezes também sob formas de emprego assalariadas – funções diversas nas instituições eclesiais. Aí frequentemente também reina o clericalismo, porque as responsabilidades importantes raramente são confiadas aos leigos, e estes, muito frequentemente, ainda permanecem em uma situação de subordinação ao clero, seja qual for o nível das suas competências e/ou da natureza religiosa ou profana da tarefa.
Inversamente, também é verdade que alguns leigos se apropriam de certas funções e não aceitam que estas sejam questionadas ou possam ter um fim.
Mais gravemente, em nome do “serviço à Igreja”, muitos abusos se perpetuam às custas dos fiéis leigos e/ou de religiosos: superação dos horários de trabalho combinados, salários muitas vezes baixos ou até inexistentes. Aliás, foi somente a partir de 1997 que os bispos franceses adotaram um “estatuto do pessoal leigo da Igreja da França”, que foi seguido, há nove anos, pela implementação das primeiras convenções coletivas em 2016 que levaram à constituição de um acordo setorial entre os representantes dos empregadores e dos sindicatos.
E, nesse mesmo ano, um artigo publicado no dia 1º de março no L’Osservatore Romano lançava um alerta sobre o trabalho “(quase) gratuito” das freiras a serviço de bispos e de cardeais. Esses fatos certamente não são uma exclusividade romana. Eles também fazem parte do clericalismo em favor de seus autores e/ou beneficiários, já que o abuso de autoridade gera uma exploração que pode se tornar sórdida.

Em conclusão

Não podemos senão aderir em pensamento, palavras e ações às injunções do nosso papa que escreve: “Tudo o que for feito para erradicar a cultura de abuso das nossas comunidades, sem uma participação ativa de todos os membros da Igreja, não conseguirá gerar as dinâmicas necessárias para uma saudável e realista transformação”; “É impossível imaginar uma conversão do agir eclesial sem a participação ativa de todos os integrantes do povo de Deus”, e ainda: “É a hora dos leigos, mas parece que o relógio parou!”.
A Igreja “é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (LG 1). A Igreja não é somente o meio, mas também a própria mensagem.
E, como escreveu Francisco: “A visibilidade e a sacramentalidade da Igreja pertencem a todo o povo de Deus (cf. LG 9-14), e não apenas a uns poucos eleitos e iluminados”.
Francisco nos chama a uma conversão radical e a uma “revolução” das práticas para todos os católicos, porque nós somos todos, mais ou menos, atingidos pela peste do clericalismo. Cinco séculos depois da Reforma Protestante, uma nova Reforma é necessária para pessoas e instituições. Ela só será possível através de Igrejas e comunidades locais das quais se deve reconhecer a diversidade sem desconhecer a universalidade na comunhão. Francisco expressa isso de uma maneira lapidar: “Não se podem dar diretrizes gerais para uma organização do povo de Deus dentro de sua vida pública”.
Essa nova Reforma, não só espiritual, mas também funcional e institucional, sine qua non, deverá se basear na promoção da dignidade dos batizados, na sua formação, na sua colaboração responsável. O sacerdócio ministerial, em todos os níveis da hierarquia clerical, cumprirá então a sua missão junto aos fiéis leigos pelo serviço essencial da comunhão e da unidade na diversidade.
Se a Igreja de Cristo realmente “subsiste” na Igreja Católica (cf. LG 8), ela deverá mostrá-la nos fatos e na reforma de suas instituições. Caso contrário, essa Igreja Católica Romana, cada vez mais desacreditada, será cada vez mais desertada pelos fiéis de Cristo; seu anúncio e sua participação no advento do Reino não serão mais audíveis e correrão fortemente o risco de passar ainda mais por outros canais.
Nota:


segunda-feira, 5 de novembro de 2018

“Deus acima de todos!?”



Autoria: Marcos Maciel de Souza Araújo[1]

         No dia 28 de outubro de 2018, os brasileiros foram as urnas e elegeram, com um pouco mais de 55% dos votos válidos, o deputado Jair Bolsonaro para presidente da república. A campanha desse ano foi especialmente marcada por extremismos, que resultaram em discursos de ódio e divisões em diversas esferas da sociedade, como nas famílias e até na Igreja.
O presidente eleito representa a extrema direita e surgiu no quadro político brasileiro como uma resposta aos governos anteriores maculados pela corrupção que desencadeou uma grande crise política e econômica. Nisso se destaca o partido dos trabalhadores (PT) que, por ser o partido que estava à frente do poder executivo nacional e ter uma parte significativa dos seus líderes acusados e até presos por corrupção, acabou se tornando o grande representante dos grupos corruptos, ainda que não seja o único partido incluído e nem o que mais tem integrantes envolvidos em escândalos.
            Bolsonaro, apesar de, ao longo de sua vida política, ter feito várias declarações polêmicas e de cunho preconceituoso, homofóbico, xenofóbico, misógino e racista, fez uma campanha em nome da “moral, dos bons costumes, da família tradicional e de Deus”, para isso usou como lema de sua campanha e de sua chapa a frase “Brasil a cima de tudo e Deus acima de todos”.  
            Agora, após o resultado, parece-me que o presidente eleito continuará com o seu bordão e talvez até o torne lema pessoal de sua gestão, haja vista que já em seus discursos como presidente eleito continua a usá-lo, sempre o utilizando para finalizar os seus pronunciamentos. Essa frase se tornou como que sua assinatura após cada discurso, se tornou uma espécie de “amém” usado pelos cristãos, se tornou o ponto alto onde, ao ser pronunciada, os seus apoiadores entram em euforia.
Acredito que a primeira parte da frase “Brasil a cima de tudo”, para um presidente da república está corretamente empregada, afinal é dever dele colocar os interesses nacionais, o desenvolvimento do país e o bem comum da população como prioridade e acima de qualquer interesse ou benefício pessoal ou de terceiros. Porém até que ponto cabe a segunda parte do “Deus acima de todos”? Será que seria ético e correto sua utilização por um representante do estado? E até mesmo no discurso teológico, seria ela benéfica para os que ainda não possuem uma fé madura ou esclarecida? E, afinal, qual seria esse Deus?    
            Bom, começo respondendo a essas indagações partindo do campo político, ético e jurídico. Para isso, lembro que já em seu compromisso constitucional no dia da posse, o presidente promete “manter, defender e cumprir a constituição”, assim sendo, ele torna-se o primeiro representante desta. Partindo deste ponto, recordamos que, conforme o inciso VI do artigo 5º, bem como o inciso I do artigo 19 da Constituição Federal, o Brasil se configura como um Estado laico, logo, defende a liberdade de qualquer crença, mas não professa nenhuma e consequentemente se mantém neutro. Embora segundo o índice do IBGE de 2010, a maioria da população brasileira (estatisticamente 86,8%) se declare cristã (católicos e protestantes), existe uma parcela significativa (13,2%) que não professam a fé cristã ou até mesmo que não professam nenhuma fé[2].
Entendo que a partir do momento em que é eleito, o presidente se torna o presidente de todos os cidadãos, independente das suas concepções morais e religiosas devendo, portanto, governar para todos, sem excluir as minorias. Somando todos esses fatos, presumo que não é ético para o presidente, nas atividades do exercício do seu cargo, manter ou insistir num discurso religioso como fonte, amparo ou argumento de suas realizações. Isso, obviamente, não quer dizer que em sua intimidade ou fora das suas atividades oficiais ou em colocações que não se refiram ao governo, ele não possa professar sua fé e suas convicções, mas, pelo contrário, nessas situações ele até o deve fazer como resposta a sua fé.   
            Partindo para o campo da análise teológica, o primeiro questionamento que fazemos é a respeito de qual é o Deus que a frase se refere, afinal, mesmo no nosso país, existe uma variedade de culturas e religiões, por conseguinte, variadas imagens de Deus. No entanto, pelas declarações e pela história de fé de Bolsonaro, fica evidente que se refere ao Deus dos cristãos. Na teologia, e até mesmo na psicologia, algumas correntes defendem que a imagem que temos de Deus relaciona-se diretamente com quem somos, com o que nos tornamos ao longo da vida ou com o que aspiramos e defendemos. Por isso, quando ouço Bolsonaro afirmar sobre o “Deus acima de todos”, fico refletindo qual seria a imagem de Deus que ele tem, já que em suas famosas declarações polêmicas chegou a defender a tortura e a pena de morte, negou que existiu a ditadura no brasil e mesmo sobre essa afirmou que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”[3]; demonstrou por diversas vezes intolerância com quem pensa diferente, sobretudo com os homossexuais, chegando ao ponto de afirmar que "Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo [...]"[4]. Deixou também claro em uma entrevista o seu racismo ao afirmar que os filhos dele foram bem educados e não correria o risco de namorarem com uma negra[5], e não menos grave considerou a mulher inferior ao homem, como por exemplo quando afirmou que não empregaria uma mulher com o mesmo salário do que o dele por ser homem[6].
Para qualquer um que conhece pelo menos o básico do Evangelho, fica clara a distância de coerência entre todos esses posicionamentos e a mensagem evangélica, que defende sobretudo a dignidade humana e o respeito fraterno. Bom, talvez Bolsonaro, até pela sua trajetória militar, acostumado com o autoritarismo, com a hierarquia, com o uso da força e da violência para vencer o inimigo, tenha de fato uma visão desse Deus que está acima de todos, que está na posição do “comandante e chefe” do universo, onde todas as criaturas nada mais são do que seus comandados que devem obedecer sem qualquer tipo de questionamento, ou caso contrário receberão a punição devida.     
            Grande parte dos apoiadores de Bolsonaro parecem compartilhar da mesma visão que ele do “Deus acima de todos”. Não obstante, há um fato em peculiar que não podemos deixar passar despercebido, que é o do perfil do eleitor. De modo geral, se observou que as elites e as classes dominantes brasileiras, ou seja, o pessoal “de cima”, apoiaram a candidatura de Bolsonaro, enquanto que as pessoas mais pobres, oprimidas ou que fazem parte dos grupos de “minoria”, ou seja, o pessoal “de baixo”, decidiram se posicionar contra, o maior fato disto é que na região nordeste, que é a região mais pobre do Brasil[7], Bolsonaro foi derrotado em todos os estados e com uma diferença expressiva. Esta observação, me leva a pensar que embora para muitos pobres Deus seja “tudo na vida” deles, não é ainda esse Deus acima deles, ou pelo menos não esperam que Ele esteja, como todos os outros, acima deles, mas com eles. Me encanta muito a sabedoria do pessoal simples, pobre, marginalizados ou excluídos, pois apesar de sua pouca instrução, são capazes de falar profundamente de Deus, pois o que eles conhecem de Deus não são o que leram em livros, mas verdades de experiências de vida que tiveram com Deus, são testemunhos autênticos e verdadeiros, carregados de fé e piedade.
            Neste ponto, como acadêmico de teologia, acredito que quem opta por não ficar com o discurso do “Deus acima de todos”, se aproxima com maior sublimidade do que Deus realmente revelou a todos nós sobre Ele em toda a história do plano divino da Salvação. Ao observar a dinâmica de Deus ao decorrer de toda a Sagrada Escritura, chego à conclusão de que Deus realmente nunca quis estar acima de todos, mas que, ao contrário, quis estar e habitar entre os seus (Ex 25,8), e mais do que isso, quis estar dentro do coração do homem (Ez 36,26). O maior argumento desse querer de Deus de não ser tratado de modo excedente, é o próprio Jesus Cristo, que como nos diz o hino cristológico de Fl 2, 6-11, abriu mão de ser tratado como um Deus, e se despojou tomando a forma de escravo, ou seja, do menor entre todos.
            Por estes fatos, revelados a nós por meio das escrituras sagradas, prefiro ficar com a posição do “Deus entre nós”. De um Deus que sempre quis estar próximo e entrar na dinâmica da vida humana, que faz do homem a sua imagem e semelhança e confia a criação ao seu domínio, para que juntos, lado a lado, a governassem (Gn 1,1 – 2,25), que caminha com o seu povo (Ex 15,22 – 18,27), que estabelece a sua morada entre os seus (Ex 40,34-38). Prefiro reconhece-lo como um Deus que se fez homem igual a nós, exceto no pecado, mas que se inclina para ficar na altura do pecador (Jo 8,6-11), que mesmo sendo mestre e senhor retira seu manto, símbolo de sua dignidade, e lava os pés dos seus discípulos (Jo 13,1-20) sinal de servidão, humildade e caridade. Sobretudo, ao contemplar os atos de Jesus, que sempre se faz presente entre o povo, que dá atenção aos menos privilegiados, que devolve a dignidade a quem julgavam não ter, que nunca buscou prestígio para si, é que me dificulta e até me impede de chegar a dimensão de um Deus que dizem querer ser tratado “acima de todos”. Não consigo perceber esse Deus distante, que está o tempo todo no alto, que me faz não parecer digno de me aproximar, que fica além do véu no santo dos santos... afinal, se está acima de todos, não está perto de nós.
            Deus é simples, por isso consigo contemplar e ver a presença dele no meu irmão que é feito a imagem e semelhança Dele, que faz parte de um corpo místico, que se deifica porque Deus se humanizou. É bem verdade que Deus é e está na Glória, mas não podemos esquecer que essa Glória se manifestou sobretudo na cruz, que teve de passar pela fragilidade humana para lucra-la também à nós. E sim, Deus também é majestoso e poderoso, contudo sabemos que para Deus o poder só tem sentido quando significa serviço e caridade prestada, por essa razão, conjecturo que Deus é o maior, pois se fez o menor.
Aqui, lembro-me da Eucaristia e percebo que Ele continua a se fazer o menor, pois embora não precisasse, quer Ele continuar se fazendo presente de modo real na fragilidade e na pequenez de uma hóstia consagrada, hóstia essa que ao recebermos mesmo miseráveis como somos, nos permite entrar em comunhão com Ele, já aqui, participantes da Glória final que há de vir. Deus não está longe, mas está ao nosso lado, Deus está dentro de todos nós, Deus está no céu com os que foram salvos, por isso Ele é tão grande. Nosso abbá, nosso “paizinho”, está pertinho, está onde quer que estejamos, e é com nossa vida doada aos outros, que glorificamos a Ele que se faz presente nos nossos irmãos, mesmo os mais ínfimos.    
            Definitivamente, não gosto da frase “Deus acima de todos”, e até acho muito arriscado utilizá-la em discursos de evangelização, pois ela intrinsicamente dá uma ideia de distância, de indignidade e de opressão. Presumo que um pecador ou até mesmo quem ainda não conheceu a mensagem de Deus, ao ouvi-la fica ainda mais receoso de se aproximar por se julgar desmerecedor de algo tão elevado, o que resulta na incapacidade deste de não experimentar desse amor tão pleno e transbordante de humildade. Não utilizar e não concordar com a frase “Deus acima de todos”, não quer dizer, como alguns possam alegar, que estou querendo diminuir o tamanho de Deus, pelo contrário, creio sim, que é o maior, o mais poderoso, o mais digno de louvor, porém, assim o é por Ele ser o primeiro a entrar na dinâmica do “Quem quiser ser o maior, que seja o menor” (Lc 22,26).
            Tenho consciência clara, enquanto teólogo em formação, que é perigoso achar que podemos ver Deus só do nosso jeito, ou que Ele caiba apenas em minha visão. Por essa razão, reconheço que Ele é muito mais do que imagino ou defendo, que Ele transborda todas as minhas limitações, que Ele supera todo o meu intelecto, no entanto, confio que Ele se revela em meu coração e me permite conhece-lo para dar a conhecer. Minha teologia é o maior sinal do reconhecimento da minha incapacidade de falar perfeitamente de Deus, por isso, além da minha vida sacramental, que me comunica Deus, também recorro ao estudo para tentar fazer a minha pequena parte de evangelizador. Posso chegar até a cometer erros teológicos ou dizer asneiras, mas Deus que conhece perfeitamente o meu íntimo, sabe que a minha intenção nada mais é do que tentar mostrar aos meus irmãos o melhor caminho para entrar na dinâmica do Reino de Deus.
É urgente a nossa necessidade de conversão sincera, precisamos anunciar com nossa vida a presença de Deus entre nós, não dá para ficar apenas no discurso apontando para o alto, para alguém que está longe e esquecer dos que estão pelo caminho e ao nosso lado, por isso o meu grito de ordem é “DEUS NO CORAÇÃO DE TODOS”.   
                       



[1] Graduando em teologia pela Faculdade Diocesana de Mossoró – FDM.

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