domingo, 22 de julho de 2018

No princípio havia o Big Bang, e no princípio do Big Bang havia um padre!



REPORTAGEM RETIRADA E ADAPTADA DO SITE DO INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS[1]

O físico e matemático belga, que combinou ciência e fé em seus trabalhos, foi o primeiro a falar da origem do universo em expansão e com um passado infinito.

A reportagem é de Alberto López, publicado por El País, 17-07-2018. A tradução é de Henrique Denis Lucas.

Ciência e fé não costumam dar bons casamentos, mas há exceções, como a do cientista e sacerdote católico belga Georges Lemaître, que não é apenas um exemplo reconhecido pela comunidade científica, mas que, com grande humildade, foi capaz de corrigir o próprio Albert Einstein. Estamos falando do padre da Teoria do Big Bang, que tentou demonstrar a origem do universo.
Sem renunciar à sua fé católica, Lemaître falou de um passado infinito do universo, mas que não entrava em contradição com sua crença em um Deus criador do mundo, já que tanto Aristóteles quanto São Tomás de Aquino mostraram que a criação de um universo não precisaria de um começo no tempo.
Pe. Georges Lemaître 
Georges Henri Joseph Édouard Lemaître nasceu em 17 de julho de 1894, na localidade belga de Charleroi. Ele era o mais velho entre os quatro irmãos e desde muito cedo mostrou sua precocidade em matemática e física, mas também em sua vocação pessoal, anunciando a seus pais, aos nove anos de idade, que queria ser padre.
Encorajado por seu pai, Georges Lemaître decidiu estudar primeiro, antes de entrar no seminário, e matriculou-se na Escola Superior Jesuíta do Sagrado Coração, em Charleroi, onde destacou-se em química, física e matemática. Em 1910, seu pai conseguiu um novo emprego e mudou-se com a família para Bruxelas. O jovem Lemaître, já com 16 anos, matriculou-se em outra escola jesuíta, o Colégio Saint Michel, onde seus professores descobriram suas habilidades excepcionais em matemática e física.
Embora ainda gostasse da ideia de se tornar padre, Georges decidiu estudar engenharia em vez de teologia. Em 1911 ingressou na Universidade Católica de Lovaina para fazer o curso de engenharia. Em julho de 1913, obteve o diploma e começou a trabalhar como engenheiro de minas.
A Primeira Guerra Mundial forçou-o a parar seus estudos e servir como voluntário no exército belga, alcançando o posto de Primeiro-Sargento. Por sua bravura, foi condecorado com a medalha da Cruz de Guerra, além de ter sido expulso de uma missão após ter dito ao instrutor que seus cálculos balísticos estavam errados. No entanto, as atrocidades vistas na guerra amplificaram sua vocação sacerdotal. Algum colega de aula viria a recordar posteriormente que sua vocação de fé e da ciência se mantinham em tamanha sincronia que ele era visto por aí lendo o livro de Gênesis da Bíblia da mesma maneira que lia artigos de equações de físicos franceses.
Retomou seus estudos e em 1920, aos 26 anos, foi premiado com a mais alta distinção, um doutorado em Ciências Matemáticas por sua tese 'A aproximação de funções reais de várias variáveis'. Georges Lemaître também obteve um bacharelado em filosofia baseado no sacerdote italiano do século XIII, São Tomás de Aquino.
Seu passo seguinte foi dar início à sua caminhada para tornar-se padre, ao ingressar na Casa de Saint Rombaut, em outubro de 1920. Seus professores, notando seu interesse contínuo em matemática e física, sugeriram que ele estudasse o trabalho de Albert Einstein. Lemaître assim o fez, aprendendo sobre o cálculo do tensor e a relatividade geral dos livros escritos pelo famoso astrônomo matemático Arthur Eddington.
Em 1922, Lemaître apresentou a tese 'A Física de Einstein', que rendeu-lhe uma bolsa de estudos do governo belga e a possibilidade de ir para a Universidade de Cambridge (Inglaterra), como pesquisador de astronomia. Quase em paralelo, foi ordenado sacerdote em setembro de 1923, aos 29 anos. No entanto, ao invés de exercer como padre em uma paróquia ou colégio, Lemaître utilizou a bolsa para estudar a teoria da relatividade geral e trabalhar pessoalmente com Eddington, que sugeriu a Lemaître que começasse a trabalhar em um doutorado sobre o universo.
Eddington pediu a Lemaitre que aplicasse as regras da relatividade geral ao conteúdo de seu trabalho para ver quais seriam os resultados. Lemaître descobriu duas soluções para o problema de Eddington: a primeira consistia em uma proposta feita por Einstein, em 1917, de um universo fechado, estável e estático, cuja densidade de energia em massa fosse constante; a segunda estava relacionada com a proposta de Willem de Sitter, também em 1917, de um universo cujo comportamento em grande escala fosse dominado pela constante cosmológica (a densidade de energia do espaço vazio).
Georges Lemaître cruzou o Atlântico para conduzir pesquisas na Universidade de Harvard e também matriculou-se como aluno para um doutorado em Física no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Durante sua estada nos Estados Unidos, viajou muito e conheceu os mais importantes astrônomos e físicos do país, incluindo Forest Ray Moulton, William Duncan MacMillan, Vesto Slipher, Edwin Hubble e Robert Millikan.
Georges retornou à Bélgica no verão de 1925 e, apoiado e recomendado por Eddington, foi nomeado professor associado de matemática na Universidade Católica de Lovaina. Em 1927, defendeu sua tese no MIT: 'O campo gravitacional em uma esfera fluida de densidade invariante uniforme, segundo a teoria da relatividade'.
Neste novo papel de pesquisador e divulgador, Georges Lemaître realizou a derivação do que hoje é conhecida como a Lei de Hubble, que relata a velocidade com que uma galáxia se afasta e a sua distância. A famosa Conferência Solvay de 1927 contou com a presença da maioria dos principais físicos. Einstein também participou e falou com Lemaître, dizendo-lhe que suas ideias já haviam sido apresentadas por Friedmann, em 1922. Além disso, disse-lhe que, por mais que acreditasse que suas soluções para as equações da relatividade geral estivessem matematicamente corretas, traziam soluções que não eram fisicamente possíveis. Especificamente, Einstein disse-lhe: "Seus cálculos estão corretos, mas sua compreensão da física é abominável".
Einstein não estava sozinho ao achar as ideias de Lemaître inaceitáveis. Pelo contrário, essa era a opinião de quase todos os cientistas. No entanto, em 1929, Hubble publicou um trabalho que apresentava grandes evidências de um universo em expansão, contradizendo a teoria de um universo estático, até então aceita.
Eddington e outros membros da Real Sociedade Astronômica (Royal Astronomical Society) começaram a trabalhar para tentar resolver o problema originado pela discrepância entre a teoria e a observação, com uma parte da teoria de Lemaître que os cientistas - incluindo Eddington - acharam impossível de aceitar: como foi que o universo teve um começo em um tempo finito no passado, da mesma forma que a religião católica defende no livro de Gênesis?
Lemaître respondeu às objeções a sua teoria em um documento publicado na revista Nature, em maio de 1931. "Se o mundo começou com um único quantum, as noções de espaço e tempo não teriam nenhum significado no princípio; só começariam a ter algum significado sensato quando o quantum original fosse dividido em um número suficiente de quanta. Se esta sugestão estiver correta, o começo do mundo aconteceu um pouco antes do começo do espaço e do tempo". Em realidade, Lemaître sempre expressou que era importante manter uma separação entre as idéias científicas e as crenças religiosas sobre a criação.
Esta foi a primeira formulação explícita da Teoria do Big Bang, atualmente aceita e que naquele momento também era aceita pela maioria dos cientistas e a qual Georges chamou de "hipótese do átomo primordial". Em 1933, Einstein e Lemaître disponibilizaram-se a ministrar uma série de conferências na Califórnia. Depois de ouvir Lemaître explicar sua teoria em um desses seminários, Einstein levantou-se e disse: "Esta é a mais bela e satisfatória explicação da Criação que em algum momento eu tenha escutado".
As ideias de Georges Lemaître chegaram à imprensa popular, que o descreveu como o principal líder do momento. Um artigo no 'New York Times' mostrou uma foto dele e Einstein com a legenda: "Eles têm um profundo respeito e admiração um pelo outro". E é o fato de que Lemaître tenha sido tanto um cientista quanto um padre católico que gerou certo fascínio na imprensa popular, até o ponto em que um jornalista escreveu acerca dele: "Não há conflito entre religião e ciência, repete Lemaître diversas vezes... Seu ponto de vista é interessante e importante não apenas porque ele é um padre católico ou um dos principais matemáticos e físicos de nosso tempo, mas porque ele é ambos".
O maior opositor das hipóteses de Lemaître foi o astrônomo inglês Fred Hoyle, um dos arquitetos do modelo Estacionário. Na verdade, foi ele quem deu seu nome à teoria do Big Bang em uma entrevista de rádio para a BBC e o fez de maneira depreciativa.
Para o sacerdote belga Georges Lemaître, a história do universo divide-se em três períodos: o primeiro é chamado de "a explosão do átomo primitivo", segundo o qual há cinco bilhões de anos existia um núcleo de matéria hiperdensa e instável que explodiu sob a forma de super-radioatividade. Esta explosão propagou-se durante um bilhão de anos e os astrônomos percebem até hoje seus efeitos sobre os raios cósmicos e as emissões X.
Depois vem o período de equilíbrio ou o universo estático de Einstein. Ele afirma que, após a explosão, estabelece-se um equilíbrio entre as forças de repulsão cósmicas na origem do acontecimento e as forças de gravitação. É durante esta fase de equilíbrio - que dura dois bilhões de anos - que se formam nós que dão origem às estrelas e galáxias.
Finalmente, acontecem os períodos de expansão, iniciados há 2 bilhões de anos, que demonstrariam que o universo está se expandindo a uma velocidade de 170 quilômetros por segundo de maneira indefinida.
Em 1948, George Gamov propôs uma nova descrição do começo do universo. E, embora ele seja considerado atualmente como o pai da teoria do Big Bang, as linhas mestras já estavam presentes de uma maneira muito clara na cosmologia de Lemaître.
O renomado padre belga obteve vários cargos na Pontifícia Academia das Ciências, sendo assessor pessoal do papa Pio XII e presidente da mesma em 1960. Em 1979, durante o discurso do Papa São João Paulo II à Pontifícia Academia das Ciências, por ocasião da comemoração do nascimento de Albert Einstein, ele citou algumas palavras de Lemaître sobre a relação entre a Igreja e a ciência:
"Por acaso a Igreja poderia ter necessidade de ciência? Não: a cruz e o Evangelho lhe bastam. Mas nada que seja humano é alheio ao cristianismo. Como poderia a Igreja se desinteressar na mais nobre das ocupações estritamente humanas: a investigação da verdade?"
Ao fim da sua vida, Georges Lemaître dedicou-se cada vez mais aos cálculos numéricos. Seu interesse pelos incipientes computadores e pela informática acabou por fasciná-lo completamente.
Ele morreu na cidade belga de Lovaina, em 20 de junho de 1966, aos 71 anos, dois anos depois de ter escutado a notícia da descoberta da radiação cósmica de fundo de microondas cósmicas, que era a prova definitiva de sua teoria astronômica fundamental do Big Bang.
O nome em uma cratera na Lua e em um veículo espacial da Agência Espacial Europeia (a ATV5), que nem sequer existe mais, são dois reconhecimentos quase insignificantes para a estatura humana e sua contribuição para a compreensão da origem do universo que nos acolhe.

domingo, 15 de julho de 2018

A memória do sofrimento das vítimas da violência

Manifestação do documentário
"Nossos mortos tem voz"

             Lendo uma aloução de Paul Ricoeur,[1] feita em 1989, por ocasião do dia em que se fazia memória das vítimas do Holocausto, percebi em suas palavras algo que me deixou profundamente inquieto diante do contexto de violência em que nos encontramos nesses tempos.
O luterano e filósofo francês afirmava que o fazer memória das vítimas tem um significado importante para todos nós.
Vou tentar colocar, aqui, um pouco do que compreendi de sua reflexão porque acredito que é provocativa e enriquecedora para todos nós.
Um fato que experimentamos é a morte injusta e violenta de pessoas por causa de seus ideais, ou por lhes ter negado o direito de viver suas vidas sendo respeitadas pelo que são (raça, cultura, gênero), ou pelo exercício honesto de seu ofício para viver.
Olhando esse contexto é inevitável nos perguntarmos o porquê de tudo isso. A busca de resposta no coloca em caminhos diversos e até mesmo absurdos.
Em uma mentalidade de retribuição, afirma-se que quem matou é culpado, mas a vítima também é culpada porque “se meteu nisso”. Essa mentalidade coloca no mesmo nível assassino e vítima, tratando-os igualmente como responsáveis. É um tipo de discurso que nega o direito da vítima de existir enquanto memória, pois a morte já lhe negou o direito de simplesmente existir.
Um primeiro pensamento de Ricoeur nos provoca outra visão. Ao afirmar que precisamos fazer memória das vítimas, ele nos deixa claro que existem vítimas e algozes, existem os que executam e o que foram executados.
É necessário sempre fazer memória das vítimas. Mas por quê? Vamos aprofundar um pouco isso!
As vítimas que se tornaram símbolos referenciais do sofrimento de milhares de anônimos nos interpelam para que não esqueçamos o porquê elas morreram, pelo quê elas morreram, e que existem, infelizmente, muitos que como elas também perecem. Na memória dessas vítimas todas as vítimas são tornadas presentes.
A título de exemplo, recordo algumas vítimas de ontem e de hoje que se tornaram simbólicas, como é o caso de Chico Mendes, de Ir. Dorothy, de Margarida Maria Alves, de Marielle Franco, dos povos indígenas sem direito a conservar sua cultura e suas terras, das vítimas da homofobia e do feminicídio, dos anônimos que morreram lutando em defesa dos direitos humanos, das vítimas da ditadura militar no Brasil, dos que procuram garantir a justiça e a segurança da população e são mortos no cumprimento desse dever, entre tantos outros.
Fazer memória das vítimas é importante para dar-lhes uma voz, a voz que lhes foi recusada pela violência que sofreram. O nobel da paz, Eliel Wiesel, afirmou: “Talvez não seja dado aos humanos apagar o mal, mas podem tornar-se a tomada de consciência do mal”.
Fazer memória das vítimas não é um conformismo com o mal gerado pela violência, mas é um meio de tomarmos consciência da existência desse mal, de suas causas e consequências. É manter ecoando as vozes que a violência física tentou calar. Fazer memória do horror e da violência sofridas pelas vítimas impede que caia no esquecimento o que provocou esse mesmo horror e violência.
Rememorando e narrando o que aconteceu, evitamos que o esquecimento mate as vítimas uma segunda vez e evitamos que a história de suas vidas se torne banal. Mantemos, desse modo, a dimensão escandalosa do acontecimento, não fechando ele em uma explicação simplista e rasteira, mas deixando que esse escandaloso nos incomode e provoque na busca de novos caminhos para que acontecimentos como esses não se repitam.
Memorial dos judeus mortos na Europa
durante a Segunda Guerra Mundial
Na Alemanha, por exemplo, os alunos estudam desde cedo sobre a Segunda Guerra Mundial e sobre o genocídio perpetrado pelo Nazismo. Isso acontece para que as novas gerações aprendam com os erros do passado de sua própria história. Eles não negam as mazelas de seu passado enquanto nação, mas fazem memória para que aqueles que não viveram nem viram o que aconteceu não repitam o mesmo caminho. Fazer memória das vítimas do regime nazista mantém suas vozes ecoando ainda hoje como um grito de alerta, não somente para os alemães ou para os judeus, mas para todo o mundo.
Fazer memória é não deixar que a história se perca, especialmente naquilo que ela tem de mais duro e cruel. Esquecer as vítimas é esquecer a crueldade que as gerou, arriscando-nos a continuar repetindo essa mesma crueldade gerando novas vítimas.
Vamos manter viva a memória das vítimas da violência, violência que nega o direito de uma vida digna para todas as pessoas, pois mantendo sua memória mantemos suas vozes ainda nos interpelando para que transformemos esse mundo, para que não repitamos os caminhos que lhes ceifaram a vida, para que construamos um mundo mais humano e fraterno.


[1] RICOEUR, Paul. A hermenêutica bíblica. São Paulo: Loyola, 2006, p. 239-243.


domingo, 8 de julho de 2018

O fundamentalista ilustrado e o teólogo pensante


Atualmente, com o acesso as redes sociais, as pessoas têm podido expressar suas ideias e opiniões sobre tudo o que quiserem. Em blogs ou em vídeos, apresentam o que pensam sobre os mais diversos assuntos. Entre tantos assuntos, é claro, religião também está em alta.
Assim como em vários canais de tv, com inúmeros programas de natureza religiosa, a internet também tem inúmeros espaços utilizados para tratar dessa área. Encontramos coisas sérias, produzidas por centros de natureza acadêmica no campo teológico, mas também encontramos a diversidade de opiniões e manifestações que provocam, muitas vezes, debates estranhos e estéreis. Chamo de debates estéreis porque não têm como objetivo a busca de um conhecimento mais profundo e autêntico sobre a fé cristã, mas de “vencer” e provar que “meu discurso” é o verdadeiro, é o certo.
Com as novas tecnologias, o acesso à informação está muito mais fácil. Desse modo, as pessoas se sentem cada vez mais capazes de se manifestar utilizando-se dessas informações. O problema é a forma como essas informações são processas e usadas por cada pessoa.
É nesse ponto que desejo falar sobre o fundamentalista ilustrado e o teólogo pensante. Mais precisamente, quero apresentar o que considero ser as características que nos permitam identificar cada uma dessas figuras, pois ambas apresentam discursos que procuram tratar de questões relativas a fé cristã e sua presença no mundo.
O que chamo de fundamentalista ilustrado não é aquela pessoa estranha que fica repetindo ideias desconexas ou simplesmente usa a famosa frase “a Blíblia diz...” para justificar qualquer coisa que ela defende. Estou falando de alguém que possui muitas informações, que conhece não só a Bíblia, mas também a história e outros textos da tradição cristã. Uma pessoa que lê e que possui um rico conjunto de materiais dos quais retira suas ideias e argumentos.
O problema do fundamentalista ilustrado é que ele confunde informações com conhecimento. Ele acha que conhecer muitas coisas é sinônimo de saber gerar, a partir delas um saber. O fundamentalista ilustrado reproduz o conhecimento que ele adquiriu, utilizando-o para reafirmar ideias que ele acredita estarem corretas sem questionar. Ao invés de dizer somente “é assim porque a Bíblia disse que era assim!”, ele também diz “é assim porque o santo ‘tal’ disse...” ou “é assim porque o papa ‘tal’ disse...” ou “é assim porque o pensador ‘tal’ disse...” e por aí vai seguindo.
O fundamentalista ilustrado não se arrisca ao tomar uma posição. Sua posição é determinada por uma autoridade de fora a qual ele segue e a partir da qual justifica suas posições, colocando a responsabilidade sobre o que tal “fonte de autoridade” disse. Desse modo, ele não precisa lidar com o ônus das consequências de seu discurso ou de suas escolhas porque ele fez o que lhe disseram que era para fazer.
O fundamentalista ilustrado busca certezas e segurança, por isso precisa de uma instância na qual se apoiar. Com a facilidade de acesso à informação, ele se cerca de todo conhecimento possível para lhe garantir essa segurança e para poder se defender de tudo o que possa ameaçar suas certezas. Por isso ele é uma pessoa ilustrada, dotada de conhecimentos diversos, com leituras e informações sobre vários assuntos, para poder se sentir seguro.
Tendo conhecimento e sendo fundamentalista, ele se torna uma pessoa combativa, que usa todo o conhecimento acumulado para atacar tudo o que não se encaixa em sua visão de mundo. Todo o “diferente” é visto como uma ameaça a estabilidade do que ele acredita ser o certo e verdadeiro para a vida de todas as pessoas. Desse modo, ele constrói argumentos cheios de informações baseadas na autoridade das suas fontes, usadas como se isso se tornasse uma “prova” de que ele está certo nas posições que defende.
O fundamentalista ilustrado não quer dialogar, ele quer convencer. Ele não está necessariamente preocupado em encontrar a Verdade, pois acredita que já a possui e, por isso, acredita que sua missão é convencer a todos sobre a “verdade” que ele já conhece. Todo o discurso que não está em conformidade com essa “verdade” é considerado falso e enganador. Ele não faz autocrítica, pois está convencido de que está certo e, por isso, ele não acredita que outras perspectivas tenham algo de positivo a oferecer ao seu universo de conhecimento.
O teólogo pensante é alguém que, assim como o fundamentalista ilustrado, possui acesso à informação, leituras, conhecimento em vários campos do saber. Entretanto, diferentemente do fundamentalista, o teólogo pensante é uma pessoa que pensa. Em outras palavras, ele simplesmente não reproduz ideias, mas também produz ideias.
O teólogo pensante não deseja defender posições estáticas, mas está em busca da compreensão do que Deus deseja em relação à humanidade e a toda criação. A Bíblia, os textos da tradição cristã, o conhecimento produzido pelos vários pensadores na história do cristianismo não são usados para justificar uma posição estática da fé cristã diante do mundo seculariazado. Todo esse conhecimento é usado para ajudar na busca de uma compreensão mais profunda sobre o que o discurso cristão tem a dizer de significativo para esse nosso tempo.
Esse teólogo pensante não está buscando segurança nem certezas, pois ele sabe que na vida e na história humana tudo está ainda em movimento em direção à comunhão plena com Deus. Por isso, ele aceita correr riscos pensando, produzindo conhecimento, mesmo podendo estar errado, mas ele sabe que precisa tentar para encontrar as respostas para os novos desafios que se apresentam diante da mensagem cristã.
O teólogo pensante aceita a dinâmica da existência e procura compreendê-la para poder manter-se em diálogo, sem pretensões de dominar ou impor sua posição, consciente de que ele contribui com seu saber na construção desse imenso caminho que é  busca pela Verdade que Deus nos oferece por meio de sua Revelação.
Ele também aceita as contradições e impasses que se apresentam no diálogo entre os saberes teológicos das diferentes tradições religiosas entre si e com outros campos do saber. Ele sabe que não há respostas prontas ou fáceis para essas dificuldades, mas isso não o faz fechar-se em seu próprio mundo.
O teólogo pensante está sempre em busca, animado por uma fé inquieta, que o lança sempre para frente, para novos horizontes, aprendendo com tudo e todos que vieram antes dele, utilizando criticamente todo o conhecimento adquirido em vista da produção de novos conhecimentos.
O teólogo pensante não quer convencer, mas dialogar. Ele não quer só falar, mas também sabe escutar para aprender com a experiência e o conhecimento produzido pelos outros. Isso não quer dizer que ele não tem suas posições e convicções, mas não está fechado nelas, aceitando revê-las e aprofundá-las criticamente na medida em que novos contextos e saberes se apresentam.
Para o fundamentalista ilustrado o conhecimento acumulado é a garantia de suas certezas e um instrumento de defesa diante dos novos contextos que possam se apresentar diante dele. Para o teólogo ilustrado o conhecimento acumulado é fonte inspiradora para a busca de novos caminhos de diálogo com os novos contextos atuais, base para produção de novos saberes, auxílio no processo de discernimento do que Deus está nos falando nesses novos tempos em que vivemos.
Acredito que esses breves pensamentos podem servir como uma boa provocação para você, cara leitora e caro leitor, no desejo de que sejamos pensantes e não somente ilustrados, em vista de um pensamento teológico que seja autenticamente cristão e dinâmico para a Igreja e para o mundo.

domingo, 1 de julho de 2018

Paulo, apóstolo de Cristo: um olhar sobre o filme


Tive o prazer de assistir a algumas semanas atrás o filme que esteve em cartaz no Brasil com o título Paulo, apóstolo de Cristo.[1] Assim como fiz com o filme sobre Maria Madalena, gostaria de compartilhar com você que nos acompanha minhas impressões sobre esse filme.
A história se passa no período do imperador romano Nero, que governou entre os anos de 54 a 68 d.C.. Mais precisamente, o filme está ambientado no momento logo após o episódio do incêndio que destruiu quase metade da cidade de Roma em 64 d.C..
Nero acusou os cristãos como causadores do incêndio e incitou uma perseguição na cidade de Roma contra seus membros. Ele organizou espetáculos no Circus Maximus onde colocava os cristãos para serem estraçalhados por feras famintas, crucificou outros e queimava publicamente os cristãos à noite transformando-os em tochas humanas.
É nesse contexto que encontramos Paulo, já idoso e preso por Nero, aguardando sua execução. Também encontramos o personagem de Lucas, o “querido médico”, discípulo de Paulo que vem encontra-lo na prisão. Vários personagens são citados ou tem algum espaço no filme dos quais conhecemos apenas os nomes ou poucas informações por meio das cartas de Paulo: o casal Áquila e Priscila, Timótio é citado várias vezes, Pedro também é citado, Teófilo, entre outros nomes.
O filme apresenta, de modo fictício, como Lucas teria escrito o livro dos Atos dos Apóstolos. O filme coloca Lucas conversando com Paulo na prisão, procurando registrar a memória e o testemunho de sua vida missionária desde sua conversão até sua última viagem como prisioneiro para Roma.
É uma narrativa envolvente e que apresenta os cristãos como um grupo com altos ideais de amor e solidariedade sendo perseguidos por um sistema cruel e desumano. Também a película tenta colocar os dilemas morais de como se posicionar diante de tanto sofrimento, mortes injustas, medo e grandes perdas. Temos na comunidade cristã o conflito ético e moral entre os defensores de uma mensagem de amor e perdão, de um lado, e os que acham que deveriam reagir a perseguição e lutar contra o Nero, por outro lado.
Cena do filme: Paulo, apóstolo de Cristo
Não é um filme que traga polêmicas envolvendo seus personagens principais, ou que faça uma tentativa de leitura crítica da história do cristianismo desse período.
O que encontramos é um filme com uma mensagem do tipo edificante, apresentando modelos de fé e de perseverança diante das dificuldades e sofrimentos. Várias falas do personagem Paulo são tiradas de suas cartas do Novo Testamento, colocadas dentro de um contexto para dar um significado mais contundente e reafirmar a figura de Paulo como um grande apóstolo.
O filme não se preocupou em tratar das tensões entre Paulo e a corrente judaizante dos cristãos, ou polêmicas em torno de interpretações de alguns de seus textos como, por exemplo, é o caso daqueles que foram considerados base para uma visão discriminatória em relação às mulheres na Igreja.
O centro do filme é dar ao telespectador a experiência da beleza da fé cristã, dos seus altos valores espirituais, da força de sua mensagem.
O que eu poderia dizer de positivo e de não tão positivo nesse filme?
Positivamente, ele apresenta uma forte característica do cristianismo nascente que era sua presença junto aos pobres. Mesmo havendo pessoas ricas que aderiam à fé cristã, a maioria dos membros da comunidade provinha dos pobres, escravos e camponeses. O filme apresenta isso de forma idealizada, enfatizando a solidariedade da comunidade cristã para com os pobres e os que sofrem, porém não deixa de ser algo concreto essa característica das primeiras comunidades, o que atraiu muito a atenção das pessoas e gerou muitas conversões.
Outra coisa é o respeito pela figura de Paulo. Realmente ele ganhou notoriedade entre os cristãos ao ponto de suas cartas serem lidas e compartilhadas entre as comunidades tornando-se uma fonte de instrução e orientação. Mesmo o filme não tratando diretamente dessa questão, fica evidente a importância da palavra de Paulo como fonte de orientação na vida das comunidades.
Sobre sua morte, o filme conserva os dados da tradição cristã, já que não temos outras informações. Porém, também idealiza esse momento, mostrando um Paulo firme e tranquilo, enquanto seus algozes parecem diminuir diante dele mesmo nesse momento.
O que eu poderia chamar a atenção para o que considero não tão positivo é justamente a forma idealizada como Paulo, Lucas e a comunidade são tratados em alguns momentos do filme. Acredito que isso empobrece a complexidade que era ser cristão naquele contexto específico. Mesmo as tentativas de criar momentos de crise acabam passando de forma muito superficial, não fazendo com que se sinta que realmente havia uma dificuldade significativa, pois facilmente se vislumbrava qual o caminho de solução que iria ser apresentado no processo.
Outro problema é o anacronismo presente em vários momentos do filme, refletindo nossa compreensão atual da mensagem cristã e projetando-a para as primeiras comunidades. Ideais que espiritualizam a mensagem evangélica de modo diferente do que realmente eles provavelmente pensavam devido o contexto e cultura distintos do nosso. É difícil não projetar nossos dilemas e interpretação da mensagem de Jesus para dentro do filme, já que também hoje continuamos a enfrentar sofrimentos, problemas, desafios que testam o valor e a constância da fé cristã. Porém, entendo que essa projeção empobrece nossa compreensão de como a fé cristã esteve presente e se desenvolveu nesse período, fazendo o público acreditar que a mensagem cristã sempre foi entendida do mesmo modo.
Cena do filme: Paulo, apóstolo de Cristo
Por fim, entre os prós e os contras, considerei essa obra cinematográfica um bom filme. Ele tem momentos que são tocantes e com uma mensagem positiva de fé e esperança. Vale a pena assistir para animar em nosso coração o ideal da vida cristã enquanto horizonte que nos convida a buscar uma vida virtuosa e elevada, que o filme desenha nas entrelinhas de sua narrativa para seu público. Mesmo não enfrentando de modo mais realista as contradições da vida cristã em meio aos conflitos e dores da história, o filme oferece um horizonte para olharmos e afirma que o cristianismo tem uma mensagem que pode transformar os ser humano, que pode torna-los melhores, que oferece um caminho para construirmos um mundo mais fraterno e justo.




[1] Nome: Paulo, Apóstolo de Cristo
Nome Original: Paul - Apostle of Christ
Cor filmagem: Colorida
Origem: EUA
Ano de produção: 2018
Gênero: Religioso, Drama
Duração: 108 min
Classificação: 12 anos
Direção: Andrew Hyatt
Elenco: James Faulkner, Jim Caviezel

Postagens anteriores

DESTAQUE DO MÊS

“Teologia Oficial” x Teologia da Libertação: um embate hermenêutico!

Concílio Ecumênico Vaticano II Existe uma discussão no meio teológico movida por questões de compreensão e interpretação da mensagem d...