domingo, 3 de junho de 2018

“Teologia Oficial” x Teologia da Libertação: um embate hermenêutico!

Concílio Ecumênico Vaticano II
Existe uma discussão no meio teológico movida por questões de compreensão e interpretação da mensagem da Revelação cristã. Ela coloca em oposição dois discursos teológicos em que temos, de um lado, uma chamada “teologia oficial”[1] que apresentaria o verdadeiro ensinamento sobre a fé cristã por acreditar-se fundamentada na Tradição e no Magistério da Igreja. No outro lado está a chamada “teologia da libertação” que seria uma reflexão teológica marginal, cheia de erros porque estaria fundamentada em uma ideologia marxistas-comunista, que desprezaria as verdades fundamentais da fé cristã para colocar no centro a luta de classes e a revolução social.
Muitas pessoas, especialmente nas redes sociais, fazem postagens com críticas à teologia da libertação em nome da “teologia oficial” que seria a verdadeira teologia. Porém, seriam as coisas assim tão claras? Seria mesmo a teologia da libertação uma falsa teologia, corruptora da fé cristã?
Eu tenho como princípio que todo discurso religioso e, consequentemente, teológico acontece dentro de um processo hermenêutico. É partindo desse princípio que quero desenvolver essa nossa conversa.
A “teologia oficial” é assim chamada por ser o discurso teológico que se tornou normativo para a comunidade de fé que é a Igreja. Ele se tornou normativo porque, após as experiências vividas e os frutos experimentados, a comunidade de fé reconheceu nele um valor que ajuda a viver de modo positivo a vida cristã. Entretanto, essa “teologia oficial” nunca foi estática, mas passou e continua passando por um processo de amadurecimento, de atualização, de revisão, de purificação, como diz o documento do Concílio Vaticano II sobre a Igreja, Lumen Gentium n. 8,[2] ao falar da própria Igreja, sendo uma teologia sempre necessitada de reforma, de revisão, porque é feita por homens e mulheres pecadores, limitados, que não são capazes de esgotar todo o conteúdo da Revelação.
Do mesmo modo, a Teologia da Libertação é um discurso teológico que passa pelo mesmo processo da “teologia oficial”. Ela propõe uma maneira de fazer teologia que parte da realidade de exclusão e de morte em que vivem milhões de pessoas, em busca de uma vivência da fé cristã que não ignore essa realidade, mas assuma uma práxis transformadora à luz da Revelação que é a fonte de toda e qualquer teologia cristã. Por causa disso, a Teologia da Libertação destaca alguns aspectos da Revelação em busca de uma práxis cristã autenticamente libertadora dentro dessa realidade injusta.
A diferença fundamental entre essas “teologias”, ao meu ver, encontra-se no fato de que a chamada “teologia oficial” é considerada a teologia normativa, ou seja, é o discurso teológico que estabelece a base do discurso de fé assumido pela Igreja como um todo, fruto de sua bagagem histórica amadurecida com as diversas experiências e teologias vividas. Já a Teologia da Libertação é um discurso que busca ligar a fé e a vida em um contexto concreto, procurando responder a uma realidade concreta a luz da Revelação cristã.
Ambas as teologias, dentro de um processo contínuo de reflexão e interpretação, estão em constante evolução, com acertos e erros, em um amadurecimento contínuo. Porém, não posso deixar de destacar que a Teologia da Libertação oferece uma importante contribuição para o universo do pensamento teológico, pois ela deu destaque para a pessoa do pobre e para a realidade da pobreza dentro da reflexão teológica, oferecendo um princípio hermenêutico que procura partir da vida concreta, buscando lê-la em diálogo com a Revelação, e isso trouxe importantes avanços para o fazer teológico, inclusive enriquecendo o discurso da “teologia oficial” com novas perspectivas.
Assim sendo, acho estranho certos discursos que atacam a Teologia da Libertação, pois ao ouvi-los ou lê-los eles me soam como clichês que são repetidos por pessoas que nunca leram textos importantes produzidos por essa corrente teológica. Apenas repetem estereótipos sem nenhum conteúdo significativo, ou repetem teólogos críticos à Teologia da Libertação, “representantes” da “teologia oficial”, simplesmente para ter uma autoridade que sustente sua posição, mas eles mesmos não conhecem nada de verdade sobre o assunto.
Acredito que esse tipo de postura não contribui em nada para a teologia como um todo.
O debate teológico sempre fez parte da vida da Igreja. Os Concílios e Sínodos ocorridos no decorrer da história estão marcados por embates teológicos que permitiram a reflexão sobre a Revelação se desenvolver. Uma característica interessante é que várias coisas foram ajustadas, corrigidas e revogadas com o passar do tempo, fruto desse saudável (mesmo que nem sempre tranquilo) embate entre diferentes correntes teológicas.
Acredito que o debate deve continuar, faz parte de toda e qualquer ciência. Entretanto, não posso admitir um debate superficial, movido por argumentos rasos sem conhecimento de causa. O discurso teológico oficial possui elementos que precisam e devem ser criticados para que possa continuar se desenvolvendo, assim como a Teologia da Libertação, enquanto corrente teológica nascida na América Latina, mas parte da grande tradição teológica da Igreja, também precisa ser criticada para que possa corrigir-se e avançar.
Ambas “teologias” fazem parte de um processo hermenêutico que busca compreender e meios para viver a Revelação de Deus em Jesus Cristo, fundamento da nossa fé cristã. Cada qual segue princípios metodológicos que hora são comuns ora são próprios. Qual a melhor? Para mim não há melhor, o que há são caminhos. Sou, por formação, muito mais simpático à proposta metodológica da Teologia da Libertação, entretanto, sei que ela, enquanto uma corrente teológica entre outras, não esgota as possibilidades de reflexão e de respostas que buscamos por meio da teologia.
Quero convidar você a ler e se aprofundar sobre as diversas abordagens teológicas que existem. Aqui tratei somente da Teologia da Libertação colocando-a em paralelo com a chamada “teologia oficial”. Entretanto, existem várias correntes teológicas que desenvolvem sua reflexão a partir de várias perspectivas.[3] Para citar algumas temos: a teologia existencial, a teologia política, a teologia da história, a teologia da secularização, entre outras. Todas elas estão procurando descobrir como a Revelação pode ser resposta significativa para os homens e mulheres do nosso tempo.
Portanto, vamos ler, vamos estudar, vamos conhecer, somente depois disso, vamos debater, vamos nos posicionar, vamos “teologar” sobre tudo isso. Assim poderemos contribuir de maneira significativa com o pensamento teológico.




[1] Utilizo esse termo entre aspas e com iniciais em minúsculo porque entendo que não existe uma “teologia oficial”, o que existe é Teologia com suas correntes. Em meio a essas correntes há um discurso oficial, sustentado pelo Magistério da Igreja, que tem por finalidade conservar os fundamentos da fé cristã, mas não é uma corrente em si mesmo, pois ele vai assumindo com o passar do tempo elementos das várias correntes teológicas na medida em que a reflexão teológica avança. Há também a Teologia da Libertação que é uma corrente teológica entre outras e, por isso a escrevo com iniciais maiúsculas, por ser ela identificável de forma específica.
[2] “[...] a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação.” (LG 8).
[3] Indico um excelente livro: GIBELLINI, Rosino. A Teologia do século XX. 2.ed. Trad. João Paixão Neto. São Paulo: Loyola, 2002.

Um comentário:

  1. Conheci seu blog hoje e estou muito grata pelos seus textos! Parabéns pelo trabalho e obrigada por compartilhar.

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