domingo, 15 de julho de 2018

A memória do sofrimento das vítimas da violência

Manifestação do documentário
"Nossos mortos tem voz"

             Lendo uma aloução de Paul Ricoeur,[1] feita em 1989, por ocasião do dia em que se fazia memória das vítimas do Holocausto, percebi em suas palavras algo que me deixou profundamente inquieto diante do contexto de violência em que nos encontramos nesses tempos.
O luterano e filósofo francês afirmava que o fazer memória das vítimas tem um significado importante para todos nós.
Vou tentar colocar, aqui, um pouco do que compreendi de sua reflexão porque acredito que é provocativa e enriquecedora para todos nós.
Um fato que experimentamos é a morte injusta e violenta de pessoas por causa de seus ideais, ou por lhes ter negado o direito de viver suas vidas sendo respeitadas pelo que são (raça, cultura, gênero), ou pelo exercício honesto de seu ofício para viver.
Olhando esse contexto é inevitável nos perguntarmos o porquê de tudo isso. A busca de resposta no coloca em caminhos diversos e até mesmo absurdos.
Em uma mentalidade de retribuição, afirma-se que quem matou é culpado, mas a vítima também é culpada porque “se meteu nisso”. Essa mentalidade coloca no mesmo nível assassino e vítima, tratando-os igualmente como responsáveis. É um tipo de discurso que nega o direito da vítima de existir enquanto memória, pois a morte já lhe negou o direito de simplesmente existir.
Um primeiro pensamento de Ricoeur nos provoca outra visão. Ao afirmar que precisamos fazer memória das vítimas, ele nos deixa claro que existem vítimas e algozes, existem os que executam e o que foram executados.
É necessário sempre fazer memória das vítimas. Mas por quê? Vamos aprofundar um pouco isso!
As vítimas que se tornaram símbolos referenciais do sofrimento de milhares de anônimos nos interpelam para que não esqueçamos o porquê elas morreram, pelo quê elas morreram, e que existem, infelizmente, muitos que como elas também perecem. Na memória dessas vítimas todas as vítimas são tornadas presentes.
A título de exemplo, recordo algumas vítimas de ontem e de hoje que se tornaram simbólicas, como é o caso de Chico Mendes, de Ir. Dorothy, de Margarida Maria Alves, de Marielle Franco, dos povos indígenas sem direito a conservar sua cultura e suas terras, das vítimas da homofobia e do feminicídio, dos anônimos que morreram lutando em defesa dos direitos humanos, das vítimas da ditadura militar no Brasil, dos que procuram garantir a justiça e a segurança da população e são mortos no cumprimento desse dever, entre tantos outros.
Fazer memória das vítimas é importante para dar-lhes uma voz, a voz que lhes foi recusada pela violência que sofreram. O nobel da paz, Eliel Wiesel, afirmou: “Talvez não seja dado aos humanos apagar o mal, mas podem tornar-se a tomada de consciência do mal”.
Fazer memória das vítimas não é um conformismo com o mal gerado pela violência, mas é um meio de tomarmos consciência da existência desse mal, de suas causas e consequências. É manter ecoando as vozes que a violência física tentou calar. Fazer memória do horror e da violência sofridas pelas vítimas impede que caia no esquecimento o que provocou esse mesmo horror e violência.
Rememorando e narrando o que aconteceu, evitamos que o esquecimento mate as vítimas uma segunda vez e evitamos que a história de suas vidas se torne banal. Mantemos, desse modo, a dimensão escandalosa do acontecimento, não fechando ele em uma explicação simplista e rasteira, mas deixando que esse escandaloso nos incomode e provoque na busca de novos caminhos para que acontecimentos como esses não se repitam.
Memorial dos judeus mortos na Europa
durante a Segunda Guerra Mundial
Na Alemanha, por exemplo, os alunos estudam desde cedo sobre a Segunda Guerra Mundial e sobre o genocídio perpetrado pelo Nazismo. Isso acontece para que as novas gerações aprendam com os erros do passado de sua própria história. Eles não negam as mazelas de seu passado enquanto nação, mas fazem memória para que aqueles que não viveram nem viram o que aconteceu não repitam o mesmo caminho. Fazer memória das vítimas do regime nazista mantém suas vozes ecoando ainda hoje como um grito de alerta, não somente para os alemães ou para os judeus, mas para todo o mundo.
Fazer memória é não deixar que a história se perca, especialmente naquilo que ela tem de mais duro e cruel. Esquecer as vítimas é esquecer a crueldade que as gerou, arriscando-nos a continuar repetindo essa mesma crueldade gerando novas vítimas.
Vamos manter viva a memória das vítimas da violência, violência que nega o direito de uma vida digna para todas as pessoas, pois mantendo sua memória mantemos suas vozes ainda nos interpelando para que transformemos esse mundo, para que não repitamos os caminhos que lhes ceifaram a vida, para que construamos um mundo mais humano e fraterno.


[1] RICOEUR, Paul. A hermenêutica bíblica. São Paulo: Loyola, 2006, p. 239-243.


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