segunda-feira, 5 de novembro de 2018

“Deus acima de todos!?”



Autoria: Marcos Maciel de Souza Araújo[1]

         No dia 28 de outubro de 2018, os brasileiros foram as urnas e elegeram, com um pouco mais de 55% dos votos válidos, o deputado Jair Bolsonaro para presidente da república. A campanha desse ano foi especialmente marcada por extremismos, que resultaram em discursos de ódio e divisões em diversas esferas da sociedade, como nas famílias e até na Igreja.
O presidente eleito representa a extrema direita e surgiu no quadro político brasileiro como uma resposta aos governos anteriores maculados pela corrupção que desencadeou uma grande crise política e econômica. Nisso se destaca o partido dos trabalhadores (PT) que, por ser o partido que estava à frente do poder executivo nacional e ter uma parte significativa dos seus líderes acusados e até presos por corrupção, acabou se tornando o grande representante dos grupos corruptos, ainda que não seja o único partido incluído e nem o que mais tem integrantes envolvidos em escândalos.
            Bolsonaro, apesar de, ao longo de sua vida política, ter feito várias declarações polêmicas e de cunho preconceituoso, homofóbico, xenofóbico, misógino e racista, fez uma campanha em nome da “moral, dos bons costumes, da família tradicional e de Deus”, para isso usou como lema de sua campanha e de sua chapa a frase “Brasil a cima de tudo e Deus acima de todos”.  
            Agora, após o resultado, parece-me que o presidente eleito continuará com o seu bordão e talvez até o torne lema pessoal de sua gestão, haja vista que já em seus discursos como presidente eleito continua a usá-lo, sempre o utilizando para finalizar os seus pronunciamentos. Essa frase se tornou como que sua assinatura após cada discurso, se tornou uma espécie de “amém” usado pelos cristãos, se tornou o ponto alto onde, ao ser pronunciada, os seus apoiadores entram em euforia.
Acredito que a primeira parte da frase “Brasil a cima de tudo”, para um presidente da república está corretamente empregada, afinal é dever dele colocar os interesses nacionais, o desenvolvimento do país e o bem comum da população como prioridade e acima de qualquer interesse ou benefício pessoal ou de terceiros. Porém até que ponto cabe a segunda parte do “Deus acima de todos”? Será que seria ético e correto sua utilização por um representante do estado? E até mesmo no discurso teológico, seria ela benéfica para os que ainda não possuem uma fé madura ou esclarecida? E, afinal, qual seria esse Deus?    
            Bom, começo respondendo a essas indagações partindo do campo político, ético e jurídico. Para isso, lembro que já em seu compromisso constitucional no dia da posse, o presidente promete “manter, defender e cumprir a constituição”, assim sendo, ele torna-se o primeiro representante desta. Partindo deste ponto, recordamos que, conforme o inciso VI do artigo 5º, bem como o inciso I do artigo 19 da Constituição Federal, o Brasil se configura como um Estado laico, logo, defende a liberdade de qualquer crença, mas não professa nenhuma e consequentemente se mantém neutro. Embora segundo o índice do IBGE de 2010, a maioria da população brasileira (estatisticamente 86,8%) se declare cristã (católicos e protestantes), existe uma parcela significativa (13,2%) que não professam a fé cristã ou até mesmo que não professam nenhuma fé[2].
Entendo que a partir do momento em que é eleito, o presidente se torna o presidente de todos os cidadãos, independente das suas concepções morais e religiosas devendo, portanto, governar para todos, sem excluir as minorias. Somando todos esses fatos, presumo que não é ético para o presidente, nas atividades do exercício do seu cargo, manter ou insistir num discurso religioso como fonte, amparo ou argumento de suas realizações. Isso, obviamente, não quer dizer que em sua intimidade ou fora das suas atividades oficiais ou em colocações que não se refiram ao governo, ele não possa professar sua fé e suas convicções, mas, pelo contrário, nessas situações ele até o deve fazer como resposta a sua fé.   
            Partindo para o campo da análise teológica, o primeiro questionamento que fazemos é a respeito de qual é o Deus que a frase se refere, afinal, mesmo no nosso país, existe uma variedade de culturas e religiões, por conseguinte, variadas imagens de Deus. No entanto, pelas declarações e pela história de fé de Bolsonaro, fica evidente que se refere ao Deus dos cristãos. Na teologia, e até mesmo na psicologia, algumas correntes defendem que a imagem que temos de Deus relaciona-se diretamente com quem somos, com o que nos tornamos ao longo da vida ou com o que aspiramos e defendemos. Por isso, quando ouço Bolsonaro afirmar sobre o “Deus acima de todos”, fico refletindo qual seria a imagem de Deus que ele tem, já que em suas famosas declarações polêmicas chegou a defender a tortura e a pena de morte, negou que existiu a ditadura no brasil e mesmo sobre essa afirmou que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”[3]; demonstrou por diversas vezes intolerância com quem pensa diferente, sobretudo com os homossexuais, chegando ao ponto de afirmar que "Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo [...]"[4]. Deixou também claro em uma entrevista o seu racismo ao afirmar que os filhos dele foram bem educados e não correria o risco de namorarem com uma negra[5], e não menos grave considerou a mulher inferior ao homem, como por exemplo quando afirmou que não empregaria uma mulher com o mesmo salário do que o dele por ser homem[6].
Para qualquer um que conhece pelo menos o básico do Evangelho, fica clara a distância de coerência entre todos esses posicionamentos e a mensagem evangélica, que defende sobretudo a dignidade humana e o respeito fraterno. Bom, talvez Bolsonaro, até pela sua trajetória militar, acostumado com o autoritarismo, com a hierarquia, com o uso da força e da violência para vencer o inimigo, tenha de fato uma visão desse Deus que está acima de todos, que está na posição do “comandante e chefe” do universo, onde todas as criaturas nada mais são do que seus comandados que devem obedecer sem qualquer tipo de questionamento, ou caso contrário receberão a punição devida.     
            Grande parte dos apoiadores de Bolsonaro parecem compartilhar da mesma visão que ele do “Deus acima de todos”. Não obstante, há um fato em peculiar que não podemos deixar passar despercebido, que é o do perfil do eleitor. De modo geral, se observou que as elites e as classes dominantes brasileiras, ou seja, o pessoal “de cima”, apoiaram a candidatura de Bolsonaro, enquanto que as pessoas mais pobres, oprimidas ou que fazem parte dos grupos de “minoria”, ou seja, o pessoal “de baixo”, decidiram se posicionar contra, o maior fato disto é que na região nordeste, que é a região mais pobre do Brasil[7], Bolsonaro foi derrotado em todos os estados e com uma diferença expressiva. Esta observação, me leva a pensar que embora para muitos pobres Deus seja “tudo na vida” deles, não é ainda esse Deus acima deles, ou pelo menos não esperam que Ele esteja, como todos os outros, acima deles, mas com eles. Me encanta muito a sabedoria do pessoal simples, pobre, marginalizados ou excluídos, pois apesar de sua pouca instrução, são capazes de falar profundamente de Deus, pois o que eles conhecem de Deus não são o que leram em livros, mas verdades de experiências de vida que tiveram com Deus, são testemunhos autênticos e verdadeiros, carregados de fé e piedade.
            Neste ponto, como acadêmico de teologia, acredito que quem opta por não ficar com o discurso do “Deus acima de todos”, se aproxima com maior sublimidade do que Deus realmente revelou a todos nós sobre Ele em toda a história do plano divino da Salvação. Ao observar a dinâmica de Deus ao decorrer de toda a Sagrada Escritura, chego à conclusão de que Deus realmente nunca quis estar acima de todos, mas que, ao contrário, quis estar e habitar entre os seus (Ex 25,8), e mais do que isso, quis estar dentro do coração do homem (Ez 36,26). O maior argumento desse querer de Deus de não ser tratado de modo excedente, é o próprio Jesus Cristo, que como nos diz o hino cristológico de Fl 2, 6-11, abriu mão de ser tratado como um Deus, e se despojou tomando a forma de escravo, ou seja, do menor entre todos.
            Por estes fatos, revelados a nós por meio das escrituras sagradas, prefiro ficar com a posição do “Deus entre nós”. De um Deus que sempre quis estar próximo e entrar na dinâmica da vida humana, que faz do homem a sua imagem e semelhança e confia a criação ao seu domínio, para que juntos, lado a lado, a governassem (Gn 1,1 – 2,25), que caminha com o seu povo (Ex 15,22 – 18,27), que estabelece a sua morada entre os seus (Ex 40,34-38). Prefiro reconhece-lo como um Deus que se fez homem igual a nós, exceto no pecado, mas que se inclina para ficar na altura do pecador (Jo 8,6-11), que mesmo sendo mestre e senhor retira seu manto, símbolo de sua dignidade, e lava os pés dos seus discípulos (Jo 13,1-20) sinal de servidão, humildade e caridade. Sobretudo, ao contemplar os atos de Jesus, que sempre se faz presente entre o povo, que dá atenção aos menos privilegiados, que devolve a dignidade a quem julgavam não ter, que nunca buscou prestígio para si, é que me dificulta e até me impede de chegar a dimensão de um Deus que dizem querer ser tratado “acima de todos”. Não consigo perceber esse Deus distante, que está o tempo todo no alto, que me faz não parecer digno de me aproximar, que fica além do véu no santo dos santos... afinal, se está acima de todos, não está perto de nós.
            Deus é simples, por isso consigo contemplar e ver a presença dele no meu irmão que é feito a imagem e semelhança Dele, que faz parte de um corpo místico, que se deifica porque Deus se humanizou. É bem verdade que Deus é e está na Glória, mas não podemos esquecer que essa Glória se manifestou sobretudo na cruz, que teve de passar pela fragilidade humana para lucra-la também à nós. E sim, Deus também é majestoso e poderoso, contudo sabemos que para Deus o poder só tem sentido quando significa serviço e caridade prestada, por essa razão, conjecturo que Deus é o maior, pois se fez o menor.
Aqui, lembro-me da Eucaristia e percebo que Ele continua a se fazer o menor, pois embora não precisasse, quer Ele continuar se fazendo presente de modo real na fragilidade e na pequenez de uma hóstia consagrada, hóstia essa que ao recebermos mesmo miseráveis como somos, nos permite entrar em comunhão com Ele, já aqui, participantes da Glória final que há de vir. Deus não está longe, mas está ao nosso lado, Deus está dentro de todos nós, Deus está no céu com os que foram salvos, por isso Ele é tão grande. Nosso abbá, nosso “paizinho”, está pertinho, está onde quer que estejamos, e é com nossa vida doada aos outros, que glorificamos a Ele que se faz presente nos nossos irmãos, mesmo os mais ínfimos.    
            Definitivamente, não gosto da frase “Deus acima de todos”, e até acho muito arriscado utilizá-la em discursos de evangelização, pois ela intrinsicamente dá uma ideia de distância, de indignidade e de opressão. Presumo que um pecador ou até mesmo quem ainda não conheceu a mensagem de Deus, ao ouvi-la fica ainda mais receoso de se aproximar por se julgar desmerecedor de algo tão elevado, o que resulta na incapacidade deste de não experimentar desse amor tão pleno e transbordante de humildade. Não utilizar e não concordar com a frase “Deus acima de todos”, não quer dizer, como alguns possam alegar, que estou querendo diminuir o tamanho de Deus, pelo contrário, creio sim, que é o maior, o mais poderoso, o mais digno de louvor, porém, assim o é por Ele ser o primeiro a entrar na dinâmica do “Quem quiser ser o maior, que seja o menor” (Lc 22,26).
            Tenho consciência clara, enquanto teólogo em formação, que é perigoso achar que podemos ver Deus só do nosso jeito, ou que Ele caiba apenas em minha visão. Por essa razão, reconheço que Ele é muito mais do que imagino ou defendo, que Ele transborda todas as minhas limitações, que Ele supera todo o meu intelecto, no entanto, confio que Ele se revela em meu coração e me permite conhece-lo para dar a conhecer. Minha teologia é o maior sinal do reconhecimento da minha incapacidade de falar perfeitamente de Deus, por isso, além da minha vida sacramental, que me comunica Deus, também recorro ao estudo para tentar fazer a minha pequena parte de evangelizador. Posso chegar até a cometer erros teológicos ou dizer asneiras, mas Deus que conhece perfeitamente o meu íntimo, sabe que a minha intenção nada mais é do que tentar mostrar aos meus irmãos o melhor caminho para entrar na dinâmica do Reino de Deus.
É urgente a nossa necessidade de conversão sincera, precisamos anunciar com nossa vida a presença de Deus entre nós, não dá para ficar apenas no discurso apontando para o alto, para alguém que está longe e esquecer dos que estão pelo caminho e ao nosso lado, por isso o meu grito de ordem é “DEUS NO CORAÇÃO DE TODOS”.   
                       



[1] Graduando em teologia pela Faculdade Diocesana de Mossoró – FDM.

Um comentário:

  1. Muito boa a reflexão! Vivamos e propusemos "Deus no coração de todas e todos! Frei Antônio Carlos, ofm.

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