Autoria: Marcos
Maciel de Souza Araújo[1]
No
dia 28 de outubro de 2018, os brasileiros foram as urnas e elegeram, com um
pouco mais de 55% dos votos válidos, o deputado Jair Bolsonaro para presidente
da república. A campanha desse ano foi especialmente marcada por extremismos,
que resultaram em discursos de ódio e divisões em diversas esferas da
sociedade, como nas famílias e até na Igreja.
O
presidente eleito representa a extrema direita e surgiu no quadro político
brasileiro como uma resposta aos governos anteriores maculados pela corrupção
que desencadeou uma grande crise política e econômica. Nisso se destaca o
partido dos trabalhadores (PT) que, por ser o partido que estava à frente do
poder executivo nacional e ter uma parte significativa dos seus líderes
acusados e até presos por corrupção, acabou se tornando o grande representante
dos grupos corruptos, ainda que não seja o único partido incluído e nem o que
mais tem integrantes envolvidos em escândalos.
Bolsonaro, apesar de, ao longo de
sua vida política, ter feito várias declarações polêmicas e de cunho
preconceituoso, homofóbico, xenofóbico, misógino e racista, fez uma campanha em
nome da “moral, dos bons costumes, da família tradicional e de Deus”, para isso
usou como lema de sua campanha e de sua chapa a frase “Brasil a cima de tudo e Deus
acima de todos”.
Agora, após o resultado, parece-me
que o presidente eleito continuará com o seu bordão e talvez até o torne lema
pessoal de sua gestão, haja vista que já em seus discursos como presidente
eleito continua a usá-lo, sempre o utilizando para finalizar os seus
pronunciamentos. Essa frase se tornou como que sua assinatura após cada
discurso, se tornou uma espécie de “amém” usado pelos cristãos, se tornou o
ponto alto onde, ao ser pronunciada, os seus apoiadores entram em euforia.
Acredito
que a primeira parte da frase “Brasil a cima de tudo”, para um presidente da
república está corretamente empregada, afinal é dever dele colocar os
interesses nacionais, o desenvolvimento do país e o bem comum da população como
prioridade e acima de qualquer interesse ou benefício pessoal ou de terceiros. Porém
até que ponto cabe a segunda parte do “Deus acima de todos”? Será que seria
ético e correto sua utilização por um representante do estado? E até mesmo no
discurso teológico, seria ela benéfica para os que ainda não possuem uma fé
madura ou esclarecida? E, afinal, qual seria esse Deus?
Bom, começo respondendo a essas
indagações partindo do campo político, ético e jurídico. Para isso, lembro que já
em seu compromisso constitucional no dia da posse, o presidente promete
“manter, defender e cumprir a constituição”, assim sendo, ele torna-se o
primeiro representante desta. Partindo deste ponto, recordamos que, conforme o
inciso VI do artigo 5º, bem como o inciso I do artigo 19 da Constituição
Federal, o Brasil se configura como um Estado laico, logo, defende a liberdade
de qualquer crença, mas não professa nenhuma e consequentemente se mantém neutro.
Embora segundo o índice do IBGE de 2010, a maioria da população brasileira
(estatisticamente 86,8%) se declare cristã (católicos e protestantes), existe
uma parcela significativa (13,2%) que não professam a fé cristã ou até mesmo
que não professam nenhuma fé[2].
Entendo
que a partir do momento em que é eleito, o presidente se torna o presidente de
todos os cidadãos, independente das suas concepções morais e religiosas
devendo, portanto, governar para todos, sem excluir as minorias. Somando todos
esses fatos, presumo que não é ético para o presidente, nas atividades do
exercício do seu cargo, manter ou insistir num discurso religioso como fonte,
amparo ou argumento de suas realizações. Isso, obviamente, não quer dizer que
em sua intimidade ou fora das suas atividades oficiais ou em colocações que não
se refiram ao governo, ele não possa professar sua fé e suas convicções, mas,
pelo contrário, nessas situações ele até o deve fazer como resposta a sua
fé.
Partindo para o campo da análise
teológica, o primeiro questionamento que fazemos é a respeito de qual é o Deus
que a frase se refere, afinal, mesmo no nosso país, existe uma variedade de
culturas e religiões, por conseguinte, variadas imagens de Deus. No entanto,
pelas declarações e pela história de fé de Bolsonaro, fica evidente que se
refere ao Deus dos cristãos. Na teologia, e até mesmo na psicologia, algumas
correntes defendem que a imagem que temos de Deus relaciona-se diretamente com
quem somos, com o que nos tornamos ao longo da vida ou com o que aspiramos e
defendemos. Por isso, quando ouço Bolsonaro afirmar sobre o “Deus acima de
todos”, fico refletindo qual seria a imagem de Deus que ele tem, já que em suas
famosas declarações polêmicas chegou a defender a tortura e a pena de morte,
negou que existiu a ditadura no brasil e mesmo sobre essa afirmou que “o erro
da ditadura foi torturar e não matar”[3]; demonstrou
por diversas vezes intolerância com quem pensa diferente, sobretudo com os
homossexuais, chegando ao ponto de afirmar que "Seria
incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui:
prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por
aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo [...]"[4].
Deixou também claro em uma entrevista o seu racismo ao afirmar que os filhos
dele foram bem educados e não correria o risco de namorarem com uma negra[5], e
não menos grave considerou a mulher inferior ao homem, como por exemplo quando
afirmou que não empregaria uma mulher com o mesmo salário do que o dele por ser
homem[6].
Para
qualquer um que conhece pelo menos o básico do Evangelho, fica clara a
distância de coerência entre todos esses posicionamentos e a mensagem
evangélica, que defende sobretudo a dignidade humana e o respeito fraterno. Bom,
talvez Bolsonaro, até pela sua trajetória militar, acostumado com o
autoritarismo, com a hierarquia, com o uso da força e da violência para vencer
o inimigo, tenha de fato uma visão desse Deus que está acima de todos, que está
na posição do “comandante e chefe” do universo, onde todas as criaturas nada
mais são do que seus comandados que devem obedecer sem qualquer tipo de
questionamento, ou caso contrário receberão a punição devida.
Grande parte dos apoiadores de
Bolsonaro parecem compartilhar da mesma visão que ele do “Deus acima de todos”.
Não obstante, há um fato em peculiar que não podemos deixar passar
despercebido, que é o do perfil do eleitor. De modo geral, se observou que as
elites e as classes dominantes brasileiras, ou seja, o pessoal “de cima”,
apoiaram a candidatura de Bolsonaro, enquanto que as pessoas mais pobres, oprimidas
ou que fazem parte dos grupos de “minoria”, ou seja, o pessoal “de baixo”,
decidiram se posicionar contra, o maior fato disto é que na região nordeste,
que é a região mais pobre do Brasil[7],
Bolsonaro foi derrotado em todos os estados e com uma diferença expressiva.
Esta observação, me leva a pensar que embora para muitos pobres Deus seja “tudo
na vida” deles, não é ainda esse Deus acima deles, ou pelo menos não esperam
que Ele esteja, como todos os outros, acima deles, mas com eles. Me encanta
muito a sabedoria do pessoal simples, pobre, marginalizados ou excluídos, pois
apesar de sua pouca instrução, são capazes de falar profundamente de Deus, pois
o que eles conhecem de Deus não são o que leram em livros, mas verdades de
experiências de vida que tiveram com Deus, são testemunhos autênticos e
verdadeiros, carregados de fé e piedade.
Neste ponto, como acadêmico de
teologia, acredito que quem opta por não ficar com o discurso do “Deus acima de
todos”, se aproxima com maior sublimidade do que Deus realmente revelou a todos
nós sobre Ele em toda a história do plano divino da Salvação. Ao observar a
dinâmica de Deus ao decorrer de toda a Sagrada Escritura, chego à conclusão de
que Deus realmente nunca quis estar acima de todos, mas que, ao contrário, quis
estar e habitar entre os seus (Ex 25,8), e mais do que isso, quis estar dentro
do coração do homem (Ez 36,26). O maior argumento desse querer de Deus de não
ser tratado de modo excedente, é o próprio Jesus Cristo, que como nos diz o
hino cristológico de Fl 2, 6-11, abriu mão de ser tratado como um Deus, e se
despojou tomando a forma de escravo, ou seja, do menor entre todos.
Por estes fatos, revelados a nós por
meio das escrituras sagradas, prefiro ficar com a posição do “Deus entre nós”.
De um Deus que sempre quis estar próximo e entrar na dinâmica da vida humana,
que faz do homem a sua imagem e semelhança e confia a criação ao seu domínio,
para que juntos, lado a lado, a governassem (Gn 1,1 – 2,25), que caminha com o
seu povo (Ex 15,22 – 18,27), que estabelece a sua morada entre os seus (Ex 40,34-38).
Prefiro reconhece-lo como um Deus que se fez homem igual a nós, exceto no
pecado, mas que se inclina para ficar na altura do pecador (Jo 8,6-11), que mesmo
sendo mestre e senhor retira seu manto, símbolo de sua dignidade, e lava os pés
dos seus discípulos (Jo 13,1-20) sinal de servidão, humildade e caridade.
Sobretudo, ao contemplar os atos de Jesus, que sempre se faz presente entre o
povo, que dá atenção aos menos privilegiados, que devolve a dignidade a quem
julgavam não ter, que nunca buscou prestígio para si, é que me dificulta e até
me impede de chegar a dimensão de um Deus que dizem querer ser tratado “acima
de todos”. Não consigo perceber esse Deus distante, que está o tempo todo no
alto, que me faz não parecer digno de me aproximar, que fica além do véu no
santo dos santos... afinal, se está acima de todos, não está perto de nós.
Deus é simples, por isso consigo
contemplar e ver a presença dele no meu irmão que é feito a imagem e semelhança
Dele, que faz parte de um corpo místico, que se deifica porque Deus se
humanizou. É bem verdade que Deus é e está na Glória, mas não podemos esquecer
que essa Glória se manifestou sobretudo na cruz, que teve de passar pela
fragilidade humana para lucra-la também à nós. E sim, Deus também é majestoso e
poderoso, contudo sabemos que para Deus o poder só tem sentido quando significa
serviço e caridade prestada, por essa razão, conjecturo que Deus é o maior,
pois se fez o menor.
Aqui,
lembro-me da Eucaristia e percebo que Ele continua a se fazer o menor, pois
embora não precisasse, quer Ele continuar se fazendo presente de modo real na
fragilidade e na pequenez de uma hóstia consagrada, hóstia essa que ao
recebermos mesmo miseráveis como somos, nos permite entrar em comunhão com Ele,
já aqui, participantes da Glória final que há de vir. Deus não está longe, mas
está ao nosso lado, Deus está dentro de todos nós, Deus está no céu com os que
foram salvos, por isso Ele é tão grande. Nosso abbá, nosso “paizinho”, está pertinho, está onde quer que estejamos,
e é com nossa vida doada aos outros, que glorificamos a Ele que se faz presente
nos nossos irmãos, mesmo os mais ínfimos.
Definitivamente, não gosto da frase
“Deus acima de todos”, e até acho muito arriscado utilizá-la em discursos de
evangelização, pois ela intrinsicamente dá uma ideia de distância, de
indignidade e de opressão. Presumo que um pecador ou até mesmo quem ainda não
conheceu a mensagem de Deus, ao ouvi-la fica ainda mais receoso de se aproximar
por se julgar desmerecedor de algo tão elevado, o que resulta na incapacidade
deste de não experimentar desse amor tão pleno e transbordante de humildade.
Não utilizar e não concordar com a frase “Deus acima de todos”, não quer dizer,
como alguns possam alegar, que estou querendo diminuir o tamanho de Deus, pelo
contrário, creio sim, que é o maior, o mais poderoso, o mais digno de louvor,
porém, assim o é por Ele ser o primeiro a entrar na dinâmica do “Quem quiser
ser o maior, que seja o menor” (Lc 22,26).
Tenho consciência clara, enquanto
teólogo em formação, que é perigoso achar que podemos ver Deus só do nosso
jeito, ou que Ele caiba apenas em minha visão. Por essa razão, reconheço que
Ele é muito mais do que imagino ou defendo, que Ele transborda todas as minhas
limitações, que Ele supera todo o meu intelecto, no entanto, confio que Ele se
revela em meu coração e me permite conhece-lo para dar a conhecer. Minha
teologia é o maior sinal do reconhecimento da minha incapacidade de falar
perfeitamente de Deus, por isso, além da minha vida sacramental, que me
comunica Deus, também recorro ao estudo para tentar fazer a minha pequena parte
de evangelizador. Posso chegar até a cometer erros teológicos ou dizer
asneiras, mas Deus que conhece perfeitamente o meu íntimo, sabe que a minha
intenção nada mais é do que tentar mostrar aos meus irmãos o melhor caminho
para entrar na dinâmica do Reino de Deus.
É
urgente a nossa necessidade de conversão sincera, precisamos anunciar com nossa
vida a presença de Deus entre nós, não dá para ficar apenas no discurso
apontando para o alto, para alguém que está longe e esquecer dos que estão pelo
caminho e ao nosso lado, por isso o meu grito de ordem é “DEUS NO CORAÇÃO DE
TODOS”.
[1] Graduando em teologia pela
Faculdade Diocesana de Mossoró – FDM.
[2] Disponível em: <https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/o-ibge-e-a-religiao-cristaos-sao-86-8-do-brasil-catolicos-caem-para-64-6-evangelicos-ja-sao-22-2/> Acesso em: 31/10/2018.
[3] Disponível em: <https://exame.abril.com.br/brasil/frases-polemicas-do-candidato-jair-bolsonaro/> Acesso em: 31/10/2018.
[4] Disponível em: < https://www.terra.com.br/noticias/brasil/bolsonaro-prefiro-filho-morto-em-acidente-a-um-homossexual,cf89cc00a90ea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html > Acesso em: 31/10/2018
[7] Disponível em: < https://super.abril.com.br/comportamento/onde-estao-os-pobres-do-brasil/ > Acesso em: 01/11/2018
Muito boa a reflexão! Vivamos e propusemos "Deus no coração de todas e todos! Frei Antônio Carlos, ofm.
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