Cultura eclesiástica de cassino
José Lisboa Moreira de Oliveira *
Adital -
Esta circulando na Internet a propaganda de um livro de certo padre cantor, conhecido pelas bobagens que diz e pela incapacidade de conduzir uma reflexão que seja ao mesmo tempo profunda, sensata e equilibrada. O modo de falar e de se apresentar deste padre é paupérrimo e não contribui em nada para a formação das pessoas. Suas falas, feitas de frases soltas, às vezes, monossilábicas, demonstram a sua insegurança e a sua incompetência. São um verdadeiro desfile de besterol e de idiotices voltado para um público devorador de lixo religioso.
A capa do livro é quase toda tomada pela foto do padre, demonstrando que o seu objetivo não é o anúncio do Reino de Jesus, mas a egolatria. Normalmente os bons livros trazem, com certa discrição, na contracapa ou na orelha um breve currículo do autor e, algumas vezes, nesse mesmo espaço, uma pequena foto do escritor. Ora, ao publicar um livro religioso cuja capa é a própria fotografia fica evidente a egolatria do autor. O livro não quer propor nada de cristão ou evangélico, mas exibir o sujeito, sem dúvida alguma carente e necessitado de reconhecimento e de aplausos de um público. Tal sujeito deve ser tão fragilizado que não suporta-ria viver sem aplausos. Por isso toda essa ânsia de se mostrar.
Além disso, o livro traz o padre vestido com um hábito monacal medieval, fora da realidade e de época. Algo que se constitui numa mentira e numa forma de enganar os mais simples, uma vez que tal padre não pertence a nenhuma ordem religiosa. Não é necessário ser psicólogo para entender que o uso desses hábitos religiosos medievais e extravagantes revela pelo menos três fragilidades do sujeito. Em primeiro lugar a necessidade de esconder a real identidade. Por baixo de tantas roupas há um ser humano muito inseguro, fraco e debilitado psicologicamente, que não suportaria ser ele mesmo diante dos outros. A segunda, consequência da primeira, é a necessidade de manter-se distante das pessoas. Esses hábitos exóticos criam uma falsa áurea de santidade e fazem com que os que com eles se vestem se coloquem acima dos demais, não permitindo maiores intimidades. A intimidade faria com que as pessoas descobrissem quem realmente está por baixo desses panos todos. Por fim, a terceira fragilidade seria a necessidade de se exibir e de se mostrar. Sem identidade definida e sem capacidade para criar relacionamentos firmes e duradouros, tais sujeitos sentem necessidade de serem vistos, idolatrados e aplaudidos. Se tivessem que se apresentar como um "simples homem" (Fl 2,7), à maneira de Jesus, entrariam em desespero, em pânico. Não agüentariam. Seriam capazes até mesmo de se suicidarem.
Esses personagens me fazem lembrar daquilo que Zygmunt Bauman, no seu livro Comunidade: a busca por segurança no mundo atual (Rio de Janeiro: Zahar, 2003), apoiando-se em George Steiner, chama de "cultura de cassino". Trata-se, segundo o nosso autor, da cultura dos ídolos. Nela "os ídolos devem ser brilhantes a ponto de ofuscar os espectadores e formidáveis a ponto de ocupar inteiramente o placo; mas devem ser também voláteis e móveis - de maneira a poderem desaparecer rapidamente da memória deixando a cena para a multidão dos ídolos à espera da vez" (p. 65).
Tal cultura se caracteriza, segundo Bauman, pela ausência de sedimentação de laços duradouros. Os fãs ficam encantados com o que é apenas um instante passageiro. Os milagres realizados pelos ídolos são extraordinários, inacreditáveis. Mas não há nenhuma experiência verdadeira de comunidade. Embora, em princípio, pareça haver muita união entre os membros do fã clube, ela na verdade não existe, pois os laços são eternos apenas "enquanto duram", ou seja, enquanto satisfazem os desejos consumistas da clientela. Parece paradoxo, mas na cultura de cassino não existem compromissos duradouros, uma vez que tudo depende da capacidade do ídolo de manter o grupo coeso. Quando no cenário surge um novo ídolo todos debandam para novas paragens, deixando o outro completamente só. E entre os próprios fãs os laços se desfazem por completo, pois todos estão tomados apenas pelos desejos individuais e não querem saber de nenhuma forma de solidariedade. Eles, no dizer de Bauman são "habitantes móveis da extraterritorialidade". Sentem desconforto em se estabelecer num lugar e em ter que firmar um pacto sólido de amizade e de fidelidade.
Porque, sempre segundo Bauman, os ídolos são "feitos sob encomenda" e têm "uma vida fatiada em episódios", também as comunidades que se formam ao redor deles têm as mesmas características. São "comunidades instantâneas prontas para o consumo imediato - e também inteiramente descartáveis depois de usadas" (p. 66). São comunidades "estéticas", mas tal beleza é como aquela dos produtos cosméticos: após a lavagem do rosto se revelam cheias de rugas, isto é, cheias de fragilidades e de ilusões. Embora tais comunidades nunca deixem de existir totalmente, elas duram enquanto duram os ritos e rituais em torno da celebridade que está em ribalta naquele momento. Por isso elas se formam e se dissolvem com a mesma rapidez e, fora dos rituais, ou seja, na vida real, simples-mente não existem. Isso porque tais comunidades se formam em torno de problemas momentâneos e não em torno de causas duradouras. Às vezes se formam em torno de um evento, desde uma partida de futebol até uma "missa de cura". Mas terminados tais eventos essas comunidades se dissolvem e viram massa anônima, onde ninguém conhece ninguém e onde vale a lei do mais forte e da luta pela sobrevivência. E na luta pela sobrevivência impera o princípio do salve-se quem puder.
Desse modo, diz Bauman, tais comunidades são apenas "comunidades-cabide" nas quais "as aflições e preocupações experimentadas e enfrentadas individualmente são temporariamente penduradas por grande número de indivíduos" (p. 67). Porém, quando outros "cabides", considerados melhores, aparecem, tais indivíduos pegam os seus problemas e preocupações e vão pendurá-los em outros lugares. Dessa forma nunca se poderá tecer uma comunidade real, uma vez que ela será sempre uma comunidade de fugitivos, de transeuntes que nunca se fixam em lugar algum. Em tais comunidades tudo é superficial, transitório, sem responsabilidades e sem ética. Talvez a ética imperante aqui seja a ética utilitarista: vale o que é bom para o indivíduo. Isso porque, insiste Bauman, os laços aqui são "vínculos sem conseqüências", são "laços carnavalescos", ou seja, eles nunca são levados para casa, para a vida cotidiana. Aqui, na vida cotidiana, vale a crueldade, a dureza, o egoísmo e a maldade.
Qualquer pessoa com um pouco de cérebro sabe como as Igrejas, inclusive a Igreja Católica Romana, estão profundamente infectadas por essa "cultura de cassino". Sabe do desastre que isso significa para o amanhã de tais igrejas. Sabe também que a humanidade não tem futuro se ela não for formada por comunidades éticas, tecidas por compromissos sérios e duradouros, onde a partilha e a solidariedade são princípios fundamentais. No entanto, o que se vê é a omissão e o silêncio dos seus responsáveis, os quais ou nada dizem ou fazem de conta que isso não existe. Raciocinando com Bauman, ouso dizer que os membros da hierarquia, em sua incompetência e omissão, são incapazes de perceber que as três coisas que as pessoas buscam nessas comunidades descartáveis (certeza, segurança e proteção) jamais serão encontradas a não ser em comunidades verdadeiras.
Sem comunidades reais, permanentes, reunidas em torno de princípios éticos e autênticos valores, com compromissos duradouros, a busca nunca será saciada. Até quando as lideranças das Igrejas irão permitir que se continue apresentando para o povo falsas soluções? Até quando elas ficarão mergulhadas em "problemas filosóficos e dogmáticos", fazendo discursos vazios, discutindo "o sexo dos anjos", sem se preocupar com as reais contradições montadas pela "cultura eclesiástica de cassino"? Quando irão perceber que o perigo não está na teologia da libertação, mas no "cristianismo carnavalesco" que se instaurou dentro das Igrejas? Alguém pode me responder?
* Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília
FONTE: www.adital.com.br
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