Essa semana
começou o tempo da Quaresma para o mundo cristão católico. É um tempo de
preparação para a celebração da Páscoa Cristã que tem como centro a paixão,
morte e ressurreição de Jesus.
O primeiro rito
desse tempo é a imposição das cinzas sobre a cabeça dos fieis em sinal de
penitência, como sinal de que reconhecemos que sozinhos facilmente erramos o
caminho e de que somos necessitados da graça de Deus para sermos pessoas
melhores. Pedimos perdão por nossos pecados (erros, falhas, quedas) e nos
dispomos a mudar, a crescer na fé e no amor, iluminados pelo Evangelho de
Jesus.
Participando da
celebração da Quarta-feira de Cinzas, escutei essa frase de uma das leituras da
liturgia: “deixai-vos reconciliar com Deus”.[1]
Ela me fez parar e pensar sobre seu significado mais profundo. Veja bem, caro
leitor e cara leitora, não é um simples convite de reconciliação com Deus, de
quem nos afastamos por causa de nossos pecados. Percebi algo importante nessa
frase e que quase sempre esquecemos: a presença da liberdade humana na nossa relação
com Deus.
O apóstolo diz “deixai-vos”,
ou seja, uma iniciativa nossa é necessária para que se realize o desejo de Deus
que é estabelecer uma relação de comunhão conosco, nos levando a vivermos a
vida nova que, em Cristo, nos foi dada por meio de sua vida, morte e
ressurreição (sua Páscoa). Um ato livre do ser humano é solicitado para que a reconciliação
aconteça, em outras palavras, para que uma mudança radical em nossas vidas
aconteça e nos tornemos pessoas humanizadas segundo o desejo de Deus.
Essa perspectiva
do apelo à liberdade humana para a realização dessa obra de reconciliação
desejada por Deus nos coloca diante de um dilema: Deus tem uma “vontade”, um “desejo”
em relação à humanidade, entretanto os seres humanos são livres e podem recusar
essa vontade. Desse modo, Deus se torna “impotente” diante da liberdade humana,
pois ele não poderia impor seu desejo sem nos transformar em ‘”coisas”, em
objetos manipuláveis, em escravos submetidos aos caprichos do seu senhor.
Esse dilema,
subtendido nessa frase tão curta, nos revela algo maravilhoso sobre Deus e
sobre nós mesmos.
Cremos em um “Deus
todo-poderoso criador do Céu e da terra”,[2]
em um Deus que poderia realizar sua vontade como e quando quisesse, pois tem
todo o poder sobre tudo. Entretanto, o texto que convida a nos “deixarmos
reconciliar com Deus” contradiz essa ideia, pois segundo o texto Ele não
poderia reconciliar-nos com consigo sem a nossa permissão (“deixai-vos”).
Isso significa
que Deus, ao criar “todas as coisas”, estabeleceu uma relação com essas coisas
que não é de dominação, nem de poder, mas de interação, de comunhão, de
intercâmbio. Parece-me que Deus não deseja dominar como os “senhores desse
mundo”, mas deseja estabelecer uma relação de harmonia com toda a criação.
Nós, como seres
criados a Sua “imagem e semelhança”, estamos marcados por traços divinos: somos
capazes de transformar o mundo e criar novas realidades, somos seres
autoconscientes de nossa existência, somos livres e responsáveis pelas consequências
de nossas escolhas, somos seres de relação e interação entre nós e com toda a
criação.
Deus não se
impõe a nós nem a sua criação, mas se coloca junto para estabelecer uma relação
conosco e, através de nós, com toda a criação.[3]
Deus se revela como o Deus da liberdade, o Deus que aceita o “risco” da
liberdade humana, porque ele ama sua criação e não pode interferir nessa
criação ao “capricho” de sua vontade sem desfigurar aquilo que Ele criou e “viu
que era bom”. Isso nos revela também o sentido da liberdade: ela não é poder fazer
o que quiser quando se tem vontade, mas é agir responsavelmente diante das possíveis
consequências das escolhas que são feitas.
O dom da
liberdade que possuímos nos distingue dos demais seres vivos, pois enquanto eles
agem seguindo seu instinto, os seres humanos têm a consciência do que fazem,
podem refletir sobre as consequências de suas escolhas seja antes ou depois de
as terem feito, podem insistir em certas escolhas mesmo sabendo que elas não
são positivas e que podem trazer-lhe danos futuros.
Somos livres e,
consequentemente, somos responsáveis! Somos livres para determinarmos nossas
vidas, mas também somos responsáveis pelas implicações que cada escolha
acarreta. E ainda tem um efeito colateral dessa liberdade: ela não afeta
somente a nós, mas também a todos as pessoas e a toda criação, pois somos seres
de relação, em relação com tudo o que existe ao nosso redor, por isso, nossas
escolhas tem consequências para tudo e para todos, em maior ou menor grau.
Interferimos na
vida e na qualidade da liberdade de todas as pessoas com as quais interagimos de
alguma forma e sofremos também a interferência das consequências das escolhas
das outras pessoas. Vivemos imersos em uma rede de liberdades em interação
constante seja para o bem seja para o mal. Essa consciência da ligação entre
liberdades individuais e condição de seres em relação manifesta a complexidade
que é o dom da liberdade para cada um e para todos nós.
Deus é livre e
criou livremente. Após sua criação Ele aceitou a condição de liberdade que ele
colocou nessa criação, assim, Deus tem a consciência absoluta de como sua
interferência na criação pode ter consequências para a nossa liberdade. Por
isso, sem deixar de ser livre, Ele não se impõe, mas se relaciona, dialoga
conosco, solicita a nossa liberdade uma adesão livre a sua vontade, ao seu
desejo que é desejo de vida e salvação para todos. Por isso Ele nos convida, “deixai-vos
reconciliar”! Em nossa liberdade somos provocados a nos abrir e a acolher sua
proposta e isso terá consequências não só para nós, mas para toda a criação,
pois vivemos dentro de uma rede de liberdades em constante interação.
Começo essa
quaresma com essa frase diante de meus olhos, provocado por sua profundidade, pois
ela nos manifesta algo que considero importantíssimo dentro da Revelação: ela
nos fala algo sobre Deus, sobre cada um de nós e sobre toda a criação.
Que cada um de nós
possa refletir sobre isso e, em sua liberdade, “deixar-se reconciliar com Deus”,
pois Ele quer uma mudança radical em nossas vidas e que nos tornemos pessoas
humanizadas e humanizadoras, como fez Jesus de Nazaré. Porém, Ele somente
poderá realizar plenamente sua vontade salvífica se acolhermos seu convite em
nossas vidas.
[1]
Segunda Carta de Paulo aos Coríntios, capítulo 5, versículo 20 (2Cor 5,20).
[2]
Início da Símbolo Apostólico que é recitado integralmente nas liturgias
dominicais nas celebrações católicas.
[3] Essa
ideia está subtendida na carta aos Romanos, capítulo 8, versículos de 19 até o 21
(Rm 8,19-21) quando o apóstolo diz que a criação foi submetida à inutilidade por
nós e que espera ser libertada dessa condição por meio da nossa libertação.
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