domingo, 18 de fevereiro de 2018

A liberdade humana e o desejo de Deus

Essa semana começou o tempo da Quaresma para o mundo cristão católico. É um tempo de preparação para a celebração da Páscoa Cristã que tem como centro a paixão, morte e ressurreição de Jesus.
O primeiro rito desse tempo é a imposição das cinzas sobre a cabeça dos fieis em sinal de penitência, como sinal de que reconhecemos que sozinhos facilmente erramos o caminho e de que somos necessitados da graça de Deus para sermos pessoas melhores. Pedimos perdão por nossos pecados (erros, falhas, quedas) e nos dispomos a mudar, a crescer na fé e no amor, iluminados pelo Evangelho de Jesus.
Participando da celebração da Quarta-feira de Cinzas, escutei essa frase de uma das leituras da liturgia: “deixai-vos reconciliar com Deus”.[1] Ela me fez parar e pensar sobre seu significado mais profundo. Veja bem, caro leitor e cara leitora, não é um simples convite de reconciliação com Deus, de quem nos afastamos por causa de nossos pecados. Percebi algo importante nessa frase e que quase sempre esquecemos: a presença da liberdade humana na nossa relação com Deus.
O apóstolo diz “deixai-vos”, ou seja, uma iniciativa nossa é necessária para que se realize o desejo de Deus que é estabelecer uma relação de comunhão conosco, nos levando a vivermos a vida nova que, em Cristo, nos foi dada por meio de sua vida, morte e ressurreição (sua Páscoa). Um ato livre do ser humano é solicitado para que a reconciliação aconteça, em outras palavras, para que uma mudança radical em nossas vidas aconteça e nos tornemos pessoas humanizadas segundo o desejo de Deus.
Essa perspectiva do apelo à liberdade humana para a realização dessa obra de reconciliação desejada por Deus nos coloca diante de um dilema: Deus tem uma “vontade”, um “desejo” em relação à humanidade, entretanto os seres humanos são livres e podem recusar essa vontade. Desse modo, Deus se torna “impotente” diante da liberdade humana, pois ele não poderia impor seu desejo sem nos transformar em ‘”coisas”, em objetos manipuláveis, em escravos submetidos aos caprichos do seu senhor.
Esse dilema, subtendido nessa frase tão curta, nos revela algo maravilhoso sobre Deus e sobre nós mesmos.
Cremos em um “Deus todo-poderoso criador do Céu e da terra”,[2] em um Deus que poderia realizar sua vontade como e quando quisesse, pois tem todo o poder sobre tudo. Entretanto, o texto que convida a nos “deixarmos reconciliar com Deus” contradiz essa ideia, pois segundo o texto Ele não poderia reconciliar-nos com consigo sem a nossa permissão (“deixai-vos”).
Isso significa que Deus, ao criar “todas as coisas”, estabeleceu uma relação com essas coisas que não é de dominação, nem de poder, mas de interação, de comunhão, de intercâmbio. Parece-me que Deus não deseja dominar como os “senhores desse mundo”, mas deseja estabelecer uma relação de harmonia com toda a criação.
Nós, como seres criados a Sua “imagem e semelhança”, estamos marcados por traços divinos: somos capazes de transformar o mundo e criar novas realidades, somos seres autoconscientes de nossa existência, somos livres e responsáveis pelas consequências de nossas escolhas, somos seres de relação e interação entre nós e com toda a criação.
Deus não se impõe a nós nem a sua criação, mas se coloca junto para estabelecer uma relação conosco e, através de nós, com toda a criação.[3] Deus se revela como o Deus da liberdade, o Deus que aceita o “risco” da liberdade humana, porque ele ama sua criação e não pode interferir nessa criação ao “capricho” de sua vontade sem desfigurar aquilo que Ele criou e “viu que era bom”. Isso nos revela também o sentido da liberdade: ela não é poder fazer o que quiser quando se tem vontade, mas é agir responsavelmente diante das possíveis consequências das escolhas que são feitas.
O dom da liberdade que possuímos nos distingue dos demais seres vivos, pois enquanto eles agem seguindo seu instinto, os seres humanos têm a consciência do que fazem, podem refletir sobre as consequências de suas escolhas seja antes ou depois de as terem feito, podem insistir em certas escolhas mesmo sabendo que elas não são positivas e que podem trazer-lhe danos futuros.
Somos livres e, consequentemente, somos responsáveis! Somos livres para determinarmos nossas vidas, mas também somos responsáveis pelas implicações que cada escolha acarreta. E ainda tem um efeito colateral dessa liberdade: ela não afeta somente a nós, mas também a todos as pessoas e a toda criação, pois somos seres de relação, em relação com tudo o que existe ao nosso redor, por isso, nossas escolhas tem consequências para tudo e para todos, em maior ou menor grau.
Interferimos na vida e na qualidade da liberdade de todas as pessoas com as quais interagimos de alguma forma e sofremos também a interferência das consequências das escolhas das outras pessoas. Vivemos imersos em uma rede de liberdades em interação constante seja para o bem seja para o mal. Essa consciência da ligação entre liberdades individuais e condição de seres em relação manifesta a complexidade que é o dom da liberdade para cada um e para todos nós.
Deus é livre e criou livremente. Após sua criação Ele aceitou a condição de liberdade que ele colocou nessa criação, assim, Deus tem a consciência absoluta de como sua interferência na criação pode ter consequências para a nossa liberdade. Por isso, sem deixar de ser livre, Ele não se impõe, mas se relaciona, dialoga conosco, solicita a nossa liberdade uma adesão livre a sua vontade, ao seu desejo que é desejo de vida e salvação para todos. Por isso Ele nos convida, “deixai-vos reconciliar”! Em nossa liberdade somos provocados a nos abrir e a acolher sua proposta e isso terá consequências não só para nós, mas para toda a criação, pois vivemos dentro de uma rede de liberdades em constante interação.
Começo essa quaresma com essa frase diante de meus olhos, provocado por sua profundidade, pois ela nos manifesta algo que considero importantíssimo dentro da Revelação: ela nos fala algo sobre Deus, sobre cada um de nós e sobre toda a criação.
Que cada um de nós possa refletir sobre isso e, em sua liberdade, “deixar-se reconciliar com Deus”, pois Ele quer uma mudança radical em nossas vidas e que nos tornemos pessoas humanizadas e humanizadoras, como fez Jesus de Nazaré. Porém, Ele somente poderá realizar plenamente sua vontade salvífica se acolhermos seu convite em nossas vidas.



[1] Segunda Carta de Paulo aos Coríntios, capítulo 5, versículo 20 (2Cor 5,20).
[2] Início da Símbolo Apostólico que é recitado integralmente nas liturgias dominicais nas celebrações católicas.
[3] Essa ideia está subtendida na carta aos Romanos, capítulo 8, versículos de 19 até o 21 (Rm 8,19-21) quando o apóstolo diz que a criação foi submetida à inutilidade por nós e que espera ser libertada dessa condição por meio da nossa libertação.

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