Nesta última postagem dessa
série dedicada à questão do lugar de fala e do discurso moral religioso, quero
compartilhar com você o que vi e o que entendi diante de várias polêmicas
atuais que permearam nossos meios de comunicação e as redes sociais nesses
últimos tempos.
Caso você esteja lendo esse
texto sem ter visto os anteriores, é possível que algumas ideias possam parecer
soltas ou sem fundamentação, entretanto, os elementos que fundamentam alguns
pontos tratados aqui se encontram nas partes anteriores dessa reflexão. Por
isso, recomento olhar os textos anteriores antes de seguir na leitura deste.
Retomando...
Recordo os vários episódios nos
quais membros de grupos variados (feministas, LGBT, radicais críticos da
religião cristã, entre outros), realizando manifestações, executaram
performances utilizando objetos e símbolos relacionados à fé cristã: quebra
pública de imagens católicas, introdução da cruz no ânus em manifestações,
utilização da matéria usada para a celebração da missa (as pequenas hóstias) em
uma exposição com nomes de partes do corpo escritas nelas, pichações em
fachadas de Igrejas cristãs, e assim poderia continuar essa lista. Na internet
facilmente se pode encontrar notícias sobre esses episódios e muitos outros.
Ao recordar esses episódios
quero recordar também as reações dos grupos cristãos (católicos e evangélicos)
que processaram várias dessas pessoas, segundo está na lei, por desrespeito a
liberdade religiosa, profanação dos objetos de culto e intolerância religiosa contra
as igrejas cristãs. Recordo também que movimentos fecharam exposições em
museus, perseguiram artistas por causa de suas posições em relação a
manifestações artísticas que traziam temas relacionados com a questão religiosa
(especificamente a religião cristã) e fizeram intensas campanhas nas redes
sociais como reação a essa agressão a sua fé. Circularam slogans do tipo “Sou
católico e defendo a minha fé” para motivar os cristãos católicos a tomarem uma
atitude diante desses acontecimentos.
Como consequência disso, percebi
uma agressão crescente nos discursos de ambos os lados e, em alguns casos, o
incentivo ao uso da violência como forma de ação ou reação.
É preciso olhar o lugar de fala
de onde partem essas posições para não se deixar levar por paixões do tipo “fla
x flu”, porque isso não é uma disputa esportiva, mas são vidas, histórias e um
tipo de sociedade que se está construindo que estão jogo.
Também me senti chocado e
ofendido, num primeiro momento, por essas manifestações utilizando símbolos
religiosos cristãos. Entretanto, depois do choque inicial, me obriguei a parar
e a tentar ouvir o que esses acontecimentos estão me dizendo sobre a minha fé,
sobre o meu discurso moral religioso, sobre que imagem da fé cristã estou
comunicando às pessoas.
Tentando olhar o lugar de fala
de onde o discurso dessas pessoas e de seus grupos parte, percebi que são
pessoas (ou grupos socicais) que, muitas vezes, foram vítimas históricas de um
tipo de discurso moral cristão que as marginalizou durante séculos, que as
consideraram “seres humanos inferiores”, pecadores merecedores dos castigos do
inferno: negros e índios com sua cultura e sua fé; homossexuais e sua busca
pelo direito de viverem suas vidas; mulheres e sua luta contra uma estrutura
social patriarcal e machista. Repito, por séculos esses grupos foram oprimidos,
perseguidos e mortos por pessoas que se apresentavam como representantes da
“moral cristã”. Há uma história de violência por baixo dessas manifestações que
vemos hoje, uma história que talvez nem eles mesmos tenham consciência, mas a
sentem e a carregam.
O contexto social atual deu
espaço para que essas pessoas se organizassem em grupos socialmente
representativos e pudessem se manifestar com liberdade. Eles estão fazendo
isso! E qual é a mensagem que eu estou ouvindo da parte deles em algumas dessas
formas de manifestação? Agora que esses grupos podem falar, eles estão
apresentando suas pautas, reivindicando direitos, denunciando abusos. Em algumas
ocasiões, eles estão devolvendo com violência a violência que receberam por
séculos da sociedade cristã ocidental.[1]
Estão rejeitando essa cultura cristã que permeia a sociedade ocidental porque a
experimentaram como nociva, como repressora e castradora do seu direito de
viver e de existir como pessoas. Acredito que os casos que citei acima, que
chocaram e provocaram reações entre os fiéis cristãos, tem por trás deles esses
elementos.
A reação dos grupos e igrejas
cristãs, diante desse contexto, tem sido de combater esses movimentos e essas
manifestações; de reagir condenando, criticando, gritando que “estamos
certos!!” e que eles são simplesmente “pessoas más”. Eu entendo essa reação,
pois é uma reação instintiva de preservação, de autodefesa diante de um
contexto que se apresenta como ameaçador. Nessa “modernidade líquida”,[2]
muitos cristãos sentem-se perdidos e o medo diante das novas realidades que se
apresentam pode levar a atitudes de fechamento, de fundamentalismos e de
violência (verbal ou física). O que eles buscam são certezas, respostas
“certas” para tudo o que está acontecendo, regras claras, receitas para serem
seguidas na esperança de que no final se obterá o resultado prometido. Entretanto,
questiono: esse lugar de fala é o “melhor lugar” do qual partir para lidar com todas
essas situações de mudança, de questionamento e crítica ao discurso moral
cristão? Eu acredito que não!
O que eu acredito é que, como
cristão, devo buscar um caminho que permita me posicionar com honestidade a
partir da Boa Notícia de Jesus. Como cristão eu me sinto na obrigação de me
colocar diante dessas pessoas e grupos críticos e/ou contrários ao discurso
moral cristão (seja de quem quebrou uma imagem sacra ou profanou uma cruz) e
de, humildemente, perguntar: Irmão, diga-me o que eu fiz? Como eu provoquei
toda essa violência dentro de você? Onde foi que meu discurso religioso te
feriu tão profundamente para provocar essa reação? Quero entender! Quero
encontrar um caminho para me redimir! Quero ter a coragem de deixá-los responder
as minhas perguntas e de saber ouví-los com sinceridade e respeito, mesmo que
seja doloroso! Quero entender para tentar agir como Jesus, meu Mestre e Senhor,
agiria, a partir do princípio do amor, pois ele ensinou que é pelo amor que
“reconhecerão que sois meus discípulos”.[3]
Acredito que a atitude cristã
mais coerente nesse contexto que se apresenta é a de abrir os caminhos do
diálogo, de “dar a outra face” para sermos capazes de compreender o que
realmente está acontecendo. Precisamos
discernir o que a Revelação está trazendo a nossa consciência nesse momento
histórico por meio desses acontecimentos para correspondermos generosamente à
vontade de Deus.
Escuta, diálogo, perdão,
misericórdia e respeito são palavras que deveriam estar presentes no processo
de revisão do discurso moral cristão nesse momento histórico de conflitos e mudanças
no qual estamos vivendo. Somente assim se pode desenvolver uma moral cristã que
ajude a todos a alcançar os valores fundamentais do amor, do bem, da justiça,
da vida em plenitude.
[1] Tenho
como pano de fundo para essa argumentação a ideia do chamado “efeito rebote”. Ele
é usado normalmente no campo da saúde, como uma reação contrária do corpo a uma
ação radical nele aplicada como, por exemplo, a retenção de líquidos no corpo
causada por uma radical diminuição no consumo de sódio. Aqui estou partindo
dessa ideia: um longo período de privação de direitos, de perseguições, de
discriminação, muitas vezes motivados por discursos morais religiosos, sofre
agora uma reação que se expressa por meio de sentimentos e falas que ficaram
reprimidos por séculos.
[2]
Tomo emprestado o termo cunhado pelo sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman.
[3] Cf.
Evangelho segundo João, capítulo 13, versículos 34 e 35 (Jo 13,34-35).
Nenhum comentário:
Postar um comentário