domingo, 14 de janeiro de 2018

O lugar de fala e o discurso moral religioso (Parte III)

A religião e a cultura de um povo encontram-se em um processo contínuo no qual uma e outra se alimentam mutuamente perpassando toda a vida de uma sociedade. Mesmo aqueles que não professam uma fé religiosa não escapam de sua influência.
No mundo cristão ocidental fomos marcados pela mensagem cristã vivida e depois transmitida pelos primeiros cristãos que eram judeus e entendiam sua fé como uma forma de renovação do próprio judaísmo. Desse modo, muitos elementos da mensagem cristã inicial estavam carregados de elementos da cultura judaica. Eles enfrentaram crises intensas para descobrir um caminho que conseguisse harmonizar a fé judaica tradicional e a mensagem reformadora dos seguidores do Messias Jesus.
Quando a mensagem cristã alcança o mundo pagão, elementos da cultura judaica que estavam presentes no grupo cristão entram em conflito com a cultura helênica do mundo greco-romano. As questões relativas à pureza dos alimentos, aos rituais de purificação, à circuncisão, entre outras, provocaram violentos conflitos entre os cristãos de origem judaica e os de origem gentílica. Dois discursos foram defendidos,[1] um mais tradicionalista, que queria que os não-judeus recebessem a circuncisão e adotassem os costumes judaicos para poderem fazer parte da comunidade cristã, outro mais liberal (do qual Paulo é seu representante mais conhecido) que reinterpretava a Revelação (ou seja, os textos judaicos que se tornaram o Antigo Testamento cristão) de um novo ponto de vista, partindo de um novo lugar de fala que encontrava-se fora da Palestina e de sua perspectiva étnica e cultural.
Partindo do Oriente, a mensagem cristã se espalha por toda a Europa misturando-se com o seu processo histórico de construção: passando do Império Romano aos povos e tribos vizinhos, depois passando da formação dos vários Reinos à formação dos Estados Nacionais (países). Quando se iniciam as grandes navegações e os europeus se espalham pelas diversas regiões desconhecidas por eles no mundo, inicia-se também a ação missionária para levar o Evangelho a esses novos povos. Entretanto, esse anúncio foi acompanhado da cultura europeia, pois não era estranho para eles pensar que o conjunto de sua cultura e a fé que professavam vivendo essa cultura eram a mesma coisa. Desse modo, por exemplo, vestiram os índios com roupas europeias e batizaram à força os negros africanos[2] no intuito de civilizá-los e torná-los cristãos.[3]
Essa pequena e superficial síntese é suficiente para demonstrar como a mentalidade da cultura ocidental (incluindo, portanto, a brasileira) está marcada profundamente pelo discurso cristão independente de professar ou não a fé cristã. Essa relação entre o discurso cristão e os processos históricos nos quais ele se encontrava ajuda a perceber como o lugar de fala deve ser levado em conta para a análise do discurso moral cristão. Afirmo isso, pois esse discurso não é isento da influência desse processo histórico, como também não está isento no momento atual. O discernimento em vista de uma evolução positiva desse discurso deve considerar o papel do lugar de fala das diversas falas morais.
Percebo que atualmente cresce um discurso moral religioso, mais especificamente moral cristão, colocando-se em defesa do que se acredita ser a “verdadeira moral”. Como cristão, creio que os valores do cristianismo contribuíram e continuam a contribuir para o bem da sociedade ocidental. Entretanto, não posso achar que já possuo o discurso moral “perfeito” com todas as respostas para todas as questões. Em cada época os cristãos precisaram desenvolver sua reflexão moral por causa dos novos contextos que foram se apresentando. Esse processo foi marcado pelos elementos culturais das pessoas em cada tempo, como já demonstramos brevemente acima (e nos textos anteriores).
Hoje, novos contextos se apresentam suscitando questionamentos e necessitando de maiores reflexões: o tema do aborto e do direito das mulheres, a pesquisa com células-tronco embrionárias, a eutanásia ou morte assistida, as novas formas de arranjo familiar, as relações homoafetivas e a homofobia, a intolerância religiosa, o fundamentalismo religioso, o retorno da moral do “olho por olho” diante da sensação de impunidade e da violência presente no nosso cotidiano, entre outros tantos possíveis contextos.
Precisamos pensar a moral cristã nesses novos contextos tendo presente sempre os valores fundamentais do amor, da justiça, do bem, da vida (que são valores que retiramos, como cristãos, da Boa Nova de Jesus Cristo). Porém não achemos que faremos isso isentos das influências de nosso meio social e cultural. Por isso, todo nosso discurso precisa ser amadurecido em constante discernimento, considerando o nosso lugar de fala em diálogo com outros lugares de fala. É preciso evitar a posição de juízes que se colocam acima do bem e do mal, que determinam o que é o certo e o que é o errado só porque é “assim que eu penso”. A princípio tenho a liberdade de pensar como eu quiser, mas achar que o que eu penso é a melhor ou única orientação moral válida e querer adequar tudo e todos a ela é o grande problema. É daqui que têm nascido várias formas de fundamentalismos que usam o discurso religioso para confirmar as próprias ideias ou a própria visão de mundo sem buscar perceber a verdadeira realidade que se apresenta ao seu redor.
Para concluir, quero retomar a figura de Paulo, o apóstolo da Bíblia, a quem me referi no início do texto. Ele modificou seu discurso a partir do momento em que ele se deslocou de seu lugar de fala, ou seja, de judeu fariseu, zeloso cumpridor da lei e perseguidor dos seguidores do Messias Jesus, para judeu-cristão, seguidor do Messias Jesus, defensor do acolhimento dos pagãos na comunidade cristã sem impor-lhes os costumes judaicos.[4]
A meu ver ele ilustra bem o que nós, cristãos de hoje, precisamos fazer: precisamos ter a coragem de nos deslocar do nosso lugar de fala e de aproximarmo-nos do lugar de fala dos outros que pensam diferente de nós. Precisamos fazer a experiência da empatia, da compaixão, para discernirmos nosso próprio discurso moral, permitindo uma evolução positiva, retirando os elementos que são apenas a expressão de nosso lugar de fala e não da Revelação cristã, assim como Paulo procurou fazer em relação aos elementos da cultura judaica presentes no discurso moral cristão dirigido aos pagãos. O processo de discernimento feito por Paulo contribuiu significativamente para que a mensagem cristã não ficasse reduzida a um grupo dentro do judaísmo, mas se tornasse Boa Notícia de Jesus Cristo para cada pessoa que a quisesse acolher pela fé, independente de ser ou não judeu. Ele conseguiu perceber o que a Revelação estava querendo dizer naquele contexto e momento histórico.
Eu estou tentando fazer esse processo de deslocamento de meu lugar de fala para ir ao encontro dos outros lugares. Já faz um bom tempo que estou procurando discernir o que a Revelação está querendo nos fazer entender no atual contexto em que vivemos, e acredito que cada cristão e cristã deve procurar fazer esse mesmo processo. Essa série de textos é uma tentativa minha que compartilho com você, caro leitor e leitora.
Na próxima postagem pretendo concluir essa série de reflexões sobre essa temática específica trazendo alguns casos concretos e apresentando minhas impressões e interpretações a partir do meu lugar de fala em diálogo com outros lugares de fala.



[1] Existiam outros discursos, mas eram como variantes desses dois principais. Por isso, me restringi a colocar esses dois como ponto de referência em nossa reflexão. Sobre os conflitos motivados pelas diferentes posições que foram surgindo na história do cristianismo indico um livro básico para leitura: ROQUE, Frangiotti. História das heresias. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 1995.
[2] Indico o filme “A Missão”, de 1986, um drama histórico dirigido por Roland Joffé. Ele se passa no final do século XVIII, apresentando a presença dos jesuítas na região sul do Brasil, sua ação missionária, a luta contra os mercadores de escravos que queriam submeter os índios e as consequências desse conflito.
[3] Claro que em meio a esse processo estava presente também a discussão sobre o “tipo” de humanidade dos índios e dos negros, se eles tinham alma humana ou eram animais. Entre o que se pode encontrar na pesquisa histórica sugiro observar “A controvérsia de Valladolid” na qual os religiosos jesuítas debateram com os conquistadores sobre a legitimidade da escravização dos índios nas novas terras. Ambos os lados utilizam-se de argumentos religiosos: os jesuítas para defender os índios e os conquistadores para justificar sua exploração.
[4] Cf. Carta de Paulo aos Filipenses, capítulo 3, versículos de 5 até 11 (Fl 3,5-11).

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