domingo, 31 de dezembro de 2017

O lugar de fala e o discurso moral religioso (Parte I)

Estou compartilhando com vocês essa série de reflexões que venho pessoalmente fazendo a partir dessa categoria “lugar de fala”. Realmente fiquei instigado por ela. Já falamos na primeira postagem dessa série, a título de introdução, um pouco sobre um conceito geral do que seria o “lugar de fala”. Na postagem passada conversamos um pouco mais sobre a relação dessa categoria com o discurso religioso. Agora quero trazer a questão do discurso moral, mais especificamente o discurso moral cristão. Para isso vou dividir a discussão em partes, pois acredito que não é possível conversar sobre esse tema em uma única postagem. Mesmo assim, quero deixar claro que não pretendo fazer aqui tratado de tipo acadêmico, pois isso exigiria uma linguagem muito técnica e um texto bem mais denso. Quero trazer provocações para uma discussão mais profunda, por isso procurarei falar com o máximo de clareza que me for possível e dando as bases que considero necessárias para sustentar meu discurso.
Por fim, preciso esclarecer minhas motivações para ser honesto com você que está lendo. Essa reflexão me veio por eu estar percebendo o crescimento de um discurso moral de cunho religioso com fortes tendências fundamentalistas. Esse tipo de discurso geralmente se apresenta como a afirmação de uma moral que deve ser seguida porque é “divina”, fruto da “Revelação” e, por isso, é verdadeira e correta. Qualquer outro discurso moral que não esteja em sintonia com esse discurso é tido como “demoníaco”, como “mau”, como uma violência contra a verdade moral cristã.
Eu já afirmei na postagem passada que entendo “moral” como um conjunto de normas, regras, meios, os quais têm como finalidade normatizar a conduta humana em vista de alcançar um valor, um bem, um fim que se apresenta como bom, justo e verdadeiro.[1] Em outras palavras, as normas morais não são um fim em si mesmas, mas meios pelos quais se alcança um fim, sendo este um valor fundamental.
Desse modo, o discurso moral não pode ser entendido como eterno, imutável, pois ele existe em função dos valores para os quais ele se ordena. E esses valores, no mundo cristão, nos foram dados por meio da Revelação. Entretanto, como afirmei no texto anterior sobre o “discurso religioso”, ela foi e continua sendo objeto do nosso processo interpretativo, marcado pelo nosso “lugar de fala”, portanto, ainda em processo de compreensão de seu sentido pleno.
Um olhar a partir do desenvolvimento histórico do pensamento cristão facilmente revela que o discurso moral cristão sofreu mudanças na medida em que o “lugar de fala” foi se modificando.
 No Antigo Testamento há um conjunto de regras relativas à forma como os judeus deveriam se comportar para manter-se fieis a Deus e a sua Aliança. Encontramos um discurso moral que determina um conjunto de práticas que eram entendidas como as verdadeiras e corretas porque foram estabelecidas por Deus. A violação dessas normas era entendida como um acontecimento tão grave que a punição poderia ir da expulsão da convivência social até a condenação à morte do transgressor. Dentre essas normas recordo, a título de exemplo, os costumes em relação à mulher diante do parto[2] e de seu ciclo menstrual,[3] e os vários tipos de alimentos que deveriam ser evitados por ser tidos como impuros.[4] O povo de Israel deveria seguir essas orientações e se as transgredissem deveriam cumprir uma série de práticas rituais de purificação para poderem retornar ao convívio da comunidade e a participação no culto.
É interessante perceber que para os cristãos, hoje, esses fatores não são mais tidos como um problema moral. O parto é visto como um momento “divino” sem nenhuma conotação religiosa negativa e o ciclo menstrual não é motivo de separação da mulher do convívio por ser algo impuro. Isso se dá porque nosso lugar de fala é diferente do lugar de fala dos autores do texto e do lugar de fala de seus interpretes em épocas passadas. Isso não tira o valor teológico do texto, apenas nos provoca a ter cuidado com as interpretações morais que fazemos a partir dele.
Retomemos o caso dos alimentos impuros. Já no Novo Testamento encontramos uma mudança radical na prática cristã. Jesus afirma que não é o que entra pela boca do ser humano que o torna impuro, mas o que sai do seu coração.[5] No livro dos Atos dos Apóstolos encontramos a cena em que Pedro tem uma visão de um grande lençol que desce diante dele contendo todo tipo de animais e ele escuta uma voz que diz “mata e come”, porém, como um judeu fiel à Lei de Deus, ele se recusa tocar alimentos impuros. A voz então lhe diz que “não chame de impuro o que Deus purificou”. O mais curioso nesse relato, além da mudança do lugar de fala de Pedro, é o sentido dessa visão no contexto do texto, pois ela serve de preparação para que Pedro possa ir pregar o Evangelho na casa de um pagão, considerado impuro pelos judeus por não fazer parte do povo de Israel nem seguir a Lei de Deus. Em outras palavras, Deus se apresenta a Pedro com aquele quem determina o que é puro e impuro, desconstruindo a interpretação corrente da Revelação presente do Antigo Testamento. Assim, Pedro não só vai pregar na casa do pagão Cornélio, mas reconhece que eles também são chamados a fazer parte da comunidade dos cristãos, pois Deus derramou sobre eles seu Espírito.[6]
Essa primeira parte de nossa reflexão iniciou uma explanação que quer demonstrar que o discurso moral sofre variações a partir do “lugar de fala”. Aqui dei exemplos a partir do texto bíblico, que é a fonte básica da Revelação cristã. Poderia desenvolver muitos outros exemplos partindo da Bíblia, mas tomei esses por me parecerem suficientes para ilustrar minha linha de raciocínio, como também serem mais simples para apresentar em um blog. Uma análise mais profunda exigiria um desenvolvimento mais técnico e extenso, o que não é nosso objetivo nesse espaço.
Na próxima postagem continuarei essa reflexão saindo do texto bíblico e entrando na história para reforçar minha tese de que o lugar de fala interfere na interpretação da mensagem da Revelação com consequências para o discurso moral cristão.



[1][1] Esse conjunto de bens, valores ou finalidade estão o campo da ética. Existe uma vasta discussão se é possível estabelecer ou não uma ética mundial, ou seja, um conjunto de valores que sejam aceitos por todos como princípio sobre o qual se possa, então, desenvolver uma moral não necessariamente comum, mas sobre bases comuns.
[2] Livro de Levítico capítulo 12, versículos de 1até 8 (Lv 12,1-8).
[3] Livro de Levítico capítulo 15, versículos de 19 ao 30 (Lv 15,19-30).
[4] Livro de Levítico capítulo 11 (Lv 11).
[5] Evangelho de Mateus capítulo 15, versículos de 10 ao 21 (Mt 15,10-21).
[6] Atos dos Apóstolos capítulo 10 (At 10).

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