Nesta postagem quero continuar a
reflexão iniciada no último texto no qual tratei sobre o conceito de “lugar de
fala”. Vamos avançar tentando fazer uma relação entre esse conceito e o
discurso religioso.
Peter Berger,[1] em
sua análise sociológica do fenômeno religioso, apresenta o ser humano como
alguém que “[...] está em um mundo que precede o seu aparecimento. Mas à
diferença dos outros mamíferos, este mundo não é simplesmente dado,
pré-fabricado para ele. O homem precisa fazer um mundo para si”.[2] Em
seu pensamento, a religião surge dentro desse processo de “construção de um
mundo para sí” como forma de explicar e legitimar esse mundo.
No discurso religioso,
normalmente, se parte de uma perspectiva diferente da sociológica, ele parte da
ideia de que a religião surge do encontro entre o humano e uma realidade que o
transcende. Especificamente no mundo cristão, a religião surge como resultado
da Revelação de Deus que, atingindo sua plenitude na pessoa de Jesus Cristo,
permite ao ser humano estabelecer com Deus uma relação pessoal e comunitária
por meio da fé. Surgem, assim, as doutrinas, a moral cristã como normatização
dos costumes e valores no âmbito pessoal e no convívio social, os ritos para
conservar e comunicar os valores fundamentais da fé recebidos por meio da
Revelação, o texto Sagrado como norma para a fé vivida na comunidade religiosa,
entre outras coisas.
Como teólogo cristão,
compartilho dessa perspectiva de que Deus se revelou por meio de Jesus Cristo e
que esta Revelação tem como objetivo nos levar (todos os seres humanos) à
participação na vida divina, a uma amizade com Deus, a uma comunhão de amor com
ele, a uma relação pessoal com Ele, tudo isso que chamamos normalmente de
Salvação. Entretanto, temos que entender que entre a Revelação e a nossa fala
sobre essa Revelação existe uma mediação chamada interpretação, ou seja, uma
coisa é o que Deus revelou e continua manifestando na história, outra coisa é
nossa capacidade de compreender essa Revelação.
Aqui volto ao tema do “lugar de
fala”, pois acredito que interpretamos a Revelação a partir do nosso lugar de
fala, ou seja, de nossa cultura, de nosso tempo histórico, de nosso contexto de
vida e, nesse sentido, o que Berger diz faz sentido ao colocar a religião e o
discurso religioso no âmbito da construção humana, pois somos nós quem
interpretamos e procuramos o sentido da Revelação.
No próprio texto bíblico podemos
ver abundantemente exemplos de como o “lugar de fala” influencia o processo
interpretativo da Revelação e o discurso religioso moral[3]
que dele decorre. Vamos ver alguns exemplos com Jesus e Paulo!
Nos Evangelhos encontramos Jesus
em várias situações de conflito com grupos religiosos de seu tempo. Lembro que
Jesus não era cristão, mas judeu, portanto, seus conflitos com os grupos
judaicos de seu tempo não eram conflitos entre doutrinas de duas religiões
diferentes, mas eram conflitos de interpretação sobre o que Deus quis “dizer”
por meio do texto sagrado sobre certos costumes e práticas que eram compreendidos
como vontade divina.
Cito dois conflitos conhecidos.
Em um dia de sábado Jesus se
encontrava em uma sinagoga[4]
participando do shabbat[5] como todo judeu fiel e piedoso
costumava (e ainda hoje costuma) fazer. Durante o culto, Jesus vê um homem que
tem a mão atrofiada e o chama para o meio. Ao fazer isso, Jesus provoca a
assembleia perguntando o que era ou não era permitido fazer no sábado. Para os
judeus, o sábado é um dia santo, consagrado a Deus, no qual nada poderia ser
feito, nenhum tipo de trabalho. Na história de Israel, grupos de judeus
morreram porque não violaram o repouso sagrado do sábado para pegar em armar
para se defender de um exército inimigo.[6]
Então, não obtendo uma resposta dos seus interlocutores, Jesus cura o homem e
provoca a ira de grupos que consideravam essa ação uma violação da lei sagrada
do sábado. É evidente que o autor, ao escrever essa cena, deseja demonstrar, a
partir de um “lugar de fala” diferente do usado por esses grupos religiosos
judeus, que o sábado como dia santo, consagrado a Deus, deveria ser o dia por
excelência para fazer o bem, para promover a dignidade da pessoa, para colocar
o ser humano no centro como alvo privilegiado do amor de Deus e de sua
Revelação.
Em outro episódio Jesus está na
casa de Mateus fazendo uma refeição.[7]
Estão sentados à mesa com ele pessoas consideradas pecadoras, impuras, segundo
a interpretação religiosa dos grupos do tempo de Jesus. Esses grupos
preocupavam-se com a pureza conforme estava estabelecido na Lei judaica,[8]
pois procurar manter essa pureza era entendido como uma forma de ser fiel a Deus
e a sua vontade. Ao questionarem porque Jesus estava em companhia dessas
pessoas, o próprio Jesus responde mandando que eles aprendam a interpretar a
Escritura, dando destaque ao tema da misericórdia e da compaixão.
Outro caso interessante no Novo
Testamento para ilustrar como o lugar de fala influencia a interpretação que o
discurso religioso faz sobre a Revelação é o da figura de Paulo. Enquanto ele era
membro do grupo dos fariseus,[9]
interpretava a Revelação vendo nela justificativa para perseguir os seguidores
de Jesus, tidos como judeus infiéis que estavam corrompendo a fé judaica ao formarem
comunidades se misturando com os pagãos e ao afirmarem que Jesus era o Messias.[10] Entretanto,
ele passa por algumas experiências que o fazem repensar seu lugar de fala,
fazendo-o assumir uma nova posição, agora como parte do grupo dos seguidores de
Jesus. Com essa mudança, Paulo passa a interpretar a Revelação a favor desse
grupo, inclusive justificando a mistura de judeus e pagãos no mesmo grupo.[11]
Poderíamos apresentar muitos
outros exemplos tomando textos bíblicos desde o Antigo Testamento e outros
textos do Novo Testamento, mas acredito que com esses temos o mínimo de
argumentos para provocar nossa reflexão sobre o processo interpretativo que
fazemos da Revelação para justificar nosso discurso religioso e nossas práticas
de fé. Não quero, com isso, criar um relativismo, mas demonstrar que o processo
de compreensão e acolhida da Revelação é exatamente isso: um processo! Não está
acabado de forma definitiva.
As mudanças históricas pelas
quais o mundo cristão vem passando estão trazendo novos contextos com novos
lugares de fala que precisam ser pensados em diálogo com a Revelação cristã.
Não é possível achar que tudo o que se pensa e se defende no discurso religioso
cristão é certo e imutável. Há muitos elementos que precisam ser repensados à
luz desse processo de interpretação e compreensão da Revelação, não num
relativismo que procura adequar a Revelação ao gosto de cada um, mas na
compreensão de que a verdade plena que a Revelação cristã nos comunica não pode
ser alcançada em sua plenitude a partir de um único lugar de fala. Achar que o
nosso lugar de fala é o único válido para interpretar a Revelação cristã é
reduzir a Revelação ao discurso religioso de uma cultura, a um ponto de vista
que se pretende universalmente válido. A isso eu chamo de reducionismo!
É em diálogo entre os diversos
lugares de fala que a Verdade plena que a Revelação cristã comunica pode ser
compreendida.
[1]
BERGER, Peter. O dossel sagrado:
elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985.
[2]
BERGER, 1985, p.18.
[3]
Uso aqui o termo “moral” na perspectiva de um conjunto de normas que
estabelecem os costumes, práticas e interditos que um grupo social deve seguir,
e que são aceitos como válidos para um convívio sadio em vista de uma ética do
bem, da justiça, da verdade, do amor.
[4]
No Evangelho de Marcos, capítulo 3, versículos de 1 ao 6 (Mc 3,1-6).
[5]
É o dia de cessação do trabalho, dia de descanso semanal no judaísmo,
simbolizando o sétimo dia em Gênesis, após os seis dias de Criação e também da
memória da libertação da escravidão do Egito. Observância do Shabbat na religião judaica implica
abster-se de atividades de trabalho, muitas vezes com grande rigor. Nesse dia
os judeus se reúnem nas sinagogas para a leitura e meditação da Lei e para as
orações em comum.
[6]
No livro primeiro livro dos Macabeus, capítulo 2, versículos de 29 até o 38 (I
Mc 2,29-38).
[7]
No Evangelho de Mateus, capítulo 9, versículos de 10 até o 13 (Mt 9,10-13).
[8]
No livro de Levítico encontra-se um conjunto de prescrições sobre usos e
costume que os judeus deveriam seguir para permanecerem puros diante de Deus e,
assim, poder Lhe prestar um culto que fosse agradável.
[9]
Os fariseus eram um dos grupos religiosos do judaísmo no tempo de Jesus e das
primeiras comunidades dos seguidores de Jesus. Eles se caracterizavam por um
zelo no cumprimento da Lei judaica, especialmente no tocante as questões de
pureza e de cumprimento dos preceitos estabelecidos (ex.: pagamento dos
dízimos, os jejuns, o sábado etc).
[10]
A figura do Messias refere-se a esperança de Israel, no tempo de Jesus, de que
Deus enviaria um salvador para libertar seu povo do julgo dos povos que o
oprimiam e restauraria a nação politicamente e religiosamente.
[11]
Basta ver na Carta aos Gálatas e na Carta aos Romanos como Paulo reinterpreta
textos da tradição judaica para fundamentar seu discurso a partir desse novo
lugar de fala.
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