domingo, 24 de dezembro de 2017

O discurso religioso e o lugar de fala

Nesta postagem quero continuar a reflexão iniciada no último texto no qual tratei sobre o conceito de “lugar de fala”. Vamos avançar tentando fazer uma relação entre esse conceito e o discurso religioso.
Peter Berger,[1] em sua análise sociológica do fenômeno religioso, apresenta o ser humano como alguém que “[...] está em um mundo que precede o seu aparecimento. Mas à diferença dos outros mamíferos, este mundo não é simplesmente dado, pré-fabricado para ele. O homem precisa fazer um mundo para si”.[2] Em seu pensamento, a religião surge dentro desse processo de “construção de um mundo para sí” como forma de explicar e legitimar esse mundo.
No discurso religioso, normalmente, se parte de uma perspectiva diferente da sociológica, ele parte da ideia de que a religião surge do encontro entre o humano e uma realidade que o transcende. Especificamente no mundo cristão, a religião surge como resultado da Revelação de Deus que, atingindo sua plenitude na pessoa de Jesus Cristo, permite ao ser humano estabelecer com Deus uma relação pessoal e comunitária por meio da fé. Surgem, assim, as doutrinas, a moral cristã como normatização dos costumes e valores no âmbito pessoal e no convívio social, os ritos para conservar e comunicar os valores fundamentais da fé recebidos por meio da Revelação, o texto Sagrado como norma para a fé vivida na comunidade religiosa, entre outras coisas.
Como teólogo cristão, compartilho dessa perspectiva de que Deus se revelou por meio de Jesus Cristo e que esta Revelação tem como objetivo nos levar (todos os seres humanos) à participação na vida divina, a uma amizade com Deus, a uma comunhão de amor com ele, a uma relação pessoal com Ele, tudo isso que chamamos normalmente de Salvação. Entretanto, temos que entender que entre a Revelação e a nossa fala sobre essa Revelação existe uma mediação chamada interpretação, ou seja, uma coisa é o que Deus revelou e continua manifestando na história, outra coisa é nossa capacidade de compreender essa Revelação.
Aqui volto ao tema do “lugar de fala”, pois acredito que interpretamos a Revelação a partir do nosso lugar de fala, ou seja, de nossa cultura, de nosso tempo histórico, de nosso contexto de vida e, nesse sentido, o que Berger diz faz sentido ao colocar a religião e o discurso religioso no âmbito da construção humana, pois somos nós quem interpretamos e procuramos o sentido da Revelação.
No próprio texto bíblico podemos ver abundantemente exemplos de como o “lugar de fala” influencia o processo interpretativo da Revelação e o discurso religioso moral[3] que dele decorre. Vamos ver alguns exemplos com Jesus e Paulo!
Nos Evangelhos encontramos Jesus em várias situações de conflito com grupos religiosos de seu tempo. Lembro que Jesus não era cristão, mas judeu, portanto, seus conflitos com os grupos judaicos de seu tempo não eram conflitos entre doutrinas de duas religiões diferentes, mas eram conflitos de interpretação sobre o que Deus quis “dizer” por meio do texto sagrado sobre certos costumes e práticas que eram compreendidos como vontade divina.
Cito dois conflitos conhecidos.
Em um dia de sábado Jesus se encontrava em uma sinagoga[4] participando do shabbat[5] como todo judeu fiel e piedoso costumava (e ainda hoje costuma) fazer. Durante o culto, Jesus vê um homem que tem a mão atrofiada e o chama para o meio. Ao fazer isso, Jesus provoca a assembleia perguntando o que era ou não era permitido fazer no sábado. Para os judeus, o sábado é um dia santo, consagrado a Deus, no qual nada poderia ser feito, nenhum tipo de trabalho. Na história de Israel, grupos de judeus morreram porque não violaram o repouso sagrado do sábado para pegar em armar para se defender de um exército inimigo.[6] Então, não obtendo uma resposta dos seus interlocutores, Jesus cura o homem e provoca a ira de grupos que consideravam essa ação uma violação da lei sagrada do sábado. É evidente que o autor, ao escrever essa cena, deseja demonstrar, a partir de um “lugar de fala” diferente do usado por esses grupos religiosos judeus, que o sábado como dia santo, consagrado a Deus, deveria ser o dia por excelência para fazer o bem, para promover a dignidade da pessoa, para colocar o ser humano no centro como alvo privilegiado do amor de Deus e de sua Revelação.
Em outro episódio Jesus está na casa de Mateus fazendo uma refeição.[7] Estão sentados à mesa com ele pessoas consideradas pecadoras, impuras, segundo a interpretação religiosa dos grupos do tempo de Jesus. Esses grupos preocupavam-se com a pureza conforme estava estabelecido na Lei judaica,[8] pois procurar manter essa pureza era entendido como uma forma de ser fiel a Deus e a sua vontade. Ao questionarem porque Jesus estava em companhia dessas pessoas, o próprio Jesus responde mandando que eles aprendam a interpretar a Escritura, dando destaque ao tema da misericórdia e da compaixão.
Outro caso interessante no Novo Testamento para ilustrar como o lugar de fala influencia a interpretação que o discurso religioso faz sobre a Revelação é o da figura de Paulo. Enquanto ele era membro do grupo dos fariseus,[9] interpretava a Revelação vendo nela justificativa para perseguir os seguidores de Jesus, tidos como judeus infiéis que estavam corrompendo a fé judaica ao formarem comunidades se misturando com os pagãos e ao afirmarem que Jesus era o Messias.[10] Entretanto, ele passa por algumas experiências que o fazem repensar seu lugar de fala, fazendo-o assumir uma nova posição, agora como parte do grupo dos seguidores de Jesus. Com essa mudança, Paulo passa a interpretar a Revelação a favor desse grupo, inclusive justificando a mistura de judeus e pagãos no mesmo grupo.[11]
Poderíamos apresentar muitos outros exemplos tomando textos bíblicos desde o Antigo Testamento e outros textos do Novo Testamento, mas acredito que com esses temos o mínimo de argumentos para provocar nossa reflexão sobre o processo interpretativo que fazemos da Revelação para justificar nosso discurso religioso e nossas práticas de fé. Não quero, com isso, criar um relativismo, mas demonstrar que o processo de compreensão e acolhida da Revelação é exatamente isso: um processo! Não está acabado de forma definitiva.
As mudanças históricas pelas quais o mundo cristão vem passando estão trazendo novos contextos com novos lugares de fala que precisam ser pensados em diálogo com a Revelação cristã. Não é possível achar que tudo o que se pensa e se defende no discurso religioso cristão é certo e imutável. Há muitos elementos que precisam ser repensados à luz desse processo de interpretação e compreensão da Revelação, não num relativismo que procura adequar a Revelação ao gosto de cada um, mas na compreensão de que a verdade plena que a Revelação cristã nos comunica não pode ser alcançada em sua plenitude a partir de um único lugar de fala. Achar que o nosso lugar de fala é o único válido para interpretar a Revelação cristã é reduzir a Revelação ao discurso religioso de uma cultura, a um ponto de vista que se pretende universalmente válido. A isso eu chamo de reducionismo!
É em diálogo entre os diversos lugares de fala que a Verdade plena que a Revelação cristã comunica pode ser compreendida.





[1] BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985.
[2] BERGER, 1985, p.18.
[3] Uso aqui o termo “moral” na perspectiva de um conjunto de normas que estabelecem os costumes, práticas e interditos que um grupo social deve seguir, e que são aceitos como válidos para um convívio sadio em vista de uma ética do bem, da justiça, da verdade, do amor.
[4] No Evangelho de Marcos, capítulo 3, versículos de 1 ao 6 (Mc 3,1-6).
[5] É o dia de cessação do trabalho, dia de descanso semanal no judaísmo, simbolizando o sétimo dia em Gênesis, após os seis dias de Criação e também da memória da libertação da escravidão do Egito. Observância do Shabbat na religião judaica implica abster-se de atividades de trabalho, muitas vezes com grande rigor. Nesse dia os judeus se reúnem nas sinagogas para a leitura e meditação da Lei e para as orações em comum.
[6] No livro primeiro livro dos Macabeus, capítulo 2, versículos de 29 até o 38 (I Mc 2,29-38).
[7] No Evangelho de Mateus, capítulo 9, versículos de 10 até o 13 (Mt 9,10-13).
[8] No livro de Levítico encontra-se um conjunto de prescrições sobre usos e costume que os judeus deveriam seguir para permanecerem puros diante de Deus e, assim, poder Lhe prestar um culto que fosse agradável.
[9] Os fariseus eram um dos grupos religiosos do judaísmo no tempo de Jesus e das primeiras comunidades dos seguidores de Jesus. Eles se caracterizavam por um zelo no cumprimento da Lei judaica, especialmente no tocante as questões de pureza e de cumprimento dos preceitos estabelecidos (ex.: pagamento dos dízimos, os jejuns, o sábado etc).
[10] A figura do Messias refere-se a esperança de Israel, no tempo de Jesus, de que Deus enviaria um salvador para libertar seu povo do julgo dos povos que o oprimiam e restauraria a nação politicamente e religiosamente.
[11] Basta ver na Carta aos Gálatas e na Carta aos Romanos como Paulo reinterpreta textos da tradição judaica para fundamentar seu discurso a partir desse novo lugar de fala.

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