Nesta postagem vamos concluir essa série de reflexões que estamos
fazendo procurando dar algumas respostas a todas as questões que foram surgindo
nesse caminho.
Essas foram as questões que deixamos em aberto na postagem passada:
existe algo de bom na cruz? Como pode haver salvação na morte de cruz de Jesus?[1]
O Novo Testamento nos apresenta quatro caminhos explicativos usados
pelos primeiros cristãos para tratar dessas questões. Eles buscam no Antigo
Testamento os elementos interpretativos para tentar explicar a salvação por
meio da cruz de Jesus.
Um caminho é o do sacrifício de Jesus. A carta aos Hebreus,
especialmente, utiliza essa linguagem: a morte de Jesus na cruz foi seu sacrifício
que, diferente dos outros sacrifícios, foi aceito por Deus e por isso pode
trazer salvação. O Novo Testamento traz várias passagens sobre a pessoa de
Jesus e sua missão em linguagem cultual sacrifical.[2] A
instituição do sacrifício, tanto no Antigo como no Novo Testamento, é uma das
instituições que tem por objetivo solucionar o problema de como vencer a
infinita distância que separa o homem de Deus. Desse modo, a morte de cruz de
Jesus é interpretada dentro desse universo de sentido.
Outro caminho é o da nova aliança. O tema da aliança entre Deus e
os homens é central no Antigo Testamento. Essa aliança era selada com “sangue”,
por isso se associou a cruz de Jesus com o tema da aliança: seu sangue é o
sangue da nova aliança predita por Jr 31,31-34. Essa explicação inclui a
salvação que o tema do sacrifício produz, ou seja, o tema do perdão dos pecados,
entretanto, essa nova aliança vai além, pois se trata de uma nova forma de
vida, é plenitude da fé, a confissão firme da esperança, da caridade e das boas
obras.[3]
O servo de Javé de Isaías é outro caminho explicativo adotado para
tratar da salvação que a cruz de Jesus traz.[4] O
Novo Testamento usa frequentemente partes das passagens do servo sofredor para
explicar realidades importantes referentes às escolhas e à missão terrena de
Jesus.[5]
Jesus, como Filho de Deus, era inocente, os sofrimentos que carregou são os que
outros deviam carregar e, desse modo, seu sofrimento se converte em salvação
para os outros.
Além dos temas já tratados, ainda resta o quarto caminho que é o
desenvolvido por Paulo. Para ele a cruz é a forma de remeter os cristãos a
Jesus de Nazaré e de corrigir e criticar desvios.[6] Portanto,
a pregação do crucificado é essencial, pois dela depende a verdade da fé. Ela
também é salvífica porque, exatamente por ser escandalosa, a cruz pode se
constituir em autêntica “revelação” de Deus. Na Segunda Carta aos Coríntios,
Paulo acentua o aspecto salvífico da cruz, explicando em que consiste a
salvação da cruz.[7]
Paulo também proclama agradecidamente o fato de que, pela cruz de Jesus, a
fraqueza máxima se transformar em força, a pobreza em riqueza, o egoísmo em
descentramento, a divisão em reconciliação, o negativo em positivo.
O que podemos tentar concluir de tudo isso? Qual (ou quais)
resposta(s) podemos encontrar para as perguntas que levantamos até o momento?
Gostaria de apresentar duas perspectivas que considero muito significativas para
essa reflexão e que acredito que podem ser respostas provocativas para nossa
vida cristã.
Diante de tudo o que apresentamos, está claro que o Novo Testamento
não afirma que é o sofrimento doloroso na cruz que produz salvação ou que só há
salvação porque houve o sofrimento de Jesus.
O que fica evidente, em primeiro lugar, é que Jesus com toda sua
vida foi agradável a Deus, ou seja, apareceu o agradável a Deus entre nós porque
apareceu uma vida vivida no amor até o fim. Por isso Jesus na cruz foi aceito
por Deus, assim como os sacrifícios têm que ser agradáveis a Deus para serem
aceitos por Ele.
Deus não se compraz e nem exige o sacrifício da cruz de Jesus. É a totalidade da vida de Jesus, da
encarnação a cruz, que é agradável a Deus. É a encarnação verdadeira de Jesus,
num mundo de pecado, que o leva à cruz, e a cruz é o produto de uma encarnação
verdadeira.
O salvífico consiste em ter aparecido sobre a terra o que Deus quer
que seja o ser humano.[8] O
Jesus fiel até a cruz é salvação: é a revelação do homo verus (“O ser
humano verdadeiro”). Essa revelação do ser humano verdadeiro é boa notícia e
por isso já é em si mesma salvação, pois por meio de Jesus e de sua cruz
sabemos quem somos.
O verdadeiro amor atravessa o sofrimento, pois quem ama enfrenta
obstáculos. Quem tenta exercer a misericórdia para com os outros e salvá-los
tem que estar disposto a sofrer. A morte de Jesus na cruz está dentro dessa
dinâmica do amor.
Justamente porque os seres humanos puderam ver o amor sobre a terra
na totalidade da vida de Jesus, saber o que eles são e o que devem e podem ser,
a cruz de Jesus, como culminação de toda sua vida, pode ser compreendida
salvificamente.
Antes de concluir, é preciso dizer que a cruz de Jesus também nos
revela algo sobre Deus.
A vida e a cruz de Jesus não eram para fazer mudar a atitude de
Deus em relação aos seres humanos. O próprio Novo Testamento diz,
audaciosamente, que o próprio Deus tomou a iniciativa de se fazer presente em
Jesus.
Jesus é iniciativa de Deus e a cruz (escandalosamente) também é:
“Deus entregou seu próprio Filho por nós”.[9] Jesus
é o sinal histórico no qual Deus expressa seu irrevogável desejo salvífico em
relação a nós. É o amor que salva e a cruz é expressão máxima do amor de Deus.[10] A
cruz de Jesus marca a iniciativa e a credibilidade do amor de Deus.
Não sabemos por que Deus escolheu esse caminho, se haveria outro
melhor, mas o que não se pode negar é a força desse caminho como testemunho do
seu amor.
Por que Jesus morre? A resposta que conseguimos encontrar é a
resposta do amor total pela humanidade: um Deus conosco (encarnação), um Deus
para nós (sua vida), um Deus a mercê de nós (sua paixão e morte de cruz).
[1]
Como o objetivo desse blog é desenvolver uma reflexão acessível, não é possível
fazer uma exposição densa sobre todos os pontos desse tema. Porém, coloco a
seguir uma lista bibliográfica a partir da qual essa reflexão se desenvolve.
Fica a dica para a pesquisa dos leitores e leitoras:
- BARBAGLIO, Giuseppe. Jesus, hebreu da Galileia: pesquisa histórica. São Paulo:
Paulinas, 2011.
- HORSLEY, Richard A.; HANSON, John S.. Bandidos, profetas e messias:
movimentos populares no tempo de Jesus. São Paulo: Paulus, 1995.
- REICKE, Bo. História
do tempo do Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã; São Paulo:
Paulus, 2012.
- SCARDELAI, Donizete. Movimentos messiânicos no tempo de Jesus: Jesus e outros messias.
São Paulo: Paulus, 1998.
- SEGUNDO, Juan Luis. A história perdida e recuperada de Jesus de Nazaré: dos sinóticos a
Paulo. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 1997.
- SCHILLEBEECKX, Edward. Jesus, a história de um vivente. Tradução: Frederico Stein. São
Paulo: Paulus, 2008.
- SCHNEIDER, Theodor (Org.). Manual de dogmática – v.I. 2ª ed.
Petrópolis: Vozes, 2002.
- STEGEMANN, E. W.; STEGEMANN, W. História social
do protocristianismo: os primórdios no judaísmo e as comunidades de Cristo
no mundo mediterrâneo. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2004.
- SOBRINO, Jon. Jesus,
o libertador: I – A história de Jesus de Nazaré. 2ª ed. Petrópolis:
Vozes, 1992.
- THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico: um manual. 2ª
ed. São Paulo: Loyola, 2004.
[2]
1 Cor 5,7; Ap 5,9; Rm 3,25; 5,9; Ef 1,7; 2,13.
[3]
Hb10,22-24.
[4]
Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-11; 52,13 – 53,12.
[5]
Mt 12,18-21; 11,10; Jo 1,32-34; Mt 3,17; Jo 8,12; Lc 4,18, 7,23 etc.
[6]
Gl 3,1; 1Cor 1,17-18.
[7]
2 Cor 5,15; 8,9; 13,4; 5,19.
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