domingo, 11 de março de 2018

Acabando os ricos, acaba a pobreza? (Parte II)

Antes de dizer qualquer outra coisa, gostaria de recordar as questões levantadas na postagem passada e que ainda estamos tentando responder: acabando com os ricos, acabamos com a pobreza? Ser rico é uma coisa ruim? Como enfrentar o problema da pobreza? E os ricos e a riqueza, como ficam em relação a toda essa situação?
Quero começar apresentando alguns dados. Segundo vários sites de notícias,[1] pude levantar as seguintes informações:

- 5 (cinco) bilionários brasileiros têm mais dinheiro que a metade mais pobre do país.
- No mundo, 82% de toda a riqueza gerada em 2017 ficou nas mãos do 1% mais rico da população, enquanto 3,7 bilhões de pessoas não obteve nada.
- Os 1% mais ricos concentra 28% de toda a renda no Brasil.
- Os super-ricos (0,1% da população brasileira hoje) ganham em um mês o mesmo que uma pessoa que recebe um salário mínimo (937 reais) - cerca de 23% da população brasileira - ganharia trabalhando por 19 anos seguidos.

Esses dados revelam uma brutal desigualdade na distribuição da riqueza tanto no Brasil como no mundo. Esses dados devem nos fazer pensar que algo não está certo, algo está faltando, algo deveria ser feito para tornar essa situação mais justa.
Riqueza significa que alguém tem acumulado mais do que precisa para viver. Independente dos meios utilizados para adquiri-la, a riqueza é sinal de um excesso e esse excesso vai fazer falta em algum lugar pelo simples fato de que não existe excesso suficiente para todo mundo, porque o mundo não possui riquezas em excesso suficientes para todos.
Não quero demonizar as pessoas ricas como se ser rico fosse sinônimo de ser egoísta, ser uma pessoa má, ser uma coisa ruim. Entretanto, não dá para olhar esses dados acima e ficarmos indiferentes!
Como cristãos, voltemos mais uma vez o nosso olhar para Jesus e seus discípulos para tentarmos ver quais foram as pistas que eles nos deixaram para lidar com essa realidade.
Nos textos do Novo Testamento podemos encontrar várias passagens sobre como os cristãos deveriam lidar com a riqueza, com os bens, e os cuidados que deveriam ter, ou seja, podemos descobrir uma ética para lidar com essa realidade.
Já vimos na postagem anterior a questão da renúncia, do desapego, da liberdade diante da riqueza para poder seguir Jesus. Em outros textos Deus se apresenta como aquele que vem em favor dos pobres,[2] mas para com os ricos Ele se mostra severo e exigente,[3] inclusive com duras ameaças.[4] A riqueza é passageira[5] e pode sufocar a semente da vida nova que o Evangelho semeou em nosso coração.[6] As pessoas que vivem em busca de riquezas acabam se tornando presas do Mal.[7] Por isso, a orientação para os ricos é a partilha, a generosidade solidária,[8] não colocar sua confiança na riqueza, mas saber empregá-la bem.[9]
Essas orientações podem ser muito bem atualizadas entre nós. Porque a questão aqui não é a riqueza em si ou ser rico, mas a falta de uma ética que oriente a justa distribuição dessa riqueza para que “não haja necessitados entre nós” (At 4,34).
Quero recordar ainda um dos Pais da Igreja, João Crisóstomo (século IV d.C.), que comentando um trecho do Evangelho segundo Mateus, disse: “Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora o abandonas ao frio e à nudez. Aquele que disse: ‘Isto é o meu Corpo’, [...] também afirmou: ‘Vistes-Me com fome e não me destes de comer’, e ainda: ‘Na medida em que o recusastes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o recusastes’. [...] De que serviria, afinal, adornar a mesa de Cristo com vasos de ouro, se Ele morre de fome na pessoa dos pobres? Primeiro dá de comer a quem tem fome, e depois ornamenta a sua mesa com o que sobra”.[10]
É preciso que entendamos que não se trata de simplesmente fazer sopão para distribuir, ou organizar feiras para os pobres no final do ano. Os cristãos devem ser os primeiros a se comprometer na busca por meios que permitam transformar de forma duradoura a realidade que apresentamos no início desse texto. Esses meios encontram-se no compromisso político e social, lutando por políticas públicas, projetos de desenvolvimento econômico e social, criação de leis, que favoreçam uma real distribuição de renda que permita a todos ter uma vida digna com direito ao trabalho, à saúde, à educação, ao transporte, à alimentação, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social.[11]
Talvez o grande desafio para todos nós seja saber compartilhar, transformar a riqueza que acumulamos em um meio para transformar a realidade tornando-a mais justa e solidária. Isso exige uma conversão profunda dos valores que carregamos no coração, pois todos somos tentados a acumular, a sermos egoístas, a nos apegamos as coisas, inclusive as pessoas pobres também desejam ser ricas. É uma tentação presente no coração humano, a tentação do acumular, do “ter”.
Sei que isso pode parecer utópico, mas me parece que essa é a proposta do Evangelho de Jesus. A riqueza em si não é má se ela se torna um benefício para todos. Porém, quando ela se torna uma finalidade em si mesma, a riqueza gera injustiça, sofrimento e morte, pois as pessoas são instrumentalizadas em vista da riqueza.
O que o Evangelho de Jesus destaca é que as pessoas devem estar no centro e tudo mais deve estar a serviço da promoção da vida das pessoas. Então, tentando responder a pergunta: acabando os ricos, acaba a pobreza? Eu digo que não! O que acaba com a pobreza é a mudança dos valores que trazemos em nosso coração e que orientam o uso da riqueza. Um coração egoísta e avarento, apegado ao poder e ao prazer, jamais buscará uma transformação política, social e econômica em vista de colocar as riquezas a serviço da vida das pessoas. Um coração movido pelos valores do Evangelho de Jesus, ou seja, por uma ética do valor da vida humana, saberá que não precisa acumular bens, que a riqueza que conquistou deve ser colocada a serviço da promoção de uma vida digna para todas as pessoas.
Um provérbio no Antigo Testamento expressa bem o desejo de alguém que não quer sofrer com a pobreza, mas também não que ser seduzido pela riqueza. O autor pede a Deus: “Afasta de mim a falsidade e a mentira, não me dês nem pobreza nem riqueza” (Pr 30,8).
Portanto, para acabar com a pobreza deve-se solidarizar a riqueza, e se solidarizarmos a riqueza não existirão nem ricos nem pobres, existirão irmãos e irmãs. Esse me parece ser o caminho da Boa Notícia de Jesus!




[2] Lc 4,18
[3] Lc 1,53
[4] Lc 6,24; Tg 5,1-6
[5] I Cor 7,29-31; I Tm 6,7; I Tg 1,11
[6] Mt 13,22
[7] I Tm 6,9-10
[8] Lc 19,8; At 2,44-45; II Cor 9,6-15; Gl 6,6; Fl 4,10-20; I Tm 6,18; Hb 13,16
[9] I Tm 6,17-18; I Jo 3,17-18
[10] Cf. São João Crisóstomo, Homilias sobre o Evangelho de Mateus, 50, 3-4: PG 58, 508-509.
[11] Esses são alguns dos direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Brasileira de 1988.

Um comentário:

  1. A questão que se estar posta é: nessa sociedade capitalista, onde o ter se sobrepõe ao ser, é preciso a resistência, o engajamento político, os rompimentos com as prenoções, e entrar na luta para que todos possam SER com dignidade e TER o que precisam para uma vida digna.

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