Outro dia eu li em uma rede social a seguinte
postagem: “Para reduzir a pobreza, é preciso combater a riqueza? Acabando os
ricos, acaba a pobreza?” Essa provocação suscitou vários tipos de comentários,
sendo muitos deles defendendo políticas neoliberais, privatizações, entre
outros comentários mais vagos e dispersos. Entretanto, o que me chamou a
atenção para essa postagem foi a sutil provocação sobre o tema da opção pelos
pobres assumida pela Igreja Católica na América Latina, incluindo a Igreja do
Brasil. Percebi, na postagem e em alguns comentários, aquela crítica debochada
de que esse negócio é “coisa de comunista”. Abaixo da pergunta estava escrito o
seguinte convite: “Opine!”. Pois bem, vou opinar!
A discussão sobre a riqueza e a pobreza, sobre
ricos e pobres, não é exclusiva do meio político. Ela sempre causou polêmicas também
no meio religioso cristão católico. Com o advento da Teologia da Libertação na
América Latina a partir de 1970, o tema da pobreza e da riqueza foi retomado
com novo vigor diante de um continente marcado pela presença maciça de pobres,
pelas desigualdades sociais, por regimes totalitários, pela concentração das
riquezas, pela exclusão de milhares de pessoas dos meios básico para
sobreviver. Debates acalorados sobre o problema da injustiça, da pobreza e das
estruturas de pecado que impedem as pessoas de ter uma vida digna movimentaram
boa parte dos encontros religiosos e teológicos que buscavam, à luz da fé,
descobrir como transformar essa realidade.
Muitos discursos se levantaram para defender
uma práxis religiosa que fizesse a opção pelos pobres e excluídos. Nesse
contexto, também surgiram discursos duros e hostis aos ricos e a riqueza,
criticando a ostentação, o acúmulo de bens e o não compromisso com as mudanças
sociais e políticas necessária para produzir uma sociedade mais justa para
todos. Então, as pessoas que eram católicas e que eram ricas começaram a
questionar se Deus era só para os pobres, se ser rico e ter bens era pecado, pois
eles tinham se esforçado para chegar a essa condição de vida, e que esse
discurso excluía as pessoas ricas da Igreja e demonizava a riqueza. Afinal,
Jesus não morreu pela salvação de todos? Todos não são filhos de Deus? Deus não
ama a todos? Ter bens e poder gozar a vida é uma coisa ruim?
É preciso voltar os olhos para o Evangelho de
Jesus para tentarmos entender qual é o caminho proposto por Ele para quem quer
ser Seu discípulo. A partir disso podemos pensar a questão proposta no início
desse texto.
Em
relação à riqueza e a posse de bens, uma característica de Jesus presente nos
evangelhos é o convite a deixar tudo para poder segui-lo. Em vários lugares
encontramos essa exigência.[1] Parece que “ter coisas”
pode criar dificuldades para quem quer ser seu discípulo.[2] Inclusive os evangelhos
lembram que não dá para servir a Deus e ao dinheiro.[3] Parece que a relação com a
riqueza e com os bens, no Novo Testamento, é uma relação complicada.
Entretanto, o contexto que encontramos no ambiente do Novo Testamento ajuda a
compreender esse discurso: a sociedade judaica na Palestina era profundamente
desigual, na qual um grupo concentrava as riquezas e bens, enquanto a maioria
da população sofria para sobreviver; os ricos exploravam o povo e faziam de
tudo para manter sua posição e o Império Romano impunha pesados tributos que
sobrecarregam especialmente os mais pobres. Não é por acaso que a riqueza é
comparada, nos evangelhos, com uma divindade que escraviza as pessoas, gerando
desigualdade, sofrimento e morte, impedindo as pessoas de viverem o mandamento
do amor.
Sobre
a pobreza podemos destacar duas dimensões nos evangelhos.
A
primeira é a simbólica, da liberdade, do desapego. Por isso, deixar tudo,
vender todos os bens e dar aos pobres, tornar-se pobre para seguir Jesus, é
sinal da liberdade para fazer uma opção radical de vida, retirando toda
confiança nos bens, no poder, na posse das coisas, para confiar unicamente em Deus.[4]
A
segunda dimensão é o problema real e estrutural da sociedade que gera massas de
pessoas excluídas do direito de ter uma vida digna, sem acesso aos meios
básicos para sobreviver. Sobre isso, os evangelhos lembram que são com eles que
devemos repartir nossos bens, nossas riquezas.[5] Lembra que é deles o Reino
dos Céus;[6] e Jesus mesmo se
identifica com eles ao dizer que socorrê-los, fazer o bem a eles, é fazer o
mesmo por Ele próprio.[7]
Em
outros textos do Novo Testamento vemos que a comunidade cristã procurou por em
prática o ensinamento de Jesus. Eles procuravam partilhar as coisas e não
permitir que alguém passasse necessidade na comunidade.[8] Inclusive chegaram a organizar
uma grande coleta em todas as comunidades para socorrer os necessitados de Jerusalém.[9]
Entretanto,
também encontramos textos em que pessoas com posses se tornaram membros da
comunidade e colocaram seus bens a serviço, abrindo as portas de suas casas
para que a igreja pudesse se reunir e auxiliando com seus bens as necessidades
dos mais pobres. No próprio evangelho encontramos algumas mulheres ricas,
casadas com homens de posses, que ajudavam a Jesus e seus discípulos com seus
bens.[10]
Parece
que essa tensão entre a riqueza e a pobreza não é coisa tão nova assim. Nos
textos do Novo Testamento (sem levar em conta toda a tradição do Antigo
Testamento) percebemos várias situações que, aparentemente, nos deixam mais
confusos ainda. Afinal, acabando com os ricos, acabamos com a pobreza? Ser rico
é uma coisa ruim? Como enfrentar o problema da pobreza?
Há
uma frase no Evangelho segundo João que foi mal usada em um tipo de discurso
religioso que queria justificar a existência da pobreza e dos pobres,
desresponsabilizando as pessoas da necessidade de transformar essa realidade.
Jesus teria dito que “pobres sempre tereis”.[11] Porém é uma interpretação
que usa de má-fé, pois tira a frase de seu contexto. Por outro lado, essa frase
expressa o grande desafio que é a realidade da pobreza, ou seja, ela não vai
desaparecer facilmente dentro da história humana.
Isso
significa que devemos nos acomodar e deixar as coisas como estão? A resposta,
que permite também interpretar essa frase com clareza, é a resposta que o
próprio Jesus deu com sua vida: ele nos amou até o fim![12] Na sua cruz, morreu por
todos, inclusive por quem o executou, por quem nunca veio (ou virá) a acreditar
nele, tão radical é seu amor.
Seguindo
esse exemplo, a luta contra a pobreza deve ser constante, “até o fim”. Somente
movidos por um amor radical, como o de Jesus por nós, é que poderemos
permanecer firmes na luta para que todas as pessoas possam ter uma vida digna,
mesmo diante da possibilidade de não conseguirmos atingir o nosso objetivo.
E
os ricos e a riqueza? Como ficam em relação a toda essa situação?
Na
próxima postagem vamos continuar discutindo essas questões!
[1]
Cf. Lc 14,33; Lc 18,22; Mt 4,18-22; Mt
6,19-21; Mt 8,18-22; Mt 16,24-26.
[2]
Mc 10,25.
[3]
Mt 6,24; Lc 16,13.
[4]
Mt 19,21-29
[5]
Lc 12, 33-34; Lc 18,22; At 4,34-35.
[6]
Lc 6,20.
[7]
Mt 25,40.45.
[8]
At 2,44; At 4,34-35.
[9]
At 11, 29; At 24,17; Rm 15,26; I Cor 16,1-2; Gl 2,10.
[10]
Lc 8,3.
[11]
Jo 12,8.
[12]
Jo 13,1.
O texto nos instiga a buscar compreender as distorcidas interpretacções dos trechos bíblicos que tratam sobre a riqueza e a pobreza. Já aguardando a próxima postagem.
ResponderExcluirObrigado pelo incentivo. Continue nos acompanhando, temos postagens anteriores com temas instigantes que podem ser do seu interesse.É só acessar na coluna aqui do lado direito da página a área ARQUIVOS DO BLOG e dar uma olhada nos temas.
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