domingo, 18 de março de 2018

“Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus” (Mateus 5,10)




Quero conversar com você que acompanha nossas reflexões sobre um trágico acontecimento dessa semana que foi o assassinato de Marielle Franco, mulher, negra, lésbica, mãe, que tinha 38 anos de idade, na cidade do Rio de Janeiro.
Segundo um vídeo em que ela fala um pouco sobre sua vida, Marielle nasceu, cresceu e vivia na periferia.[1] Lá ela teve que enfrentar o que muitas pessoas só conhecem por números estatísticos: educação de baixa qualidade, gravidez na adolescência, exposição ao risco da violência em suas várias possibilidades (que para uma mulher negra é maior ainda). Ela conseguiu atravessar isso e vencer as estatísticas que apontavam para ela um futuro “sem futuro”.
Ela se tornou socióloga pela PUC-RJ e mestra em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Abraçou o desafio de fazer política a partir de sua realidade de periferia, envolvendo-se em movimentos sociais de sua comunidade. Tornou-se vereadora no Rio de Janeiro pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, e era coordenadora da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio.
Segundo reportagens, ela foi assassinada “[...] a tiros dentro de um carro na Rua Joaquim Palhares, no bairro do Estácio, na Região Central do Rio, por volta das 21h30 desta quarta-feira (14). Além da vereadora, o motorista do veículo, Anderson Pedro Gomes, também foi baleado e morreu. Uma outra passageira, assessora de Marielle, foi atingida por estilhaços”.[2]
Não vou entrar no mérito de quem a assassinou nem tratar das outras vítimas que estavam no carro e que, infelizmente, também foram alvo desse ato violento. O que eu sei é que tudo aponta para um crime de execução, mas quem teria executado a Marielle e o “por quê” é difícil dizer no momento. Alguns ficam acusando a polícia ou a intervenção militar porque ela denunciava abusos que estavam acontecendo nas periferias; outros afirmam que ela foi morta pelos bandidos que “ela defendia” por causa dos Direitos Humanos, como se isso fosse uma espécie de “ironia da vida”. O fato é que ela era atuante em sua comunidade, denunciando a violência do Estado contra os moradores das periferias, inclusive nesse momento de intervenção militar, e procurando desenvolver projetos que ajudassem a tirar as mulheres da sua situação de risco diante da sua realidade de periferia e promover seus direitos.
Marielle Franco
O que desejo conversar aqui é sobre algumas reações estranhas que tenho visto nas redes sociais sobre seu assassinato violento.
Entre as várias mensagens de solidariedade e de pesar pelo acontecimento, tenho visto mensagens do tipo: “recebeu o que merecia, foi defender bandido...”; ou “colheu o que plantou”. Como se ela fosse a favor do crime ao atuar em defesa dos Direitos Humanos. Pior, muitas dessas pessoas não sabem o que são os Direitos Humanos,[3] não procuram saber e acabaram comprando o “discurso fajuto” de que eles servem para “defender bandido”... Em fim, pessoas que quase estão comemorando o acontecimento, o que me fez pensar no meu Senhor Jesus Cristo.
Esse discurso debochado sobre o assassinato de Marielle Franco me fez lembrar o discurso debochado dos adversários de Jesus aos pés da cruz:
- “Se és Filho de Deus, desce da cruz” (Mt 27,40), ou seja, você num disse que Deus era seu Pai, olha que mentira, se ele fosse seu Pai não deixaria você morrer na cruz, MENTIROSO!!! Bem feito!!
- “Salvou os outros, e a si mesmo não pode salvar-se. Se é o Rei de Israel, desça agora da cruz, e creremos nele.” (Mateus 27,42), ou seja, você não fazia “milagres”, você não “curava” as pessoas, porque agora não tem “poder” para descer da cruz. Onde estão as pessoas que você ajudou nesse momento? CHARLATÃO!!! MENTIROSO!!! Bem feito morrer assim!
- “Confiou em Deus; livre-o agora, se o ama; porque disse: Sou Filho de Deus. (Mateus 27,43), ou seja, você está morrendo assim porque você não é o Filho de Deus e Deus não ama mentirosos. Só pessoas más morrem assim! BEM FEITO!!!
Essas frases ecoam em meus ouvidos agora, enquanto vejo essas manifestações de ódio contra uma mulher que defendia o direito e a justiça em favor daqueles com quem ela havia crescido e com quem convivia. Contra uma mulher preocupada com a promoção da vida e da dignidade das mulheres negras das periferias, preocupada com o direito das pessoas da periferia de serem tratadas como pessoas pelos poderes públicos.
Ela é uma “bem-aventurada” por lutar pela justiça e pelo direito das pessoas. Aqueles que a criticam e a acusam de que a morte dela é a “prova” de que ela estava errada são pessoas com um olhar de quem não sabe o que é ser excluído e viver a margem da sociedade. São pessoas que não estão preocupadas se a periferia (ou a favela) existe, mais do que isso, essas pessoas não querem tomar conhecimento de que a periferia existe nem querem que a violência dela chegue até seu “espaço”. O “lugar de fala”[4] dessas pessoas geralmente é branco, heteronormativo, de classe média (real ou cultural),[5] moralista, cristão e neoliberal. Por isso, querem que as favelas tenham “cercas”, limites, mecanismos de contenção para manter lá dentro o que lhes incomoda.
Jesus viveu na periferia e foi assassinado porque falava de um tal de “Reino de Deus” para os pobres da periferia de onde ele vinha e onde ele vivia com seus discípulos. Ele buscava a justiça em favor da vida das pessoas, de todas as pessoas, e por isso, morrendo ele ainda disse: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.” (Lucas 23,34). Mesmo aqueles que zombavam dele eram alvo do seu desejo de justiça, de vida, de salvação.
Marielle defendia os Direitos Humanos, direitos que são para todos, mesmo para aqueles que rejeitam esses direitos. Por isso eu também rogo ao ver essas manifestações debochadas nas redes sociais: Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem!
Não sei “por que assassinaram Marielle Franco” ou “quem a assassinou”, e não vou politizar esse acontecimento como muitos tem feito nas redes sociais. Vai caber às investigações descobrir as respostas e ao olhar atento da sociedade acompanhar esse processo.
Não preciso concordar com todas as posições dela, nem com todos os aspectos de sua ideologia política para respeitá-la. Posso discordar de seu ponto de vista sobre certos temas, mas isso não me impede de amá-la como uma irmã, filha do mesmo “Pai que está nos Céus”. O que desejo é deixar aqui meu respeito e solidariedade pela pessoa dela, por sua história e por sua luta. Quero deixar meu pesar por seu assassinato violento e o meu desejo de que a justiça, pela qual ela lutava, seja feita por ela e pelas outras duas vítimas que estavam no carro. Quero lembrar que, independente da “autoria”[6] de seu assassinato, ela é uma “bem-aventurada” por lutar pela justiça e que, por isso, o Reino dos Céus também pertence a ela, conforme ensinou Jesus.


[3] Para quem desejar conhecer o que diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos: http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf
[4] Indico o livro O QUE É LUGAR DE FALA? de Djamila Ribeiro.
[5] Essa classificação “real ou cultural” é devido o fato de que a mentalidade de classe média se faz presente nas classes populares como “ideal bom” para todos. Por isso, existem pessoas que são da periferia, pobres, sofrem com as diversas formas de exclusão e violência, mas pensam a vida e a realidade com o “óculos” da classe média.
[6] Falo de autoria por causa das “teorias” que rolam nas redes sociais, umas afirmando que foi a polícia ou o exército por causa de suas críticas e denúncias de abusos; outros falam de grupos criminosos organizados em retaliação ao trabalho social que ela promove na periferia. Como eu disse no texto, o que eu sei é que ela foi assassinada, quem fez e o por que não é possível dizer agora e não cabe a mim fazer isso aqui.

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