domingo, 25 de março de 2018

Um Rei montado em um jumentinho

Uma imagem significativa dentro das celebrações da Semana Santa é a de Jesus entrando em Jerusalém aclamado pelos seus discípulos e por uma multidão[1] que, tomando ramos nas mãos e os seus mantos para colocá-los pelo caminho por onde ele estava passando em sinal de reverência, gritavam “hosana ao filho de Davi”. Isso se dava porque Jesus estava sendo visto como o Rei messiânico prometido, que viria libertar Israel de sua opressão.
Entretanto, a aparente pomposidade da cena é quebrada pela forma como Jesus se apresenta. Ele entra em Jerusalém em meio às aclamações não em uma carruagem real, não em um possante cavalo de guerra, mas montado em um jumentinho.
Essa imagem é provocativa para todos nós ainda hoje, pois ela nos revela como a “lógica de Deus” é diferente da nossa forma de pensar e compreender as coisas.
Sempre que medito cenas como essa, presentes nos Evangelhos, me chama a atenção como a Palavra de Deus nos provoca a repensarmos a forma como olhamos e entendemos a vida ao nosso redor.
Vivemos em um mundo no qual a imagem é mais valorizada do que o conteúdo. Uma sociedade das redes sociais em que postamos fotos de nossa “felicidade”, de nosso “sucesso”, no desejo de obter os “louvores” das outras pessoas por meio de suas “curtidas” e comentários. Muitas vezes essas imagens não correspondem à realidade, mas apenas produzem uma ilusão de realidade para quem está vendo e uma falsa sensação de sucesso para quem está sendo visto.
O desejo de obter o prestígio e a admiração das pessoas muitas vezes dita a forma como construímos nossas relações. Muitas vezes caímos na tentação de procurar nos apresentar passando uma imagem de “grandeza”, de destaque, para garantirmos o reconhecimento e os aplausos que desejamos.
No Evangelho Jesus parece ir na contramão de tudo isso ao entrar montado em um jumentinho na cidade de Jerusalém. Apesar de ele estar sendo aclamado como um Rei, apresenta-se em uma montaria dos pobres, dos camponeses viajantes, sem pompa, sem glórias aparentes. É um contraste diante da euforia que o cerca. Porém, parece-me que o Evangelho está querendo nos fazer pensar sobre alguma coisa...
Esse contraste nos convida a pensar sobre como é fácil nos iludirmos com nossos desejos de poder e de grandeza. Mesmo Jesus manifestando que ele é um “rei diferente” ao montar um jumentinho, a multidão esperava dele uma revolução contra os opressores romanos. Entretanto, como ele não correspondeu a essa expectativa foi tomado por um impostor e abandonado pela mesma multidão à morte na cruz.[2]
A lógica de Deus que o Evangelho nos apresenta é a logica do serviço. É quando nos colocamos a serviço dos outros, sem busca de glórias pessoais, mas por amor livre e generoso, que descobrimos o verdadeiro sentido da vida. As “glórias desse mundo” são passageiras. O que realmente fica é o amor compartilhado por meio do serviço em favor daqueles que mais precisam, na luta pela justiça, no esforço dedicado à construção de uma sociedade que seja um dia a Civilização do Amor que Jesus desejou e pela qual deu sua vida. Montado em um jumentinho, Jesus aponta o caminho do serviço, não o caminho das “glórias desse mundo”, como o caminho que gera verdadeiro sentido para nossa vida.
Esse caminho vale para cada um de nós, mas também vale para as instituições religiosas de forma mais significativa.
Toda religião que não assume o caminho do serviço, mas que se coloca a serviço de si mesma, em busca de prestígio e poder, não entendeu o nosso “Rei montado em um jumentinho”. Quando colocamos as instituições acima das pessoas, acima de sua dignidade, não entendemos ainda essa cena da entrada de Jesus em Jerusalém.
Corremos o risco de estarmos, na verdade, distraídos com os ramos, os mantos, os gritos de exaltação, e não vermos Jesus montado em um jumentinho. Talvez até pensemos que o jumentinho é um acidente de percurso, que Jesus montou nele porque não encontrou coisa melhor, que foi um improviso do momento, tudo para não pensarmos no significado dessa imagem de Jesus sobre o jumentinho.
É difícil não sermos envolvidos pelo contexto cultural no qual vivemos atualmente. Cada um de nós, pessoalmente, assim como as nossas Igrejas, não estamos livres do fascínio dos aplausos, dos elogios, da busca por poder e prestígio. Somos incentivados de várias maneiras a buscar isso como sinal de realização e felicidade. Entretanto, a mensagem que vemos no Evangelho pode nos ajudar a discernir melhor nossas escolhas e atitudes, e nos ajudar a ir na “contra-mão” dessa lógica da imagem e do poder.
Contemplemos essa cena que o Evangelho nos oferece nesses dias! Deixe-mo-nos questionar por ela! Olhemos para Jesus, nosso Rei, montado em um jumentinho e aprendamos com Ele o caminho do serviço como o verdadeiro caminho que nos fará “grandes no Reino dos Céus”.[3]



[1] Mc 11,1-11; Mt 21,1-11; Lc 19,28-40.
[2] Lc 24,19-21
[3] Mc 9,33-37.

domingo, 18 de março de 2018

“Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus” (Mateus 5,10)




Quero conversar com você que acompanha nossas reflexões sobre um trágico acontecimento dessa semana que foi o assassinato de Marielle Franco, mulher, negra, lésbica, mãe, que tinha 38 anos de idade, na cidade do Rio de Janeiro.
Segundo um vídeo em que ela fala um pouco sobre sua vida, Marielle nasceu, cresceu e vivia na periferia.[1] Lá ela teve que enfrentar o que muitas pessoas só conhecem por números estatísticos: educação de baixa qualidade, gravidez na adolescência, exposição ao risco da violência em suas várias possibilidades (que para uma mulher negra é maior ainda). Ela conseguiu atravessar isso e vencer as estatísticas que apontavam para ela um futuro “sem futuro”.
Ela se tornou socióloga pela PUC-RJ e mestra em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Abraçou o desafio de fazer política a partir de sua realidade de periferia, envolvendo-se em movimentos sociais de sua comunidade. Tornou-se vereadora no Rio de Janeiro pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, e era coordenadora da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio.
Segundo reportagens, ela foi assassinada “[...] a tiros dentro de um carro na Rua Joaquim Palhares, no bairro do Estácio, na Região Central do Rio, por volta das 21h30 desta quarta-feira (14). Além da vereadora, o motorista do veículo, Anderson Pedro Gomes, também foi baleado e morreu. Uma outra passageira, assessora de Marielle, foi atingida por estilhaços”.[2]
Não vou entrar no mérito de quem a assassinou nem tratar das outras vítimas que estavam no carro e que, infelizmente, também foram alvo desse ato violento. O que eu sei é que tudo aponta para um crime de execução, mas quem teria executado a Marielle e o “por quê” é difícil dizer no momento. Alguns ficam acusando a polícia ou a intervenção militar porque ela denunciava abusos que estavam acontecendo nas periferias; outros afirmam que ela foi morta pelos bandidos que “ela defendia” por causa dos Direitos Humanos, como se isso fosse uma espécie de “ironia da vida”. O fato é que ela era atuante em sua comunidade, denunciando a violência do Estado contra os moradores das periferias, inclusive nesse momento de intervenção militar, e procurando desenvolver projetos que ajudassem a tirar as mulheres da sua situação de risco diante da sua realidade de periferia e promover seus direitos.
Marielle Franco
O que desejo conversar aqui é sobre algumas reações estranhas que tenho visto nas redes sociais sobre seu assassinato violento.
Entre as várias mensagens de solidariedade e de pesar pelo acontecimento, tenho visto mensagens do tipo: “recebeu o que merecia, foi defender bandido...”; ou “colheu o que plantou”. Como se ela fosse a favor do crime ao atuar em defesa dos Direitos Humanos. Pior, muitas dessas pessoas não sabem o que são os Direitos Humanos,[3] não procuram saber e acabaram comprando o “discurso fajuto” de que eles servem para “defender bandido”... Em fim, pessoas que quase estão comemorando o acontecimento, o que me fez pensar no meu Senhor Jesus Cristo.
Esse discurso debochado sobre o assassinato de Marielle Franco me fez lembrar o discurso debochado dos adversários de Jesus aos pés da cruz:
- “Se és Filho de Deus, desce da cruz” (Mt 27,40), ou seja, você num disse que Deus era seu Pai, olha que mentira, se ele fosse seu Pai não deixaria você morrer na cruz, MENTIROSO!!! Bem feito!!
- “Salvou os outros, e a si mesmo não pode salvar-se. Se é o Rei de Israel, desça agora da cruz, e creremos nele.” (Mateus 27,42), ou seja, você não fazia “milagres”, você não “curava” as pessoas, porque agora não tem “poder” para descer da cruz. Onde estão as pessoas que você ajudou nesse momento? CHARLATÃO!!! MENTIROSO!!! Bem feito morrer assim!
- “Confiou em Deus; livre-o agora, se o ama; porque disse: Sou Filho de Deus. (Mateus 27,43), ou seja, você está morrendo assim porque você não é o Filho de Deus e Deus não ama mentirosos. Só pessoas más morrem assim! BEM FEITO!!!
Essas frases ecoam em meus ouvidos agora, enquanto vejo essas manifestações de ódio contra uma mulher que defendia o direito e a justiça em favor daqueles com quem ela havia crescido e com quem convivia. Contra uma mulher preocupada com a promoção da vida e da dignidade das mulheres negras das periferias, preocupada com o direito das pessoas da periferia de serem tratadas como pessoas pelos poderes públicos.
Ela é uma “bem-aventurada” por lutar pela justiça e pelo direito das pessoas. Aqueles que a criticam e a acusam de que a morte dela é a “prova” de que ela estava errada são pessoas com um olhar de quem não sabe o que é ser excluído e viver a margem da sociedade. São pessoas que não estão preocupadas se a periferia (ou a favela) existe, mais do que isso, essas pessoas não querem tomar conhecimento de que a periferia existe nem querem que a violência dela chegue até seu “espaço”. O “lugar de fala”[4] dessas pessoas geralmente é branco, heteronormativo, de classe média (real ou cultural),[5] moralista, cristão e neoliberal. Por isso, querem que as favelas tenham “cercas”, limites, mecanismos de contenção para manter lá dentro o que lhes incomoda.
Jesus viveu na periferia e foi assassinado porque falava de um tal de “Reino de Deus” para os pobres da periferia de onde ele vinha e onde ele vivia com seus discípulos. Ele buscava a justiça em favor da vida das pessoas, de todas as pessoas, e por isso, morrendo ele ainda disse: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.” (Lucas 23,34). Mesmo aqueles que zombavam dele eram alvo do seu desejo de justiça, de vida, de salvação.
Marielle defendia os Direitos Humanos, direitos que são para todos, mesmo para aqueles que rejeitam esses direitos. Por isso eu também rogo ao ver essas manifestações debochadas nas redes sociais: Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem!
Não sei “por que assassinaram Marielle Franco” ou “quem a assassinou”, e não vou politizar esse acontecimento como muitos tem feito nas redes sociais. Vai caber às investigações descobrir as respostas e ao olhar atento da sociedade acompanhar esse processo.
Não preciso concordar com todas as posições dela, nem com todos os aspectos de sua ideologia política para respeitá-la. Posso discordar de seu ponto de vista sobre certos temas, mas isso não me impede de amá-la como uma irmã, filha do mesmo “Pai que está nos Céus”. O que desejo é deixar aqui meu respeito e solidariedade pela pessoa dela, por sua história e por sua luta. Quero deixar meu pesar por seu assassinato violento e o meu desejo de que a justiça, pela qual ela lutava, seja feita por ela e pelas outras duas vítimas que estavam no carro. Quero lembrar que, independente da “autoria”[6] de seu assassinato, ela é uma “bem-aventurada” por lutar pela justiça e que, por isso, o Reino dos Céus também pertence a ela, conforme ensinou Jesus.


[3] Para quem desejar conhecer o que diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos: http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf
[4] Indico o livro O QUE É LUGAR DE FALA? de Djamila Ribeiro.
[5] Essa classificação “real ou cultural” é devido o fato de que a mentalidade de classe média se faz presente nas classes populares como “ideal bom” para todos. Por isso, existem pessoas que são da periferia, pobres, sofrem com as diversas formas de exclusão e violência, mas pensam a vida e a realidade com o “óculos” da classe média.
[6] Falo de autoria por causa das “teorias” que rolam nas redes sociais, umas afirmando que foi a polícia ou o exército por causa de suas críticas e denúncias de abusos; outros falam de grupos criminosos organizados em retaliação ao trabalho social que ela promove na periferia. Como eu disse no texto, o que eu sei é que ela foi assassinada, quem fez e o por que não é possível dizer agora e não cabe a mim fazer isso aqui.

domingo, 11 de março de 2018

Acabando os ricos, acaba a pobreza? (Parte II)

Antes de dizer qualquer outra coisa, gostaria de recordar as questões levantadas na postagem passada e que ainda estamos tentando responder: acabando com os ricos, acabamos com a pobreza? Ser rico é uma coisa ruim? Como enfrentar o problema da pobreza? E os ricos e a riqueza, como ficam em relação a toda essa situação?
Quero começar apresentando alguns dados. Segundo vários sites de notícias,[1] pude levantar as seguintes informações:

- 5 (cinco) bilionários brasileiros têm mais dinheiro que a metade mais pobre do país.
- No mundo, 82% de toda a riqueza gerada em 2017 ficou nas mãos do 1% mais rico da população, enquanto 3,7 bilhões de pessoas não obteve nada.
- Os 1% mais ricos concentra 28% de toda a renda no Brasil.
- Os super-ricos (0,1% da população brasileira hoje) ganham em um mês o mesmo que uma pessoa que recebe um salário mínimo (937 reais) - cerca de 23% da população brasileira - ganharia trabalhando por 19 anos seguidos.

Esses dados revelam uma brutal desigualdade na distribuição da riqueza tanto no Brasil como no mundo. Esses dados devem nos fazer pensar que algo não está certo, algo está faltando, algo deveria ser feito para tornar essa situação mais justa.
Riqueza significa que alguém tem acumulado mais do que precisa para viver. Independente dos meios utilizados para adquiri-la, a riqueza é sinal de um excesso e esse excesso vai fazer falta em algum lugar pelo simples fato de que não existe excesso suficiente para todo mundo, porque o mundo não possui riquezas em excesso suficientes para todos.
Não quero demonizar as pessoas ricas como se ser rico fosse sinônimo de ser egoísta, ser uma pessoa má, ser uma coisa ruim. Entretanto, não dá para olhar esses dados acima e ficarmos indiferentes!
Como cristãos, voltemos mais uma vez o nosso olhar para Jesus e seus discípulos para tentarmos ver quais foram as pistas que eles nos deixaram para lidar com essa realidade.
Nos textos do Novo Testamento podemos encontrar várias passagens sobre como os cristãos deveriam lidar com a riqueza, com os bens, e os cuidados que deveriam ter, ou seja, podemos descobrir uma ética para lidar com essa realidade.
Já vimos na postagem anterior a questão da renúncia, do desapego, da liberdade diante da riqueza para poder seguir Jesus. Em outros textos Deus se apresenta como aquele que vem em favor dos pobres,[2] mas para com os ricos Ele se mostra severo e exigente,[3] inclusive com duras ameaças.[4] A riqueza é passageira[5] e pode sufocar a semente da vida nova que o Evangelho semeou em nosso coração.[6] As pessoas que vivem em busca de riquezas acabam se tornando presas do Mal.[7] Por isso, a orientação para os ricos é a partilha, a generosidade solidária,[8] não colocar sua confiança na riqueza, mas saber empregá-la bem.[9]
Essas orientações podem ser muito bem atualizadas entre nós. Porque a questão aqui não é a riqueza em si ou ser rico, mas a falta de uma ética que oriente a justa distribuição dessa riqueza para que “não haja necessitados entre nós” (At 4,34).
Quero recordar ainda um dos Pais da Igreja, João Crisóstomo (século IV d.C.), que comentando um trecho do Evangelho segundo Mateus, disse: “Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora o abandonas ao frio e à nudez. Aquele que disse: ‘Isto é o meu Corpo’, [...] também afirmou: ‘Vistes-Me com fome e não me destes de comer’, e ainda: ‘Na medida em que o recusastes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o recusastes’. [...] De que serviria, afinal, adornar a mesa de Cristo com vasos de ouro, se Ele morre de fome na pessoa dos pobres? Primeiro dá de comer a quem tem fome, e depois ornamenta a sua mesa com o que sobra”.[10]
É preciso que entendamos que não se trata de simplesmente fazer sopão para distribuir, ou organizar feiras para os pobres no final do ano. Os cristãos devem ser os primeiros a se comprometer na busca por meios que permitam transformar de forma duradoura a realidade que apresentamos no início desse texto. Esses meios encontram-se no compromisso político e social, lutando por políticas públicas, projetos de desenvolvimento econômico e social, criação de leis, que favoreçam uma real distribuição de renda que permita a todos ter uma vida digna com direito ao trabalho, à saúde, à educação, ao transporte, à alimentação, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social.[11]
Talvez o grande desafio para todos nós seja saber compartilhar, transformar a riqueza que acumulamos em um meio para transformar a realidade tornando-a mais justa e solidária. Isso exige uma conversão profunda dos valores que carregamos no coração, pois todos somos tentados a acumular, a sermos egoístas, a nos apegamos as coisas, inclusive as pessoas pobres também desejam ser ricas. É uma tentação presente no coração humano, a tentação do acumular, do “ter”.
Sei que isso pode parecer utópico, mas me parece que essa é a proposta do Evangelho de Jesus. A riqueza em si não é má se ela se torna um benefício para todos. Porém, quando ela se torna uma finalidade em si mesma, a riqueza gera injustiça, sofrimento e morte, pois as pessoas são instrumentalizadas em vista da riqueza.
O que o Evangelho de Jesus destaca é que as pessoas devem estar no centro e tudo mais deve estar a serviço da promoção da vida das pessoas. Então, tentando responder a pergunta: acabando os ricos, acaba a pobreza? Eu digo que não! O que acaba com a pobreza é a mudança dos valores que trazemos em nosso coração e que orientam o uso da riqueza. Um coração egoísta e avarento, apegado ao poder e ao prazer, jamais buscará uma transformação política, social e econômica em vista de colocar as riquezas a serviço da vida das pessoas. Um coração movido pelos valores do Evangelho de Jesus, ou seja, por uma ética do valor da vida humana, saberá que não precisa acumular bens, que a riqueza que conquistou deve ser colocada a serviço da promoção de uma vida digna para todas as pessoas.
Um provérbio no Antigo Testamento expressa bem o desejo de alguém que não quer sofrer com a pobreza, mas também não que ser seduzido pela riqueza. O autor pede a Deus: “Afasta de mim a falsidade e a mentira, não me dês nem pobreza nem riqueza” (Pr 30,8).
Portanto, para acabar com a pobreza deve-se solidarizar a riqueza, e se solidarizarmos a riqueza não existirão nem ricos nem pobres, existirão irmãos e irmãs. Esse me parece ser o caminho da Boa Notícia de Jesus!




[2] Lc 4,18
[3] Lc 1,53
[4] Lc 6,24; Tg 5,1-6
[5] I Cor 7,29-31; I Tm 6,7; I Tg 1,11
[6] Mt 13,22
[7] I Tm 6,9-10
[8] Lc 19,8; At 2,44-45; II Cor 9,6-15; Gl 6,6; Fl 4,10-20; I Tm 6,18; Hb 13,16
[9] I Tm 6,17-18; I Jo 3,17-18
[10] Cf. São João Crisóstomo, Homilias sobre o Evangelho de Mateus, 50, 3-4: PG 58, 508-509.
[11] Esses são alguns dos direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Brasileira de 1988.

domingo, 4 de março de 2018

Acabando os ricos, acaba a pobreza? (Parte I)

Outro dia eu li em uma rede social a seguinte postagem: “Para reduzir a pobreza, é preciso combater a riqueza? Acabando os ricos, acaba a pobreza?” Essa provocação suscitou vários tipos de comentários, sendo muitos deles defendendo políticas neoliberais, privatizações, entre outros comentários mais vagos e dispersos. Entretanto, o que me chamou a atenção para essa postagem foi a sutil provocação sobre o tema da opção pelos pobres assumida pela Igreja Católica na América Latina, incluindo a Igreja do Brasil. Percebi, na postagem e em alguns comentários, aquela crítica debochada de que esse negócio é “coisa de comunista”. Abaixo da pergunta estava escrito o seguinte convite: “Opine!”. Pois bem, vou opinar!
A discussão sobre a riqueza e a pobreza, sobre ricos e pobres, não é exclusiva do meio político. Ela sempre causou polêmicas também no meio religioso cristão católico. Com o advento da Teologia da Libertação na América Latina a partir de 1970, o tema da pobreza e da riqueza foi retomado com novo vigor diante de um continente marcado pela presença maciça de pobres, pelas desigualdades sociais, por regimes totalitários, pela concentração das riquezas, pela exclusão de milhares de pessoas dos meios básico para sobreviver. Debates acalorados sobre o problema da injustiça, da pobreza e das estruturas de pecado que impedem as pessoas de ter uma vida digna movimentaram boa parte dos encontros religiosos e teológicos que buscavam, à luz da fé, descobrir como transformar essa realidade.
Muitos discursos se levantaram para defender uma práxis religiosa que fizesse a opção pelos pobres e excluídos. Nesse contexto, também surgiram discursos duros e hostis aos ricos e a riqueza, criticando a ostentação, o acúmulo de bens e o não compromisso com as mudanças sociais e políticas necessária para produzir uma sociedade mais justa para todos. Então, as pessoas que eram católicas e que eram ricas começaram a questionar se Deus era só para os pobres, se ser rico e ter bens era pecado, pois eles tinham se esforçado para chegar a essa condição de vida, e que esse discurso excluía as pessoas ricas da Igreja e demonizava a riqueza. Afinal, Jesus não morreu pela salvação de todos? Todos não são filhos de Deus? Deus não ama a todos? Ter bens e poder gozar a vida é uma coisa ruim?
É preciso voltar os olhos para o Evangelho de Jesus para tentarmos entender qual é o caminho proposto por Ele para quem quer ser Seu discípulo. A partir disso podemos pensar a questão proposta no início desse texto.
Em relação à riqueza e a posse de bens, uma característica de Jesus presente nos evangelhos é o convite a deixar tudo para poder segui-lo. Em vários lugares encontramos essa exigência.[1] Parece que “ter coisas” pode criar dificuldades para quem quer ser seu discípulo.[2] Inclusive os evangelhos lembram que não dá para servir a Deus e ao dinheiro.[3] Parece que a relação com a riqueza e com os bens, no Novo Testamento, é uma relação complicada. Entretanto, o contexto que encontramos no ambiente do Novo Testamento ajuda a compreender esse discurso: a sociedade judaica na Palestina era profundamente desigual, na qual um grupo concentrava as riquezas e bens, enquanto a maioria da população sofria para sobreviver; os ricos exploravam o povo e faziam de tudo para manter sua posição e o Império Romano impunha pesados tributos que sobrecarregam especialmente os mais pobres. Não é por acaso que a riqueza é comparada, nos evangelhos, com uma divindade que escraviza as pessoas, gerando desigualdade, sofrimento e morte, impedindo as pessoas de viverem o mandamento do amor.
Sobre a pobreza podemos destacar duas dimensões nos evangelhos.
A primeira é a simbólica, da liberdade, do desapego. Por isso, deixar tudo, vender todos os bens e dar aos pobres, tornar-se pobre para seguir Jesus, é sinal da liberdade para fazer uma opção radical de vida, retirando toda confiança nos bens, no poder, na posse das coisas, para confiar unicamente em Deus.[4]
A segunda dimensão é o problema real e estrutural da sociedade que gera massas de pessoas excluídas do direito de ter uma vida digna, sem acesso aos meios básicos para sobreviver. Sobre isso, os evangelhos lembram que são com eles que devemos repartir nossos bens, nossas riquezas.[5] Lembra que é deles o Reino dos Céus;[6] e Jesus mesmo se identifica com eles ao dizer que socorrê-los, fazer o bem a eles, é fazer o mesmo por Ele próprio.[7]
Em outros textos do Novo Testamento vemos que a comunidade cristã procurou por em prática o ensinamento de Jesus. Eles procuravam partilhar as coisas e não permitir que alguém passasse necessidade na comunidade.[8] Inclusive chegaram a organizar uma grande coleta em todas as comunidades para socorrer os necessitados de Jerusalém.[9]
Entretanto, também encontramos textos em que pessoas com posses se tornaram membros da comunidade e colocaram seus bens a serviço, abrindo as portas de suas casas para que a igreja pudesse se reunir e auxiliando com seus bens as necessidades dos mais pobres. No próprio evangelho encontramos algumas mulheres ricas, casadas com homens de posses, que ajudavam a Jesus e seus discípulos com seus bens.[10]
Parece que essa tensão entre a riqueza e a pobreza não é coisa tão nova assim. Nos textos do Novo Testamento (sem levar em conta toda a tradição do Antigo Testamento) percebemos várias situações que, aparentemente, nos deixam mais confusos ainda. Afinal, acabando com os ricos, acabamos com a pobreza? Ser rico é uma coisa ruim? Como enfrentar o problema da pobreza?
Há uma frase no Evangelho segundo João que foi mal usada em um tipo de discurso religioso que queria justificar a existência da pobreza e dos pobres, desresponsabilizando as pessoas da necessidade de transformar essa realidade. Jesus teria dito que “pobres sempre tereis”.[11] Porém é uma interpretação que usa de má-fé, pois tira a frase de seu contexto. Por outro lado, essa frase expressa o grande desafio que é a realidade da pobreza, ou seja, ela não vai desaparecer facilmente dentro da história humana.
Isso significa que devemos nos acomodar e deixar as coisas como estão? A resposta, que permite também interpretar essa frase com clareza, é a resposta que o próprio Jesus deu com sua vida: ele nos amou até o fim![12] Na sua cruz, morreu por todos, inclusive por quem o executou, por quem nunca veio (ou virá) a acreditar nele, tão radical é seu amor.
Seguindo esse exemplo, a luta contra a pobreza deve ser constante, “até o fim”. Somente movidos por um amor radical, como o de Jesus por nós, é que poderemos permanecer firmes na luta para que todas as pessoas possam ter uma vida digna, mesmo diante da possibilidade de não conseguirmos atingir o nosso objetivo.
E os ricos e a riqueza? Como ficam em relação a toda essa situação?
Na próxima postagem vamos continuar discutindo essas questões!





[1] Cf. Lc 14,33;  Lc 18,22; Mt 4,18-22; Mt 6,19-21;  Mt 8,18-22; Mt 16,24-26.
[2] Mc 10,25.
[3] Mt 6,24; Lc 16,13.
[4] Mt 19,21-29
[5] Lc 12, 33-34; Lc 18,22; At 4,34-35.
[6] Lc 6,20.
[7] Mt 25,40.45.
[8] At 2,44; At 4,34-35.
[9] At 11, 29; At 24,17; Rm 15,26; I Cor 16,1-2; Gl 2,10.
[10] Lc 8,3.
[11] Jo 12,8.
[12] Jo 13,1.

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