O pobre Lázaro |
O pobre tornou-se tema central na reflexão teológica pós-conciliar na
América Latina a partir de Medelín. A situação de sofrimento e de opressão sob
regimes autoritários, na segunda metade do século XX em nosso continente, levou
grande número de teólogos e teólogas a procurar respostas, a partir da Revelação,
para esta realidade.
Entretanto,
ainda hoje, mesmo diante da atual situação de pobreza e exclusão em que vivem
milhares de brasileiros, muitas pessoas acreditam que a religião não deveria se
preocupar com isso ou que o papel da religião deveria restringir-se a
atividades assistenciais e a dar apenas conforto espiritual para as pessoas.
É importante destacar que, seguindo a inspiração do Concílio Vaticano II
de “retorno as fontes”, uma riqueza inestimável dentro da Sagrada Escritura e
da Tradição da Igreja foi reavivada no que diz respeito à compreensão a partir da
fé sobre o DIREITO DO
POBRE. É seguindo esse caminho da Escritura
e da Tradição que iremos apresentar essa temática. Vamos lá![1]
Ø Antigo Testamento
Começando pelas escrituras encontramos uma profunda consciência
solidária diante do pobre e de suas necessidades já no Antigo Testamento:
Respeito e bem ao próximo (Ex 20,15-17); justiça no contrato de trabalho e no
comércio (Dt 24,14-15); direito de justiça a todos, inclusive o estrangeiro (Dt
24,17-18).
Os profetas denunciam que o culto e a vida religiosa sem justiça aos
pobres são vazios, inúteis, e Deus se aborrece deles: Am 5,21-24; Is 1,11-17;
58,3-11; Mq 6,6-8; Jr 7,4-7.
É evidente o condicionamento entre a aliança divina e o respeito pelo
direito do pobre dentro da tradição do A.T.
Ø Novo Testamento
Aqui encontramos Jesus que proclama o direito do pobre, mas também
proclama o amor que realiza este direito, indo muito além das exigências da
justiça. Por exemplo: usar os bens transitórios para um dia alcançar os bens
eternos (Lc 16,10-12); não se pode servir a dois senhores (Lc 16,13).
Os pobres são cidadãos do Reino com mais facilidade que os ricos, pois
estes são estranhos ao Reino, pois a riqueza cega é uma verdadeira forma de
idolatria. A saída para os ricos é partilhar “as riquezas injustas” (Lc 16,9.11):
injustas porque foram mal adquiridas (Lc 19,1-10), ou porque excedem as
verdadeiras necessidades de seus detentores.
O N.T. nos mostra que Cristo é pobre, e é o pobre quem nos julgará (Mt
25,31-46; Tg 5,1.4).
O pobre numa visão positiva: tanto o A.T. como o N.T. apresentam o
“ser pobre” também como uma atitude espiritual, sendo aquele que se contenta
com o necessário para viver, que é humilde, que não confia nas riquezas nem
exige direitos diante de Deus. Por isso são os prediletos de Deus, como Maria
anuncia no Magnificat (Lc 1,52-53). Deus escolheu os pobres (Tg 2,5), tanto é
que para ser discípulo de Jesus a pobreza é uma condição apresentada nos
evangelhos (Mt 19,16-30; Mc 10,17-31; Lc 18,18-30). Temos, então, duas
perspectivas: os pobres que o são porque deixaram tudo para dar um testemunho
ao mundo dentro do discipulado de Jesus; e temos os pobres que o são porque
partilham de seus bens mantendo apenas o necessário para viver (Lc 6,20.24).
Ø Patrística
O pensamento dos padres é audacioso neste tema do direito do pobre. Eles
entendem que a riqueza pertence aos pobres e aquele que a possui é apenas seu
administrador.
-
“Não deverás repelir o indigente. Terás tudo em
comum com o teu irmão e não dirás que um bem é teu, porque, se se partilham os
bens imortais, quanto mais devem ser partilhados os bens passageiros” (Doutrina dos Doze Apóstolos, sec.
II).
-
“Aquele que despoja um homem de sua roupa é ladrão.
O que não veste a nudez do indigente, quando pode fazê-lo, merecerá outro nome?
O pão que guardas em tua despensa pertence ao faminto, como pertence ao nu o
agasalho que escondes em teus armários. O sapato que apodrece em tuas gavetas
pertence ao descalço, ao miserável a prata que ocultas”. (S. Basílio).
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“Não é teu o bem que distribuis ao pobre. Devolves
a ele apenas a parte do que lhe pertence, porque usurpas para ti sozinho aquilo
que foi dado a todos, para o uso de todos. A terra pertence a todos. Não apenas
aos ricos”.(S. Ambrósio).
Os padres não negam o direito à propriedade, mas revelam-lhe seu
sentido. O mundo foi criado por Deus como um dom para todos, porém o pecado
distorceu esta relação e, por isso, o uso comum dos bens da criação tornou-se
impossível devido o egoísmo no coração humano. Por isso, o que era de direito
natural (a apropriação social) decaiu para a apropriação pessoal
(derrogação da lei natural devido o pecado).
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“A terra foi dada em comum a todos os homens;
ninguém considere próprio aquilo que, além do necessário, foi retirado do
acervo comum por meio da violência” (S. Basílio).
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“O uso comum de tudo que há neste mundo
destinava-se a todos, porém, devido à iniquidade, um disse que isto era seu e
outro disse que aquilo era dele e assim fez-se a divisão entre os mortais” (S. Clemente).
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“A natureza produziu seus bens em profusão,
oferecendo-os em comum a todos. Deus ordenou que tudo fosse produzido, gerado,
de maneira a servir de alimento a todos e a terra fosse como propriedade comum
de todos. O bem privado é assim fruto de usurpação” (S. Ambrósio).
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“Se desses do que é teu, seria liberalidade; como
dás do que é dele (Jesus presente no pobre), é uma simples restituição” (S.
Agostinho).
Todos estes textos querem dizer “[...] que a propriedade privada não
constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem o
direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo. Quando a
outros falta o necessário” (Populorum Progressio, n. 23).
Vamos ficando por aqui! Na próxima postagem continuaremos expondo brevemente
como essa temática apareceu no período escolástico e contemporâneo.
[1] O que apresento a seguir é uma síntese feita a
partir da obra: BIGO, Pierre; ÁVIA, Fernando Bastos. Fé cristã e o
compromisso social: elementos para uma
reflexão sobre a América Latina à luz da Doutrina Social da Igreja. 2a
ed., São Paulo: Paulinas, pp. 159-227, 1983.