Estou compartilhando com vocês
essa série de reflexões que venho pessoalmente fazendo a partir dessa categoria
“lugar de fala”. Realmente fiquei instigado por ela. Já falamos na primeira
postagem dessa série, a título de introdução, um pouco sobre um conceito geral
do que seria o “lugar de fala”. Na postagem passada conversamos um pouco mais
sobre a relação dessa categoria com o discurso religioso. Agora quero trazer a
questão do discurso moral, mais especificamente o discurso moral cristão. Para
isso vou dividir a discussão em partes, pois acredito que não é possível
conversar sobre esse tema em uma única postagem. Mesmo assim, quero deixar
claro que não pretendo fazer aqui tratado de tipo acadêmico, pois isso exigiria
uma linguagem muito técnica e um texto bem mais denso. Quero trazer provocações
para uma discussão mais profunda, por isso procurarei falar com o máximo de
clareza que me for possível e dando as bases que considero necessárias para
sustentar meu discurso.
Por fim, preciso esclarecer
minhas motivações para ser honesto com você que está lendo. Essa reflexão me
veio por eu estar percebendo o crescimento de um discurso moral de cunho
religioso com fortes tendências fundamentalistas. Esse tipo de discurso
geralmente se apresenta como a afirmação de uma moral que deve ser seguida
porque é “divina”, fruto da “Revelação” e, por isso, é verdadeira e correta.
Qualquer outro discurso moral que não esteja em sintonia com esse discurso é
tido como “demoníaco”, como “mau”, como uma violência contra a verdade moral
cristã.
Eu já afirmei na postagem passada
que entendo “moral” como um conjunto de normas, regras, meios, os quais têm
como finalidade normatizar a conduta humana em vista de alcançar um valor, um
bem, um fim que se apresenta como bom, justo e verdadeiro.[1] Em
outras palavras, as normas morais não são um fim em si mesmas, mas meios pelos
quais se alcança um fim, sendo este um valor fundamental.
Desse modo, o discurso moral não
pode ser entendido como eterno, imutável, pois ele existe em função dos valores
para os quais ele se ordena. E esses valores, no mundo cristão, nos foram dados
por meio da Revelação. Entretanto, como afirmei no texto anterior sobre o
“discurso religioso”, ela foi e continua sendo objeto do nosso processo
interpretativo, marcado pelo nosso “lugar de fala”, portanto, ainda em processo
de compreensão de seu sentido pleno.
Um olhar a partir do
desenvolvimento histórico do pensamento cristão facilmente revela que o
discurso moral cristão sofreu mudanças na medida em que o “lugar de fala” foi
se modificando.
No Antigo Testamento há um conjunto de regras
relativas à forma como os judeus deveriam se comportar para manter-se fieis a
Deus e a sua Aliança. Encontramos um discurso moral que determina um conjunto
de práticas que eram entendidas como as verdadeiras e corretas porque foram
estabelecidas por Deus. A violação dessas normas era entendida como um
acontecimento tão grave que a punição poderia ir da expulsão da convivência
social até a condenação à morte do transgressor. Dentre essas normas recordo, a
título de exemplo, os costumes em relação à mulher diante do parto[2] e
de seu ciclo menstrual,[3] e
os vários tipos de alimentos que deveriam ser evitados por ser tidos como
impuros.[4] O
povo de Israel deveria seguir essas orientações e se as transgredissem deveriam
cumprir uma série de práticas rituais de purificação para poderem retornar ao
convívio da comunidade e a participação no culto.
É interessante perceber que para
os cristãos, hoje, esses fatores não são mais tidos como um problema moral. O
parto é visto como um momento “divino” sem nenhuma conotação religiosa negativa
e o ciclo menstrual não é motivo de separação da mulher do convívio por ser
algo impuro. Isso se dá porque nosso lugar de fala é diferente do lugar de fala
dos autores do texto e do lugar de fala de seus interpretes em épocas passadas.
Isso não tira o valor teológico do texto, apenas nos provoca a ter cuidado com
as interpretações morais que fazemos a partir dele.
Retomemos o caso dos alimentos
impuros. Já no Novo Testamento encontramos uma mudança radical na prática
cristã. Jesus afirma que não é o que entra pela boca do ser humano que o torna
impuro, mas o que sai do seu coração.[5] No
livro dos Atos dos Apóstolos encontramos a cena em que Pedro tem uma visão de
um grande lençol que desce diante dele contendo todo tipo de animais e ele
escuta uma voz que diz “mata e come”, porém, como um judeu fiel à Lei de Deus,
ele se recusa tocar alimentos impuros. A voz então lhe diz que “não chame de
impuro o que Deus purificou”. O mais curioso nesse relato, além da mudança do
lugar de fala de Pedro, é o sentido dessa visão no contexto do texto, pois ela
serve de preparação para que Pedro possa ir pregar o Evangelho na casa de um
pagão, considerado impuro pelos judeus por não fazer parte do povo de Israel
nem seguir a Lei de Deus. Em outras palavras, Deus se apresenta a Pedro com
aquele quem determina o que é puro e impuro, desconstruindo a interpretação
corrente da Revelação presente do Antigo Testamento. Assim, Pedro não só vai
pregar na casa do pagão Cornélio, mas reconhece que eles também são chamados a
fazer parte da comunidade dos cristãos, pois Deus derramou sobre eles seu
Espírito.[6]
Essa primeira parte de nossa
reflexão iniciou uma explanação que quer demonstrar que o discurso moral sofre
variações a partir do “lugar de fala”. Aqui dei exemplos a partir do texto
bíblico, que é a fonte básica da Revelação cristã. Poderia desenvolver muitos
outros exemplos partindo da Bíblia, mas tomei esses por me parecerem
suficientes para ilustrar minha linha de raciocínio, como também serem mais
simples para apresentar em um blog. Uma análise mais profunda exigiria um
desenvolvimento mais técnico e extenso, o que não é nosso objetivo nesse
espaço.
Na próxima postagem continuarei
essa reflexão saindo do texto bíblico e entrando na história para reforçar
minha tese de que o lugar de fala interfere na interpretação da mensagem da
Revelação com consequências para o discurso moral cristão.
[1][1] Esse
conjunto de bens, valores ou finalidade estão o campo da ética. Existe uma
vasta discussão se é possível estabelecer ou não uma ética mundial, ou seja, um
conjunto de valores que sejam aceitos por todos como princípio sobre o qual se
possa, então, desenvolver uma moral não necessariamente comum, mas sobre bases
comuns.
[2]
Livro de Levítico capítulo 12, versículos de 1até 8 (Lv 12,1-8).
[3]
Livro de Levítico capítulo 15, versículos de 19 ao 30 (Lv 15,19-30).
[4]
Livro de Levítico capítulo 11 (Lv 11).
[5]
Evangelho de Mateus capítulo 15, versículos de 10 ao 21 (Mt 15,10-21).
[6]
Atos dos Apóstolos capítulo 10 (At 10).