domingo, 12 de agosto de 2018

O Evangelho da Meritocracia


O discurso da meritocracia que defende que cada um deve ter o que merece, conforme seu esforço pessoal e que, por isso critica políticas de assistência social porque elas “alimentam a preguiça” e só servem pra gerar “vagabundos desocupados”, essa forma de pensamento está muito em voga ultimamente.
O que mais me impressiona é que entre os cristãos esse tipo de discurso tem sido repetido como uma verdade absoluta e inquestionável.
Pensando sobre isso me recordei que existe um evangelho no qual Jesus nos dá uma interessante lição sobre a lógica da meritocracia (pasmem, ela já existia a mais de 2000 anos atrás!).
No evangelho de Mt 20,1-16 Jesus conta uma interessante historia. Jesus fala que havia um homem que possuía uma grande plantação e que havia chegado o tempo da colheita. O homem saiu para contratar trabalhadores temporários para fazer a colheita e, para isso, foi à praça da cidade. Era costume, no tempo de Jesus, que pessoas sem trabalho ficassem em locais públicos como praças, procurando algum tipo de trabalho.
O homem encontrou um grupo na praça e chamou-os para ir trabalhar naquele dia na sua colheita. O homem precisava fazer toda a colheita naquele dia para não ter prejuízo. Era de manhã cedo e o homem acertou com os trabalhadores o valor do dia de trabalho, pois no tempo de Jesus se pagava o trabalho pelo dia de serviço, ao final do dia.
Os trabalhadores contratados começaram a colheita. Pela metade da manhã o dono da plantação voltou à praça e, encontrando outro grupo de homens a procura de trabalho, contratou esse grupo e o mandou para a colheita. O dono da plantação fez a mesma coisa por volta do meio dia e das três horas da tarde.
Por volta das cinco horas da tarde, o homem foi novamente a praça e encontrou outro grupo de trabalhadores que passaram o dia sem conseguir um trabalho e os mandou também para trabalhar na colheita.
Ao anoitecer, o dono da plantação mandou o seu administrador fazer o pagamento pelo trabalho. É nesse momento que algo curioso acontece. Ele mandou começar o pagamento pelos que foram contratados por último e seguir nessa ordem até chegar nos que foram contratados no início do dia.
Os trabalhadores que foram contratados no início do dia, quando receberam seu pagamento começaram a reclamar do dono da plantação, pois ele pagou o mesmo valor tanto para eles como para os que haviam trabalhado apena uma hora no final do dia. Falavam que o dono da plantação era um homem injusto, pois eles haviam trabalhado mais do que os outros e, por isso, mereceriam receber mais, proporcionalmente ao seu esforço.
O dono da plantação então lhes disse que pagou o valor justo da diária que havia combinado com eles. E ainda acrescenta a questão de que se ele também quis pagar o mesmo valor a todos os que trabalharam na plantação, qual o problema? O dinheiro era dele e ele poderia dispor como melhor lhe parecesse.
Por fim, o homem faz uma última pergunta aos trabalhadores que estavam reclamando: Vocês, por acaso, estão com inveja pelo fato de eu estar sendo bom?
Jesus, com essa parábola, me fez pensar no discurso da meritocracia. Os que defendem de modo enfático essa forma de pensar certamente estariam no grupo dos trabalhadores que se queixaram da atitude do dono da plantação. Talvez você também ache estranha essa atitude do dono da plantação, mas vamos entender o contexto de fundo dessa história para entendermos o que Jesus pensa da meritocracia como forma de justiça.
No tempo de Jesus, muitos homens estavam desempregados por terem perdido seus bens diante da exploração do Império Romano e das elites econômicas que, por meio de altos tributos, levavam a ruínas os pequenos proprietários fazendo com que perdessem suas terras e os poucos bens que tinham. O único meio de sobrevivência era arrendar sua mão de obra para conseguir o mínimo necessário para viver a cada dia (“o pão de cada dia”).
Ao contar essa parábola, Jesus coloca diante de nós uma realidade que era dura e, infelizmente, comum em muitas vilas da Palestina: grupos de homens que esperavam por algum trabalho nas praças. Esse trabalho, geralmente, era na lavoura dos ricos proprietários que tinham grandes plantações e precisavam e muita mão de obra para a colheita.
Ao tratar o pagamento dos trabalhadores Jesus faz duas mudanças importantes na história: o pagamento começa pelos últimos contratados e todos recebem o mesmo valor da diária. Por que isso é importante?
Primeiro, ao começar pelos últimos, Jesus parece chamar a atenção que não se pode apegar-se a posições ou direitos pelo simples fato do merecimento. Deus não segue essa lógica do merecimento!
Segundo, ao dizer que todos receberam o mesmo valor, Jesus não está defendendo uma injustiça para com os que trabalharam mais, mas está defendendo o direito de cada trabalhador ter o “pão de cada dia” em sua mesa. O valor da diária garantia a cada trabalhador as condições de manter sua família por mais um dia. O que orienta o pagamento do salário não é o mérito puro e simples, mas a necessidade real de cada um para poder viver dignamente.
Essa compreensão da parábola de Jesus é importante porque muitos cristãos parecem ter se esquecido desse texto e do seu significado para nossas relações sociais. Jesus não está desmerecendo o esforço pessoal que desenvolvemos para poder melhorar nossas condições de vida por meio do estudo, trabalho duro, dedicação, perseverança, qualificação técnica etc. Entretanto, em uma sociedade desigual como a nossa, não podemos falar de meritocracia sem levar em conta as desigualdades sociais que colocam as pessoas em diferentes condições de competirem pelos espaços de sucesso e de bem-estar.
Um filho de juiz ou de um rico empresário terá vantagens competitivas para o sucesso em relação ao filho de uma diariasta que não conseguiu terminar o ensino fundamental e que vive na periferia criando cinco filhos. Se o lugar de partida é desigual não dá para falar de meritocracia como meio justo de promover a vida digna das pessoas.
Nessa parábola Jesus oferece outro critério: a necessidade concreta de cada um deve determinar a forma como a sociedade deve se organizar em vista da promoção de uma vida digna para todos. Só depois disso se pode falar de mérito.
Cristãos que criticam programas sociais como o de cotas raciais nas universidades e bolsa família, por exemplo, não entenderam o significado de “quero misericórdia e não sacrifícios”. Políticas de assistência social são tentativas de socorrer a necessidade do “pão de cada dia” de pessoas e famílias que, sozinhas, jamais conseguiriam enfrentar o problema da discriminação, do acesso a educação superior, de conseguir colocar comida na mesa todo dia.
É claro que ficar só nisso não é a solução dos nossos problemas sociais à longo prazo, entretanto, precisamos aprender com o dono da plantação que devemos também “ser bons”, solidários com as necessidades urgentes de tantos irmãos e irmãs que esperam “nas praças” por um meio de conseguir sobreviver mais um dia, sem sonhos porque não conseguem ver para si e para sua família um futuro diferente, pois perderam a esperança.
O discurso da meritocracia é uma afronta à lógica do evangelho de Jesus que nos chama a ir ao encontro das pessoas para compartilhar com elas não o que achamos que é certo segundo a régua do mérito, mas o que verdadeiramente é justo segundo o princípio da necessidade de cada um e de sua dignidade como filho e filha de Deus.
Por isso, Jesus conclui a parábola com a famosa frase “os últimos serão os primeiro e os primeiros serão os últimos”. Quando a necessidade dos “últimos” de nossa sociedade estiver em primeiro lugar e a dos que são os “primeiros” estiver em último lugar na forma como organizamos nossa sociedade política e economicamente, poderemos alcançar, já entre nós, um pouco daquilo que Jesus anunciou entregando a própria vida e que conhecemos pelo nome de “Reino de Deus”.

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