O discurso da meritocracia que
defende que cada um deve ter o que merece, conforme seu esforço pessoal e que,
por isso critica políticas de assistência social porque elas “alimentam a
preguiça” e só servem pra gerar “vagabundos desocupados”, essa forma de
pensamento está muito em voga ultimamente.
O que mais me impressiona é que
entre os cristãos esse tipo de discurso tem sido repetido como uma verdade
absoluta e inquestionável.
Pensando sobre isso me recordei
que existe um evangelho no qual Jesus nos dá uma interessante lição sobre a
lógica da meritocracia (pasmem, ela já existia a mais de 2000 anos atrás!).
No evangelho de Mt 20,1-16 Jesus
conta uma interessante historia. Jesus fala que havia um homem que possuía uma
grande plantação e que havia chegado o tempo da colheita. O homem saiu para
contratar trabalhadores temporários para fazer a colheita e, para isso, foi à
praça da cidade. Era costume, no tempo de Jesus, que pessoas sem trabalho
ficassem em locais públicos como praças, procurando algum tipo de trabalho.
O homem encontrou um grupo na
praça e chamou-os para ir trabalhar naquele dia na sua colheita. O homem
precisava fazer toda a colheita naquele dia para não ter prejuízo. Era de manhã
cedo e o homem acertou com os trabalhadores o valor do dia de trabalho, pois no
tempo de Jesus se pagava o trabalho pelo dia de serviço, ao final do dia.
Os trabalhadores contratados
começaram a colheita. Pela metade da manhã o dono da plantação voltou à praça e,
encontrando outro grupo de homens a procura de trabalho, contratou esse grupo e
o mandou para a colheita. O dono da plantação fez a mesma coisa por volta do
meio dia e das três horas da tarde.
Por volta das cinco horas da
tarde, o homem foi novamente a praça e encontrou outro grupo de trabalhadores
que passaram o dia sem conseguir um trabalho e os mandou também para trabalhar
na colheita.
Ao anoitecer, o dono da
plantação mandou o seu administrador fazer o pagamento pelo trabalho. É nesse
momento que algo curioso acontece. Ele mandou começar o pagamento pelos que
foram contratados por último e seguir nessa ordem até chegar nos que foram
contratados no início do dia.
Os trabalhadores que foram
contratados no início do dia, quando receberam seu pagamento começaram a
reclamar do dono da plantação, pois ele pagou o mesmo valor tanto para eles
como para os que haviam trabalhado apena uma hora no final do dia. Falavam que
o dono da plantação era um homem injusto, pois eles haviam trabalhado mais do
que os outros e, por isso, mereceriam receber mais, proporcionalmente ao seu
esforço.
O dono da plantação então lhes
disse que pagou o valor justo da diária que havia combinado com eles. E ainda
acrescenta a questão de que se ele também quis pagar o mesmo valor a todos os
que trabalharam na plantação, qual o problema? O dinheiro era dele e ele
poderia dispor como melhor lhe parecesse.
Por fim, o homem faz uma última
pergunta aos trabalhadores que estavam reclamando: Vocês, por acaso, estão com
inveja pelo fato de eu estar sendo bom?
Jesus, com essa parábola, me fez
pensar no discurso da meritocracia. Os que defendem de modo enfático essa forma
de pensar certamente estariam no grupo dos trabalhadores que se queixaram da
atitude do dono da plantação. Talvez você também ache estranha essa atitude do
dono da plantação, mas vamos entender o contexto de fundo dessa história para
entendermos o que Jesus pensa da meritocracia como forma de justiça.
No tempo de Jesus, muitos homens
estavam desempregados por terem perdido seus bens diante da exploração do Império
Romano e das elites econômicas que, por meio de altos tributos, levavam a
ruínas os pequenos proprietários fazendo com que perdessem suas terras e os
poucos bens que tinham. O único meio de sobrevivência era arrendar sua mão de
obra para conseguir o mínimo necessário para viver a cada dia (“o pão de cada
dia”).
Ao contar essa parábola, Jesus
coloca diante de nós uma realidade que era dura e, infelizmente, comum em
muitas vilas da Palestina: grupos de homens que esperavam por algum trabalho
nas praças. Esse trabalho, geralmente, era na lavoura dos ricos proprietários
que tinham grandes plantações e precisavam e muita mão de obra para a colheita.
Ao tratar o pagamento dos
trabalhadores Jesus faz duas mudanças importantes na história: o pagamento
começa pelos últimos contratados e todos recebem o mesmo valor da diária. Por
que isso é importante?
Primeiro, ao começar pelos
últimos, Jesus parece chamar a atenção que não se pode apegar-se a posições ou
direitos pelo simples fato do merecimento. Deus não segue essa lógica do
merecimento!
Segundo, ao dizer que todos
receberam o mesmo valor, Jesus não está defendendo uma injustiça para com os
que trabalharam mais, mas está defendendo o direito de cada trabalhador ter o “pão
de cada dia” em sua mesa. O valor da diária garantia a cada trabalhador as
condições de manter sua família por mais um dia. O que orienta o pagamento do
salário não é o mérito puro e simples, mas a necessidade real de cada um para
poder viver dignamente.
Essa compreensão da parábola de
Jesus é importante porque muitos cristãos parecem ter se esquecido desse texto
e do seu significado para nossas relações sociais. Jesus não está desmerecendo
o esforço pessoal que desenvolvemos para poder melhorar nossas condições de
vida por meio do estudo, trabalho duro, dedicação, perseverança, qualificação técnica
etc. Entretanto, em uma sociedade desigual como a nossa, não podemos falar de
meritocracia sem levar em conta as desigualdades sociais que colocam as pessoas
em diferentes condições de competirem pelos espaços de sucesso e de bem-estar.
Um filho de juiz ou de um rico
empresário terá vantagens competitivas para o sucesso em relação ao filho de
uma diariasta que não conseguiu terminar o ensino fundamental e que vive na
periferia criando cinco filhos. Se o lugar de partida é desigual não dá para
falar de meritocracia como meio justo de promover a vida digna das pessoas.
Nessa parábola Jesus oferece
outro critério: a necessidade concreta de cada um deve determinar a forma como
a sociedade deve se organizar em vista da promoção de uma vida digna para
todos. Só depois disso se pode falar de mérito.
Cristãos que criticam programas
sociais como o de cotas raciais nas universidades e bolsa família, por exemplo,
não entenderam o significado de “quero misericórdia e não sacrifícios”.
Políticas de assistência social são tentativas de socorrer a necessidade do “pão
de cada dia” de pessoas e famílias que, sozinhas, jamais conseguiriam enfrentar
o problema da discriminação, do acesso a educação superior, de conseguir
colocar comida na mesa todo dia.
É claro que ficar só nisso não é
a solução dos nossos problemas sociais à longo prazo, entretanto, precisamos aprender
com o dono da plantação que devemos também “ser bons”, solidários com as
necessidades urgentes de tantos irmãos e irmãs que esperam “nas praças” por um
meio de conseguir sobreviver mais um dia, sem sonhos porque não conseguem ver
para si e para sua família um futuro diferente, pois perderam a esperança.
O discurso da meritocracia é uma
afronta à lógica do evangelho de Jesus que nos chama a ir ao encontro das
pessoas para compartilhar com elas não o que achamos que é certo segundo a
régua do mérito, mas o que verdadeiramente é justo segundo o princípio da
necessidade de cada um e de sua dignidade como filho e filha de Deus.
Por isso, Jesus conclui a
parábola com a famosa frase “os últimos serão os primeiro e os primeiros serão
os últimos”. Quando a necessidade dos “últimos” de nossa sociedade estiver em primeiro
lugar e a dos que são os “primeiros” estiver em último lugar na forma como organizamos
nossa sociedade política e economicamente, poderemos alcançar, já entre nós, um
pouco daquilo que Jesus anunciou entregando a própria vida e que conhecemos
pelo nome de “Reino de Deus”.
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