terça-feira, 29 de março de 2011

Entrevista com cristã presa por causa de sua fé




''Eu, cristã, presa pela fé. Salvem-me''





"Gostaria de oferecer à minha família uma vida segura, em um lugar qualquer, que não seja o Paquistão. Mas sei que talvez não viverei para ver esse futuro. Acordo pela manhã pensando que talvez será o meu último dia. E choro" .

A reportagem é de Francesca Caferri, publicada no jornal La Repubblica, 27-03-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A mulher, mãe de cinco filhos, foi presa em 2009 e condenada em 2010: a sua culpa, segundo as vizinhas de casa, teria sido a de insultar Maomé e de ter se recusado a se converter ao Islã. O caso se transformou em uma questão internacional quando a proposta de modificar a lei sobre a blasfêmia após o seu episódio gerou uma onda de violências no Paquistão: uma raiva que culminou nos assassinatos, em janeiro e março, do governador de Punjab, Salmaar Tasmeer, e do ministro das Minorias Religiosas,Shahbaz Bhatti, que haviam defendido a modificação.

Depois dessas mortes, o cerco ao redor de Asia Bibi (foto) se restringiu ainda mais. Hoje, ela vive em isolamento: não pode sair da cela nem para tomar ar, porque existe o temor de que ela seja assassinada. Familiares e advogados são ameaçados. Está doente, e quem a conhece está preocupado com a sua saúde, física e mental. Essa preocupação é um dos motivos que explica a escolha de romper o silêncio, falando pela primeira vez com um jornal.

Asia Bibi responde às perguntas por meio do seu marido, Ashiq, a única pessoa junto aos seus advogados autorizada a encontrá-la, e na sede londrina da Masihi Foundation, que se ocupa da sua defesa.

Eis a entrevista.

Senhora Bibi, em primeiro lugar, quer nos contar como está?
Antes de responder à sua pergunta, quero mandar os meus agradecimentos a todos aqueles que estão preocupados comigo e que estão rezando por mim. Eu estou muito mal. A notícia da morte de Shahbaz Bhatti me devastou e não consigo me recuperar. Sinto-me sufocar nestes quatro muros a todo momento. Todo minuto que passa me parece ser o último. Acordo todas as manhãs pensando que talvez será o meu último dia: e então choro. Choro pelos meus filhos e pelo meu marido.

Conte-nos como vive.
As minhas condições de vida na prisão não são simples. Estou em isolamento e não posso falar com ninguém, além do pessoal da prisão, com o qual, porém, não gosto de falar. Estou em uma situação verdadeiramente difícil. Ninguém pode entender o que estou vivendo: condenaram-me à morte, e sou inocente. Não cometi nenhum crime, porém, todas as pessoas nesta prisão me olham como se eu fosse a pessoa mais terrível que vive no mundo.

Tem medo?
Sim, tenho medo, estou aterrorizada: pela minha vida, pela dos meus filhos e do meu marido. Não consigo mais e só penso em sair deste lugar miserável. O que mais me preocupa são as minhas filhas, que estão sofrendo comigo: sinto como se toda a minha família tivesse sido condenada. Isso me deixa triste e me faz sentir como se eu fosse responsável, como se tivesse sido eu que fracassei em alguma coisa. As mulheres deste mundo são chamadas a construir uma casa, um futuro junto com as suas família: mas e eu? Que futuro posso prometer à minha família, às minhas filhas, se estou bloqueada aqui dentro?
Gostaria de oferecer-lhes uma vida mais segura em outro lugar: em um lugar qualquer que não seja o Paquistão. Mas sei que talvez não viverei para chegar a ver esse futuro. Ficarei feliz se só soubesse que a minha família está segura. Mas sei, por certo, que, se eu também saísse da prisão, se a corte também decidisse que sou inocente, aqui eu não sobreviveria: nem eu, nem a minha família. Os extremistas não nos deixarão mais em paz: sou uma mulher marcada. Mas a minha fé é forte e acredito que Deus misericordioso responderá às minhas orações.

A senhora é consciente de que o seu caso se tornou internacional? Que no Paquistão e em muitíssimos outros países se levantaram debates e polêmicas ao redor do seu caso? Se essas notícias lhe chegarem, como a senhora avalia tanto interesse? Isso está se revelando útil para o seu caso?
O meu mundo está fechado dentro destes quatro muros. Ouvi muitas coisas sobre esses debates, me contaram a respeito: mas tanto barulho não levou a nenhuma mudança das minhas condições de vida. Duas das pessoas que mais me apoiaram no Paquistão, que fizeram ouvir a sua voz por mim, estão mortas. Estou aterrorizada por qualquer um aí fora que esteja arriscando a sua vida por mim e pelas tantas outras pessoas que estão sofrendo por mim. Tenho medo não só pela minha família, mas também pelos meus advogados e pela Masihi Foundation, que, com tanta generosidade, está ajudando a minha família. Rezo a Deus todos os dias para que não aconteça nada com as pessoas que estou do meu lado.

O que a senhora pensou quando soube que duas da pessoas que haviam lutado pela senhora foram mortas, uma depois da outra? E que muitas pessoas no Paquistão se alegraram com essas mortes?
Senti uma dor terrível quando soube da morte de Salman Taseer antes e de Shahbaz Bhatti depois: fiquei sem palavras, em estado de choque. Depois, me enfureci, não queria acreditar: o meu coração está com as suas famílias e com todas as pessoas que os amavam. Deram a vida por uma causa importante. Gostaria que o mundo inteiro reconhecesse a sua luta e o seu sacrifício, que foram feitos em nome da humanidade inteira. Desde então, passo muitas noites sem dormir.
Estou frustrada e penso que a minha vida está em um ponto morto. Estou desesperadamente esperando sair desta prisão e quero pedir ajuda a todos para que façam qualquer coisa para resolver este caso. As pessoas aqui do Paquistão usam a lei sobre a blasfêmia para resolver suas próprias questões pessoais: essa lei só deveria ser abolida, porque faz mal a todos, sejam eles cristãos ou muçulmanos. Ninguém jamais estará seguro no Paquistão enquanto essa lei continuar existindo. Sou certamente uma vítima inocente dessa lei. Sofro, e o mundo inteiro deve saber que estou sofrendo sem ter cometido nenhum crime.

Falemos do futuro, senhora Bibi: o que sonha em fazer quando sair? Qual será o seu primeiro gesto?
Agradecerei a Deus por ter tomado conta de mim e da minha família. Abraçarei fortemente cada membro da minha família e depois farei com eles uma grande janta para celebrar. Depois agradecerei as pessoas que não conheço pessoalmente, mas que estão fazendo tanto por mim, como Haroon Masih da Masihi Foundation, de quem ouvi tanto falar. Mas o meu maior sonho é o de encontrar o Papa Bento. Haroon me fez chegar a notícia de que o Santo Padre falou de mim: isso me deu muitíssima esperança, me levou a continuar a viver, me fez sentir amada e como se o mundo inteiro estivesse comigo. Senti-me honrada: é um privilégio saber que ele falou por mim, que pronunciou o meu nome, que acompanha o meu caso pessoalmente. Gostaria de viver o suficiente para ver o dia em que poderei encontrá-lo e agradecê-lo pessoalmente.




FONTE: www.unisinos.br





segunda-feira, 28 de março de 2011

Padre Comblin morre aos 88 anos no interior da Bahia



O teólogo padre José Comblin, de 88 anos, morreu na manhã deste domingo, 27, no interior da Bahia onde assessorava grupos de base. Segundo padre José Oscar Beozzo, padre Comblin levantou-se cedo, tomou banho, aprontou-se, mas não apareceu para a oração da manhã. Procuram-no e o encontraram-no sentado no quarto e já morto.
“Perdemos um  mestre e um guia inquieto e exigente como os velhos profetas, denunciando sempre nossas incoerências na fidelidade aos preferidos de Deus: o pobre, o órfão, a viúva, o estrangeiro. Trabalhou por uma Igreja profética a serviço destes últimos nas nossas sociedades”, lamenta padre Beozzo.

Nascido em Bruxelas, na Bélgica, em 1923, Comblin foi ordenado padre em 1947. Fez doutorado em teologia pela Universidade Católica de Louvaina e chegou ao Brasil em 1958. Em Recife, a convite de dom Helder Câmara, foi professor no Instituto de Teologia do Recife.

Expulso do Brasil em 1971 pelo regime militar, padre Comblin exilou-se no Chile durante oito anos, de onde também foi expulso, em 1980, pelo general Pinochet. Voltando ao Brasil, passa a morar na Paraíba, em Serra Redonda. É autor de uma vasta obra.
 

Padre Comblin morava, atualmente, em Barra, na Bahia. “Comblin dedicou praticamente toda sua vida ao povo e à Igreja da América Latina, no Brasil, no Chile e no Equador e em centenas de assessorias por todos os países”, recorda padre Beozzo.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Os "lobos" que lutam dentro de nós



Lendo esta pequena história fiquei pensando sobre as escolhas que fazemos na vida. Realmente dentro de nós temos “dois lobos” e precisamos a cada dia decidir qual deles vamos alimentar. Leia a história e vamos refletir juntos:

Uma noite, um velho índio falou ao seu neto sobre o combate que acontece dentro das pessoas. Ele disse: 

- Há uma batalha entre dois lobos que vivem dentro de todos nós. Um é Mau! É a raiva, inveja, ciúme, tristeza, desgosto, cobiça, arrogância, pena de si mesmo, culpa, ressentimento, inferioridade, orgulho falso, superioridade e ego. O outro é Bom! É a alegria, fraternidade, paz, esperança, serenidade,humildade, bondade, benevolência, empatia, generosidade, verdade, compaixão e fé. 
O neto pensou nessa luta, e perguntou ao avô: 
- Qual lobo vence? 
O velho índio respondeu: 
-"Aquele que você alimenta!" 



Cada dia, cada momento, estamos alimentando um deles em nós. Não há escapatória. Não dá para ficar em cima do muro. Por isso, cada momento de nossas vidas é importante e precisa ser vivido de modo livre, claro e consciente. Não podemos, nem devemos responsabilizar ninguém por nossos atos e escolhas: SOMOS LIVRES E RESPONSÁVEIS!

Pensando em minha vida olhei e vi que tenho dado alimento aos dois: às vezes a um às vezes ao outro; às vezes mais alimento para um às vezes para o outro. Ninguém consegue dar alimento somente para um deles, pois dentro de nós os dois habitam e lutam pelo alimento também. Entretanto, percebi que se não posso deixar de alimentar os dois dentro de mim, posso, ao menos, escolher o tipo de alimento e a qualidade que dou para cada “lobo” em mim. Para o bom posso selecionar o que for de melhor do meu tempo, esforço, cuidado, empenho. Para o mau posso dar as sobras, o que permite enfraquecê-lo (gostaria de matá-lo, mas acho que isso é ilusório e irreal). Deste modo o “lobo bom” que há em mim vencerá a maioria das lutas.

Realmente esta historinha contém uma grande sabedoria. Esta luta existe dentro de nós a cada dia, a cada momento, em cada escolha que fazemos. Podemos viver melhor e fazer deste mundo um lugar melhor se levarmos a sério esta luta e fizermos a escolha consciente de que “lobo” eu vou alimentar. Façamos isso, a cada dia demos o melhor de nós ao que há de bom em nós e deixemos que o outro fique com as sobras. Assim seremos menos egoístas, gananciosos, invejosos, ressentidos, orgulhosos, e mais fraternos, justos, amigos, bondosos, companheiros, humildes e, certamente, faremos muitas pessoas felizes e nós mesmos seremos bem mais felizes e realizados em nossas vidas.

Este é um pequeno pensamento que quero compartilhar com você que lê este blog. Espero que faça você pensar na sua vida como me fez pensar na minha.

Um forte e fraterno abraço!


quarta-feira, 9 de março de 2011

As religiões não são mais determinantes para a vida coletiva




Na visão do filósofo Marcel Gauchet, não estamos numa sociedade pós-metafísica, e sim numa sociedade em que ela é opcional
Por: Patrícia Fachin e Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger
“A fé desapareceu ou está a ponto de desaparecer. Os ‘crentes’ e principalmente os ‘praticantes’ são, por esse fato, menos numerosos. Mas em geral, eles têm uma fé muito mais motivada pessoalmente e muito mais esclarecida intelectualmente”, enfatiza o filósofo francês Marcel Gauchet à IHU On-Line. Autor do livro Depois da religião. O que será do homem depois que a religião deixará de ditar a lei?, escrito em parceria com o filósofo Luc Ferry, Gauchet diz que “as religiões guardam toda a sua importância aos olhos de seus fiéis. Entretanto, elas não são mais determinantes para a vida coletiva”, reitera. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele diz ainda que a estrutura religiosa e “a maneira pela qual o religioso organizou as comunidades humanas até uma data relativamente recente” pertencem ao passado.  

Ao comentar o papel da religião na pós-modernidade, o filósofo revela ter dúvidas sobre o valor da noção de pós-modernidade e sustenta que ela tem um erro de diagnóstico. “Ela toma uma ruptura na modernidade por uma ruptura com a modernidade. Dito isso, o novo curso das mentalidades e das ideias que ela designa corresponde a uma realidade.” E complementa: “A dita pós-modernidade não pensa o religioso. (...) Ela lhe dá um lugar unicamente sob o título da emoção e da afetividade”.

Marcel Gauchet é diretor de estudos na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS) e redator-chefe da revista Le Débat. Publicou, entre outros, La Religion dans La démocratie (Gallimard, 1998), La Démocratie contre elle-même (Gallimard, 2002), La Condition historique (Stock, 2003) e Le désenchantement du monde (Paris: Gallimard. 1985), sua obra principal. Escreveu, também, La démocratie d'une crise à l'autre (Cecile Defaut: Paris, 2007), L'Avènement de la démocratie (Gallimard, Paris, 2007) e Les conditions de l'éducation (en collaboration avec Marie-Claude Blais et Dominique Ottavi, Stock: Paris, 2008).

Confira a entrevista

IHU On-Line - No livro Depois da religião. O que será do homem depois que a religião deixará de ditar a lei?, o senhor afirma que o religioso pertence ao passado. Pode explicar-nos essa ideia?

Marcel Gauchet - Eu proponho clarificar a disputa sem fim entre os partidários da tese da morte de Deus e os partidários da tese do retorno do religioso, introduzindo uma distinção entre a estrutura e a crença religiosa. O que “pertence ao passado” como você diz, é a estrutura religiosa. É a maneira pela qual o religioso organizou as comunidades humanas até uma data relativamente recente. A saída ocidental da religião, após o século XVI, consistiu em inventar uma forma diferente da comunidade humana. Mas este cancelamento da estruturação religiosa das sociedades não significa o desaparecimento da crença religiosa. Ele a modifica, todavia, porque uma boa parte da religiosidade tradicional consistia numa espécie de conformismo social, de adesão a uma ordem ritual e cerimonial, sem muita reflexão metafísica nem mesmo de forte sentimento do sobrenatural ou do divino. O que os cristãos chamam de “a fé” desapareceu ou está a ponto de desaparecer. Os “crentes” e principalmente os “praticantes” são, por esse fato, menos numerosos. Mas em geral, eles têm uma fé muito mais motivada pessoalmente e muito mais esclarecida intelectualmente.

IHU On-Line - Se a religião faz parte de tradições passadas e se a pós-modernidade está caracterizada por crenças individuais, que futuro o senhor vislumbra para religiões monoteístas? Elas ainda ganham importância, por exemplo, no diálogo inter-religioso?

Marcel Gauchet - Parece-me difícil falar das “religiões monoteístas” em geral, pois a situação do Judaísmo e mais ainda a do Islã me parece muito diferente daquela do Cristianismo. Aliás, isso é em parte o que constitui a dificuldade do diálogo inter-religioso. Falamos da Europa, onde o fenômeno da saída da religião tem seu destaque mais avançado e se vê melhor isso. O Cristianismo, católico ou protestante, deixou de ser um quadro intelectual e simbólico englobante. Ele se tornou uma família espiritual, entre outras, no seio de uma sociedade filosoficamente pluralista e na qual os elos sociais estão baseados na livre adesão dos indivíduos. Aos olhos de seus adeptos, a religião estava ao lado de Estado, daquilo que define a ordem e a legitimidade da coletividade em seu conjunto, mesmo quando havia separação da Igreja e do Estado, como na França. Agora ela passou para o lado da sociedade civil. As Igrejas são componentes da sociedade civil, sob o mesmo título que os partidos políticos, os sindicatos ou as sociedades de pensamento. Esta é uma mudança de posição fundamental. As religiões guardam toda a sua importância aos olhos de seus fiéis. Entretanto, elas não são mais determinantes para a vida coletiva.

IHU On-Line - Como o senhor define o novo Cristianismo baseado na fé dos indivíduos? Em que sentido essa nova perspectiva, fundada na adesão pessoal, muda a característica e a essência do Cristianismo, tal como é entendido até o momento?

Marcel Gauchet - É muito mais difícil captar como essa mudança política e sociológica repercute sobre a substância da fé, sobre a essência íntima do Cristianismo. Ela se traduz, parece-me, por um sentimento mais intenso da alteridade do divino, de sua exterioridade em relação ao mundo humano. Se Deus não comanda mais os homens, se Ele não lhes dá mais uma lei, como os deuses sempre o haviam feito através da história, então é preciso pensá-lo diversamente do modo como se fazia. Isso é ainda mais misterioso do que antes. Sua relação com os homens é ainda mais problemática.

IHU On-Line - De que forma a pós-modernidade tende a pensar o religioso?

Marcel Gauchet - Devo começar por dizer que tenho grandes dúvidas sobre o valor desta noção de pós-modernidade. Vejo muito bem o que ela procura descrever, mas creio que ela introduz um erro de diagnóstico. Ela toma uma ruptura na modernidade por uma ruptura com a modernidade. Dito isso, o novo curso das mentalidades e das ideias que ela designa corresponde a uma realidade. Chamemo-la de pós-modernidade, se assim o quiseres. A dita pós-modernidade não pensa o religioso. Ela nada tem a dizer a respeito. Ela lhe dá um lugar unicamente sob o título da emoção e da afetividade. Mas o que há de especificamente religioso nesta experiência não lhe interessa.

IHU On-Line – Mas então podemos pensar numa sociedade pós-metafísica?

Marcel Gauchet – A meu ver, nós não estamos numa sociedade pós-metafísica, mas numa sociedade em que a pós-metafísica é opcional, o que é muito diferente.

IHU On-Line - Se Deus morreu como instância organizadora da sociedade, instituidora da lei, como é dito em seu livro Depois da religião, que espaço Ele ocupa na sociedade atual e como Ele se manifesta no coração do humano?

Marcel Gauchet - O paradoxo que engana muitos observadores é que o cancelamento do papel organizador ou estruturante da religião não a impede de ter uma visibilidade eventualmente acrescida no espaço público. Esta existe, porém, em nome das identidades que constituem a sociedade civil e que exigem o reconhecimento do Estado. Este papel público realmente não significa que as religiões estariam a ponto de reconquistar sua posição legisladora anterior. Todavia, as opiniões religiosas são livres em se manifestar publicamente como as outras e reclamar sua parte no concerto coletivo. Elas são um componente, não o árbitro supremo.
No que se refere às identidades pessoais, às quais a fé religiosa vem responder, é preciso procurar em duas direções: de um lado, as dificuldades muito grandes de viver sua condição de indivíduo numa sociedade de indivíduos, e, do outro lado, no plano intelectual, os limites mais visíveis da explicação científica do mundo. Por isso não creio numa situação pós-metafísica. A atitude metafísica continua sendo uma opção aberta. Ninguém é obrigado a adotá-la, mas sua potencialidade continua intacta. Ela está até mesmo a ponto de ganhar uma nova credibilidade.

IHU On-Line - O senhor defende ainda a ideia de um duplo processo de “saída da religião” e de “individualização do crer”. Pode explicar-nos melhor este último conceito e como ele se aplica na sociedade moderna? Esse é um fenômeno da pós-modernidade?

Marcel Gauchet - Já defini o conceito de saída da religião – a saída da estruturação religiosa do mundo. “A individualização do crer” designa uma mudança capital no acesso ao religioso. Na sociedade estruturada pela religião, a crença religiosa nos chegava naturalmente com a pertença social. Ela se confundia com o senso da comunidade e ela era, aliás, transmitida essencialmente pelo canal das famílias. Isso também queria dizer que a religião tinha por ela a autoridade da sociedade, a autoridade de algo exterior e superior à vontade das pessoas. A novidade é que doravante a sociedade não comunica nada como mensagem religiosa. A crença diz respeito a um ato de adesão estritamente pessoal, fora da existência comunitária, ou mesmo contra ela. A figura ideal do crente de hoje é o convertido, cuja escolha se refere a um engajamento puramente interior. Disso também resulta que esses novos crentes individualizados não se submetam voluntariamente a uma autoridade exterior, qualquer que ela seja. Eles se sentem independentes, tanto em face das Igrejas como da autoridade da sociedade.

IHU On-Line - Qual é o lugar do sagrado na pós-metafísica?

Marcel Gauchet - O sagrado é mais outra dessas noções que se lucraria em definir mais rigorosamente. Eu me lanço: há algo sagrado quando há uma materialização do além no aqui-em-baixo. A eucaristia é o sagrado por excelência dos católicos nesse sentido. Sob este ponto de vista, existe um inegável recuo do sagrado. O distanciamento entre o divino e o humano, de que eu falava há pouco, torna improvável para os próprios crentes a manifestação concreta do sobrenatural num objeto, num lugar ou numa pessoa. Há menos coisas que podem ser tidas como sagradas. Mas, se se fala tanto do sagrado, a despeito desse movimento de recuo, é por causa da busca de sensações e de emoções dos humanos “pós-modernos”. Não lhes basta crer, eles querem experimentar, sentir, viver. É uma nostalgia subjetiva de algo cuja objetividade se desvanece inexoravelmente.





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