Na visão do filósofo Marcel Gauchet, não estamos numa sociedade pós-metafísica, e sim numa sociedade em que ela é opcional
Por: Patrícia Fachin e Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger
“A fé desapareceu ou está a ponto de desaparecer. Os ‘crentes’ e principalmente os ‘praticantes’ são, por esse fato, menos numerosos. Mas em geral, eles têm uma fé muito mais motivada pessoalmente e muito mais esclarecida intelectualmente”, enfatiza o filósofo francês Marcel Gauchet à IHU On-Line. Autor do livro Depois da religião. O que será do homem depois que a religião deixará de ditar a lei?, escrito em parceria com o filósofo Luc Ferry, Gauchet diz que “as religiões guardam toda a sua importância aos olhos de seus fiéis. Entretanto, elas não são mais determinantes para a vida coletiva”, reitera. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele diz ainda que a estrutura religiosa e “a maneira pela qual o religioso organizou as comunidades humanas até uma data relativamente recente” pertencem ao passado.
Ao comentar o papel da religião na pós-modernidade, o filósofo revela ter dúvidas sobre o valor da noção de pós-modernidade e sustenta que ela tem um erro de diagnóstico. “Ela toma uma ruptura na modernidade por uma ruptura com a modernidade. Dito isso, o novo curso das mentalidades e das ideias que ela designa corresponde a uma realidade.” E complementa: “A dita pós-modernidade não pensa o religioso. (...) Ela lhe dá um lugar unicamente sob o título da emoção e da afetividade”.
Marcel Gauchet é diretor de estudos na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS) e redator-chefe da revista Le Débat. Publicou, entre outros, La Religion dans La démocratie (Gallimard, 1998), La Démocratie contre elle-même (Gallimard, 2002), La Condition historique (Stock, 2003) e Le désenchantement du monde (Paris: Gallimard. 1985), sua obra principal. Escreveu, também, La démocratie d'une crise à l'autre (Cecile Defaut: Paris, 2007), L'Avènement de la démocratie (Gallimard, Paris, 2007) e Les conditions de l'éducation (en collaboration avec Marie-Claude Blais et Dominique Ottavi, Stock: Paris, 2008).
Confira a entrevista
IHU On-Line - No livro Depois da religião. O que será do homem depois que a religião deixará de ditar a lei?, o senhor afirma que o religioso pertence ao passado. Pode explicar-nos essa ideia?
Marcel Gauchet - Eu proponho clarificar a disputa sem fim entre os partidários da tese da morte de Deus e os partidários da tese do retorno do religioso, introduzindo uma distinção entre a estrutura e a crença religiosa. O que “pertence ao passado” como você diz, é a estrutura religiosa. É a maneira pela qual o religioso organizou as comunidades humanas até uma data relativamente recente. A saída ocidental da religião, após o século XVI, consistiu em inventar uma forma diferente da comunidade humana. Mas este cancelamento da estruturação religiosa das sociedades não significa o desaparecimento da crença religiosa. Ele a modifica, todavia, porque uma boa parte da religiosidade tradicional consistia numa espécie de conformismo social, de adesão a uma ordem ritual e cerimonial, sem muita reflexão metafísica nem mesmo de forte sentimento do sobrenatural ou do divino. O que os cristãos chamam de “a fé” desapareceu ou está a ponto de desaparecer. Os “crentes” e principalmente os “praticantes” são, por esse fato, menos numerosos. Mas em geral, eles têm uma fé muito mais motivada pessoalmente e muito mais esclarecida intelectualmente.
IHU On-Line - Se a religião faz parte de tradições passadas e se a pós-modernidade está caracterizada por crenças individuais, que futuro o senhor vislumbra para religiões monoteístas? Elas ainda ganham importância, por exemplo, no diálogo inter-religioso?
Marcel Gauchet - Parece-me difícil falar das “religiões monoteístas” em geral, pois a situação do Judaísmo e mais ainda a do Islã me parece muito diferente daquela do Cristianismo. Aliás, isso é em parte o que constitui a dificuldade do diálogo inter-religioso. Falamos da Europa, onde o fenômeno da saída da religião tem seu destaque mais avançado e se vê melhor isso. O Cristianismo, católico ou protestante, deixou de ser um quadro intelectual e simbólico englobante. Ele se tornou uma família espiritual, entre outras, no seio de uma sociedade filosoficamente pluralista e na qual os elos sociais estão baseados na livre adesão dos indivíduos. Aos olhos de seus adeptos, a religião estava ao lado de Estado, daquilo que define a ordem e a legitimidade da coletividade em seu conjunto, mesmo quando havia separação da Igreja e do Estado, como na França. Agora ela passou para o lado da sociedade civil. As Igrejas são componentes da sociedade civil, sob o mesmo título que os partidos políticos, os sindicatos ou as sociedades de pensamento. Esta é uma mudança de posição fundamental. As religiões guardam toda a sua importância aos olhos de seus fiéis. Entretanto, elas não são mais determinantes para a vida coletiva.
IHU On-Line - Como o senhor define o novo Cristianismo baseado na fé dos indivíduos? Em que sentido essa nova perspectiva, fundada na adesão pessoal, muda a característica e a essência do Cristianismo, tal como é entendido até o momento?
Marcel Gauchet - É muito mais difícil captar como essa mudança política e sociológica repercute sobre a substância da fé, sobre a essência íntima do Cristianismo. Ela se traduz, parece-me, por um sentimento mais intenso da alteridade do divino, de sua exterioridade em relação ao mundo humano. Se Deus não comanda mais os homens, se Ele não lhes dá mais uma lei, como os deuses sempre o haviam feito através da história, então é preciso pensá-lo diversamente do modo como se fazia. Isso é ainda mais misterioso do que antes. Sua relação com os homens é ainda mais problemática.
IHU On-Line - De que forma a pós-modernidade tende a pensar o religioso?
Marcel Gauchet - Devo começar por dizer que tenho grandes dúvidas sobre o valor desta noção de pós-modernidade. Vejo muito bem o que ela procura descrever, mas creio que ela introduz um erro de diagnóstico. Ela toma uma ruptura na modernidade por uma ruptura com a modernidade. Dito isso, o novo curso das mentalidades e das ideias que ela designa corresponde a uma realidade. Chamemo-la de pós-modernidade, se assim o quiseres. A dita pós-modernidade não pensa o religioso. Ela nada tem a dizer a respeito. Ela lhe dá um lugar unicamente sob o título da emoção e da afetividade. Mas o que há de especificamente religioso nesta experiência não lhe interessa.
IHU On-Line – Mas então podemos pensar numa sociedade pós-metafísica?
Marcel Gauchet – A meu ver, nós não estamos numa sociedade pós-metafísica, mas numa sociedade em que a pós-metafísica é opcional, o que é muito diferente.
IHU On-Line - Se Deus morreu como instância organizadora da sociedade, instituidora da lei, como é dito em seu livro Depois da religião, que espaço Ele ocupa na sociedade atual e como Ele se manifesta no coração do humano?
Marcel Gauchet - O paradoxo que engana muitos observadores é que o cancelamento do papel organizador ou estruturante da religião não a impede de ter uma visibilidade eventualmente acrescida no espaço público. Esta existe, porém, em nome das identidades que constituem a sociedade civil e que exigem o reconhecimento do Estado. Este papel público realmente não significa que as religiões estariam a ponto de reconquistar sua posição legisladora anterior. Todavia, as opiniões religiosas são livres em se manifestar publicamente como as outras e reclamar sua parte no concerto coletivo. Elas são um componente, não o árbitro supremo.
No que se refere às identidades pessoais, às quais a fé religiosa vem responder, é preciso procurar em duas direções: de um lado, as dificuldades muito grandes de viver sua condição de indivíduo numa sociedade de indivíduos, e, do outro lado, no plano intelectual, os limites mais visíveis da explicação científica do mundo. Por isso não creio numa situação pós-metafísica. A atitude metafísica continua sendo uma opção aberta. Ninguém é obrigado a adotá-la, mas sua potencialidade continua intacta. Ela está até mesmo a ponto de ganhar uma nova credibilidade.
IHU On-Line - O senhor defende ainda a ideia de um duplo processo de “saída da religião” e de “individualização do crer”. Pode explicar-nos melhor este último conceito e como ele se aplica na sociedade moderna? Esse é um fenômeno da pós-modernidade?
Marcel Gauchet - Já defini o conceito de saída da religião – a saída da estruturação religiosa do mundo. “A individualização do crer” designa uma mudança capital no acesso ao religioso. Na sociedade estruturada pela religião, a crença religiosa nos chegava naturalmente com a pertença social. Ela se confundia com o senso da comunidade e ela era, aliás, transmitida essencialmente pelo canal das famílias. Isso também queria dizer que a religião tinha por ela a autoridade da sociedade, a autoridade de algo exterior e superior à vontade das pessoas. A novidade é que doravante a sociedade não comunica nada como mensagem religiosa. A crença diz respeito a um ato de adesão estritamente pessoal, fora da existência comunitária, ou mesmo contra ela. A figura ideal do crente de hoje é o convertido, cuja escolha se refere a um engajamento puramente interior. Disso também resulta que esses novos crentes individualizados não se submetam voluntariamente a uma autoridade exterior, qualquer que ela seja. Eles se sentem independentes, tanto em face das Igrejas como da autoridade da sociedade.
IHU On-Line - Qual é o lugar do sagrado na pós-metafísica?
Marcel Gauchet - O sagrado é mais outra dessas noções que se lucraria em definir mais rigorosamente. Eu me lanço: há algo sagrado quando há uma materialização do além no aqui-em-baixo. A eucaristia é o sagrado por excelência dos católicos nesse sentido. Sob este ponto de vista, existe um inegável recuo do sagrado. O distanciamento entre o divino e o humano, de que eu falava há pouco, torna improvável para os próprios crentes a manifestação concreta do sobrenatural num objeto, num lugar ou numa pessoa. Há menos coisas que podem ser tidas como sagradas. Mas, se se fala tanto do sagrado, a despeito desse movimento de recuo, é por causa da busca de sensações e de emoções dos humanos “pós-modernos”. Não lhes basta crer, eles querem experimentar, sentir, viver. É uma nostalgia subjetiva de algo cuja objetividade se desvanece inexoravelmente.
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