domingo, 26 de agosto de 2018

Papa Francisco fala sobre os casos de abuso nos Estados Unidos

             O Papa Francisco publicou nesse último dia 20/08/2018 uma carta a todo Povo de Deus manifestando-se sobre as denúncias de abusos cometidos por religiosos nos Estados Unidos por aproximadamente 70 anos, atingindo cerca de 1.000 pessoas. 
              Na postagem desta semana resolvi reproduzir a carta, pois é uma carta significativa e que se posiciona com seriedade diante dessa situação tão dramática.



CARTA DO PAPA FRANCISCO
AO POVO DE DEUS



«Um membro sofre? Todos os outros membros sofrem com ele» (1 Co 12, 26). Estas palavras de São Paulo ressoam com força no meu coração ao constatar mais uma vez o sofrimento vivido por muitos menores por causa de abusos sexuais, de poder e de consciência cometidos por um número notável de clérigos e pessoas consagradas. Um crime que gera profundas feridas de dor e impotência, em primeiro lugar nas vítimas, mas também em suas famílias e na inteira comunidade, tanto entre os crentes como entre os não-crentes. Olhando para o passado, nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar reparar o dano causado. Olhando para o futuro, nunca será pouco tudo o que for feito para gerar uma cultura capaz de evitar que essas situações não só não aconteçam, mas que não encontrem espaços para serem ocultadas e perpetuadas. A dor das vítimas e das suas famílias é também a nossa dor, por isso é preciso reafirmar mais uma vez o nosso compromisso em garantir a protecção de menores e de adultos em situações de vulnerabilidade.

1. Um membro sofre?

Nestes últimos dias, um relatório foi divulgado detalhando aquilo que vivenciaram pelo menos 1.000 sobreviventes, vítimas de abuso sexual, de poder e de consciência, nas mãos de sacerdotes por aproximadamente setenta anos. Embora seja possível dizer que a maioria dos casos corresponde ao passado, contudo, ao longo do tempo, conhecemos a dor de muitas das vítimas e constamos que as feridas nunca desaparecem e nos obrigam a condenar veementemente essas atrocidades, bem como unir esforços para erradicar essa cultura da morte; as feridas “nunca prescrevem”. A dor dessas vítimas é um gemido que clama ao céu, que alcança a alma e que, por muito tempo, foi ignorado, emudecido ou silenciado. Mas seu grito foi mais forte do que todas as medidas que tentaram silenciá-lo ou, inclusive, que procuraram resolvê-lo com decisões que aumentaram a gravidade caindo na cumplicidade. Clamor que o Senhor ouviu, demonstrando, mais uma vez, de que lado Ele quer estar. O cântico de Maria não se equivoca e continua a se sussurrar ao longo da história, porque o Senhor se lembra da promessa que fez a nossos pais: «dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias» (Lc 1, 51-53), e sentimos vergonha quando percebemos que o nosso estilo de vida contradisse e contradiz aquilo que proclamamos com a nossa voz.

Com vergonha e arrependimento, como comunidade eclesial, assumimos que não soubemos estar onde deveríamos estar, que não agimos a tempo para reconhecer a dimensão e a gravidade do dano que estava sendo causado em tantas vidas. Nós negligenciamos e abandonamos os pequenos. Faço minhas as palavras do então Cardeal Ratzinger quando, na Via Sacra escrita para a Sexta-feira Santa de 2005, uniu-se ao grito de dor de tantas vítimas, afirmando com força: «Quanta sujeira há na Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a Ele! Quanta soberba, quanta autossuficiência!... A traição dos discípulos, a recepção indigna do seu Corpo e do seu Sangue é certamente o maior sofrimento do Redentor, o que Lhe trespassa o coração. Nada mais podemos fazer que dirigir-Lhe, do mais fundo da alma, este grito: Kyrieeleison – Senhor, salvai-nos (cf. Mt 8, 25)» (Nona Estação).

2. Todos os outros membros sofrem com ele.

A dimensão e a gravidade dos acontecimentos obrigam a assumir esse facto de maneira global e comunitária. Embora seja importante e necessário em qualquer caminho de conversão tomar conhecimento do que aconteceu, isso, em si, não basta. Hoje, como Povo de Deus, somos desafiados a assumir a dor de nossos irmãos feridos na sua carne e no seu espírito. Se no passado a omissão pôde tornar-se uma forma de resposta, hoje queremos que seja a solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo e desafiador, a tornar-se o nosso modo de fazer a história do presente e do futuro, num âmbito onde os conflitos, tensões e, especialmente, as vítimas de todo o tipo de abuso possam encontrar uma mão estendida que as proteja e resgate da sua dor (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 228). Essa solidariedade exige que, por nossa vez, denunciemos tudo o que possa comprometer a integridade de qualquer pessoa. Uma solidariedade que exige a luta contra todas as formas de corrupção, especialmente a espiritual «porque trata-se duma cegueira cómoda e autossuficiente, em que tudo acaba por parecer lícito: o engano, a calúnia, o egoísmo e muitas formas subtis de autorreferencialidade, já que “também Satanás se disfarça em anjo de luz” (2 Cor 11, 14)» (Exort. ap. Gaudete et exultate, 165). O chamado de Paulo para sofrer com quem sofre é o melhor antídoto contra qualquer tentativa de continuar reproduzindo entre nós as palavras de Caim: «Sou, porventura, o guardião do meu irmão?» (Gn 4, 9).

Reconheço o esforço e o trabalho que são feitos em diferentes partes do mundo para garantir e gerar as mediações necessárias que proporcionem segurança e protejam a integridade de crianças e de adultos em situação de vulnerabilidade, bem como a implementação da “tolerância zero” e de modos de prestar contas por parte de todos aqueles que realizem ou acobertem esses crimes. Tardamos em aplicar essas medidas e sanções tão necessárias, mas confio que elas ajudarão a garantir uma maior cultura do cuidado no presente e no futuro.

Juntamente com esses esforços, é necessário que cada batizado se sinta envolvido na transformação eclesial e social de que tanto necessitamos. Tal transformação exige conversão pessoal e comunitária, e nos leva dirigir os olhos na mesma direção do olhar do Senhor. São João Paulo II assim o dizia: «se verdadeiramente partimos da contemplação de Cristo, devemos saber vê-Lo sobretudo no rosto daqueles com quem Ele mesmo Se quis identificar» (Carta ap. Novo millennio ineunte, 49). Aprender a olhar para onde o Senhor olha, estar onde o Senhor quer que estejamos, converter o coração na Sua presença. Para isso nos ajudarão a oração e a penitência. Convido todo o Povo Santo fiel de Deus ao exercício penitencial da oração e do jejum, seguindo o mandato do Senhor[1], que desperte a nossa consciência, a nossa solidariedade e o compromisso com uma cultura do cuidado e o “nunca mais” a qualquer tipo e forma de abuso.

É impossível imaginar uma conversão do agir eclesial sem a participação activa de todos os membros do Povo de Deus. Além disso, toda vez que tentamos suplantar, silenciar, ignorar, reduzir em pequenas elites o povo de Deus, construímos comunidades, planos, ênfases teológicas, espiritualidades e estruturas sem raízes, sem memória, sem rostos, sem corpos, enfim, sem vidas[2]. Isto se manifesta claramente num modo anômalo de entender a autoridade na Igreja - tão comum em muitas comunidades onde ocorreram as condutas de abuso sexual, de poder e de consciência - como é o clericalismo, aquela «atitude que não só anula a personalidade dos cristãos, mas tende também a diminuir e a subestimar a graça batismal que o Espírito Santo pôs no coração do nosso povo»[3]. O clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes como pelos leigos, gera uma ruptura no corpo eclesial que beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que denunciamos hoje. Dizer não ao abuso, é dizer energicamente não a qualquer forma de clericalismo.

É sempre bom lembrar que o Senhor, «na história da salvação, salvou um povo. Não há identidade plena, sem pertença a um povo. Por isso, ninguém se salva sozinho, como indivíduo isolado, mas Deus atrai-nos tendo em conta a complexa rede de relações interpessoais que se estabelecem na comunidade humana: Deus quis entrar numa dinâmica popular, na dinâmica dum povo» (Exort. ap. Gaudete et exultate, 6). Portanto, a única maneira de respondermos a esse mal que prejudicou tantas vidas é vivê-lo como uma tarefa que nos envolve e corresponde a todos como Povo de Deus. 

Essa consciência de nos sentirmos parte de um povo e de uma história comum nos permitirá reconhecer nossos pecados e erros do passado com uma abertura penitencial capaz de se deixar renovar a partir de dentro. Tudo o que for feito para erradicar a cultura do abuso em nossas comunidades, sem a participação activa de todos os membros da Igreja, não será capaz de gerar as dinâmicas necessárias para uma transformação saudável e realista. A dimensão penitencial do jejum e da oração ajudar-nos-á, como Povo de Deus, a nos colocar diante do Senhor e de nossos irmãos feridos, como pecadores que imploram o perdão e a graça da vergonha e da conversão e, assim, podermos elaborar acções que criem dinâmicas em sintonia com o Evangelho. Porque «sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo actual» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 11).

É imperativo que nós, como Igreja, possamos reconhecer e condenar, com dor e vergonha, as atrocidades cometidas por pessoas consagradas, clérigos, e inclusive por todos aqueles que tinham a missão de assistir e cuidar dos mais vulneráveis. Peçamos perdão pelos pecados, nossos e dos outros. A consciência do pecado nos ajuda a reconhecer os erros, delitos e feridas geradas no passado e permite nos abrir e nos comprometer mais com o presente num caminho de conversão renovada.

Da mesma forma, a penitência e a oração nos ajudarão a sensibilizar os nossos olhos e os nossos corações para o sofrimento alheio e a superar o afã de domínio e controle que muitas vezes se torna a raiz desses males. Que o jejum e a oração despertem os nossos ouvidos para a dor silenciada em crianças, jovens e pessoas com necessidades especiais. Jejum que nos dá fome e sede de justiça e nos encoraja a caminhar na verdade, dando apoio a todas as medidas judiciais que sejam necessárias. Um jejum que nos sacuda e nos leve ao compromisso com a verdade e na caridade com todos os homens de boa vontade e com a sociedade em geral, para lutar contra qualquer tipo de abuso de poder, sexual e de consciência.
Desta forma, poderemos tornar transparente a vocação para a qual fomos chamados a ser «um sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano» (Conc. Ecum. Vat. II, Lumen gentium, 1).

«Um membro sofre? Todos os outros membros sofrem com ele», disse-nos São Paulo. Através da atitude de oração e penitência, poderemos entrar em sintonia pessoal e comunitária com essa exortação, para que cresça em nós o dom da compaixão, justiça, prevenção e reparação. Maria soube estar ao pé da cruz de seu Filho. Não o fez de uma maneira qualquer, mas permaneceu firme de pé e ao seu lado. Com essa postura, Ela manifesta o seu modo de estar na vida. Quando experimentamos a desolação que nos produz essas chagas eclesiais, com Maria nos fará bem «insistir mais na oração» (cf. S. Inácio de Loiola, Exercícios Espirituais, 319), procurando crescer mais no amor e na fidelidade à Igreja. Ela, a primeira discípula, nos ensina a todos os discípulos como somos convidados a enfrentar o sofrimento do inocente, sem evasões ou pusilanimidade. Olhar para Maria é aprender a descobrir onde e como o discípulo de Cristo deve estar.

Que o Espírito Santo nos dê a graça da conversão e da unção interior para poder expressar, diante desses crimes de abuso, a nossa compunção e a nossa decisão de lutar com coragem.

Francisco

Cidade do Vaticano, 20 de Agosto de 2018.


[1] «Esta espécie de demónios não se expulsa senão à força de oração e de jejum» Mt 17, 21.
[2] Cf. Carta do Santo Padre Francisco ao Povo de Deus que peregrina no Chile, 31 de Maio de 2018.

domingo, 19 de agosto de 2018

Como o Cristianismo moldou a figura de Satanás para combater outras religiões

Esta semana compartilho essa interessante REPORTAGEM DA BBC NEWS / BRASIL


Em uma biblioteca histórica na cidade de Tréveris, atualmente Alemanha, há um manuscrito feito provavelmente entre os anos 800 e 825 com o texto do livro bíblico do Apocalipse. Totalmente ilustrado com iluminuras. "Uma gravura mostra a luta do Arcanjo Miguel contra os anjos rebeldes. Nessa gravura, há dois grupos de anjos: os rebeldes e os que permaneceram fiéis a Deus. O interessante é que não há nenhuma distinção entre ambos os grupos, apenas a posição de cada um no quadro.
Essa é, talvez, a mais antiga representação dos demônios de que se tem notícia", diz Edin Sued Abumanssur, professor do departamento de Teologia e Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
"Nele, o diabo é representado como um enorme dragão, mas seus companheiros rebeldes e decaídos são iguais aos anjos que os fizeram precipitar: têm asas, vestes longas, cabelos encaracolados. A única coisa que lhes falta é a aureola", descreve a jornalista e escritora italiana Paola Giovetti, no livro "L'Angelo Caduto" (o anjo caído).
Segundo Abumanssur, ao longo da história, observa-se uma correlação entre os momentos políticos e sociais e as representações do diabo. "No campo das artes, pictórica, escultórica ou literária, a tentativa de traçar um desenvolvimento cronológico da imagem do diabo dificilmente renderá bons frutos. Há contradições e permanências em diferentes formas de representá-lo, que se superpõem sem nenhum critério claro e apreensível", afirma o professor.
Até o século 11, conforme aponta o pesquisador, ele quase sempre foi retratado com aparência humana.
No Ocidente, a partir do ano 1000, o diabo começa a ser representado com aparência grotesca e monstruosa, entre o humano e o animal. "Na Idade Média, os processos imaginários não eram homogêneos. Grandes contingentes populacionais, espalhados por extensos territórios, em uma época na qual as comunicações e as trocas culturais eram lentas, fragmentadas e de baixa densidade, faziam com que diferentes compreensões e ideias sobre o diabo convivessem em mutualidade", diz o pesquisador.
"Podemos afirmar com alguma margem de segurança que, a partir do século 11, características não humanas da figura do demônio começam a ganhar certa hegemonia no meio da população embora ainda sobrevivam, por essa época, representações de anjos caídos que guardam proximidade com a figura do homem."
O escritor e semiólogo italiano Umberto Eco tratou dessa questão no livro "História da Feiura". "É somente a partir do século 11 que ele começa a aparecer como um monstro dotado de cauda, orelhas animalescas, barbicha caprina, artelhos, patas e chifres, adquirindo também asas de morcego", escreveu.
Vermelho e com chifres
Eco ressalta que "parece óbvio, também por motivos tradicionais, que o diabo deva ser feio". "O feio, sob a forma do terrificante e do diabólico, faz seu ingresso no mundo cristão com o Apocalipse de São João Evangelista. Não é que faltassem menções ao demônio e ao inferno no Antigo Testamento e nos outros livros do Novo Testamento, mas nesses textos o diabo é nomeado sobretudo tudo através das ações que realiza e dos efeitos que produz (as descrições dos endemoniados nos Evangelhos, por exemplo), à exceção do Gênesis, onde assume forma de serpente", dissertou o semiólogo. "Ele nunca aparece com a evidência 'somática' com que será representado na Idade Média".
A figura mais icônica do demônio, o ser vermelho, com rabo, chifres e tridente é uma construção paulatina e gradual. "Inicia-se a partir do século 11 um processo de sistematização dogmática da figura do diabo que tenta reunir em uma síntese tanto a teologia quanto as representações do imaginário social do período e que ao mesmo tempo venha em socorro das necessidades políticas de uma ordem medieval que começa a esboroar-se", aponta o sociólogo Abumanssur.
"A extensa iconografia do diabo dá testemunho da luta teológica e política, violenta não poucas vezes, que faz emergir aos poucos a figura de um senhor terrível, que subjuga os homens e mulheres na maldade. A imagem soberana, senhorial e majestática, inumana mesmo, do diabo, emerge lentamente no processo de consolidação do poder papal e da figura do rei autocrático como torreões de fortaleza capazes de resistir a um deus da maldade cada vez mais poderoso e antagonista da paz e da ordem."
Tal figura é a mescla da cultura erudita dos monges e teólogo medievais com a cultura popular eivada de superstições e paganismo. "A fome, as pestes e o lento desmonte do sistema feudal cooperaram para que o diabo assumisse suas características inumanas a partir do século 11", diz Abumanssur. "A assimilação da cultura grega e seus deuses por parte do cristianismo trouxe contribuições como os chifres, os pés de bode e o rabo, características do deus Pã. A entrada do cristianismo nos países celtas, ao norte da Europa, contribuiu para reforçar essa imagem próxima do deus Cernu, ou Cernunno."
Conforme lembra o teólogo Volney Berkenbrock, professor de Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, a versão caricata do diabo como um serzinho vermelho e chifrudo é consequência daquilo que o cristianismo procurava combater, no início, ou seja, as crenças greco-romanas.
"Nos embates de culturas - e, no caso específico, de religiões - os símbolos da religião dos outros serão postos como algo extremamente ruim e malévolo. Dessa forma, Satanás ganhou adereços de quem se estava combatendo", explica.
"Concretamente: o cristianismo, ao combater a religião grega - e também a romana - coloca chifres no diabo por conta do Deus grego Pã, uma figura representada como meio homem, meio carneiro chifrudo, que seduzia as jovens. Da mesma forma, usa o tridente, para combater Posseidon, o Deus grego dos mares - Netuno para os romanos -, pois o tridente era o símbolo dessa divindade."
Essa dicotomia, aponta o pesquisador, ocorre até hoje. "Um exemplo típico é como algumas igrejas cristãs identificam a figura de Exu, advinda da religião africana dos iorubanos, como o demônio", pontua.
Cultura
As representações culturais da figura de Satanás são recorrentes desde a Idade Média. Atualmente, essa carga imagética ganha referência da cultura pop - dos filmes às histórias em quadrinhos.
"No cinema o filme "O Exorcista", de 1974, foi um divisor de águas. Ele marcou a filmografia subsequente", acredita Abumanssur. "Há uma imagem feita entre 1471 e 1475, de autor conversando com São Teófilo de Adana. O diabo mostra um livro a São Teófilo e, talvez, seja a primeira pintura a simbolizar um pacto com o diabo. Isso é interessante, pois marca o valor da assinatura como forma de validar acordos. Os acordos financeiros se valeram dessa mudança cultural."
De origem hebraica, a palavra satanás significa "acusador" ou "adversário". Suas ocorrências mais antigas, portanto, não aludem a uma figura oposta a Deus, muito menos de algo que personifique o mal. "Ele era simplesmente o acusador, quase o que hoje se poderia chamar de promotor de Justiça", compara o teólogo Berkenbrock.
"A ideia de satanás como personificação do mal entrou para o judaísmo provavelmente por meio de influência babilônica, mais especificamente da religião de Zaratustra (o Mazdeísmo), que conhece uma figura oposta ao Deus (Ahura Mazda), figura esta chamada de Ahriman. Assim, o judaísmo passou - já no tempo de Jesus - a assumir o imaginário de uma figura contraente de Deus, usando para isto a palavra satanás."
As palavras diabo e demônio são legado da influência grega sobre o cristianismo. Demônio (ou daimon) significa força, impulso - e passou a ser identificada como força negativa. Diabo (diabolos) é divisor, aquele que causa divisão.
Em seu livro "O Cristo Pantocrator", a pesquisadora Wilma Steagall De Tommaso, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e do Museu de Arte Sacra de São Paulo e membro da Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião, ressalta que o contexto da Idade Média foi favorável a criação da imagem de satanás.
"A vida humana estava sempre sob ameaça. Os fardos cotidianos eram pesados. A morte era um guia constante e os moribundos se questionavam para saber se poderiam esperar a vida eterna após a morte ou as torturas do inferno", afirma.
"O medo do além era tão presente e tão físico que era acompanhado de um temor religioso profundo. Ninguém poderia escapar do julgamento final, mas era tido como certo trabalhar durante a vida para a salvação."
"Foi assim", prossegue a pesquisadora, "que o tema do Juízo Final se tornou o predileto dos tímpanos - arcos situados acima da entrada da igreja - , constituindo-os num grande vetor monumental, uma grande invenção da arte românica."
Era Deus colocado em paralelo ao diabo. A ameaça constante do mal se apossando das pessoas. "Os sermões dos padres visavam amedrontar, desgrenhando a condição humana sob cores vivas, às vezes em excesso, e representando artisticamente o destino sobre as paredes pintadas", explica Tommaso.
"Juízo Final", não à toa, é considerado o principal afresco da carreira do renascentista Michelangelo. Entre 1535 e 1541, o artista toscano pintou na Capela Sistina, no Vaticano, a representação artística do julgamento de Deus, narrado no livro bíblico do Apocalipse.
Outras representações
No livro "História da Feiura", Umberto Eco lembra de outras representações da figura do mal. "Existiam em diversas culturas vários tipos de demônio", escreveu. No Egito antigo, havia o monstro Ammut, híbrido de crocodilo, leopardo e hipopótamo. A cultura mesopotâmica tinha referências a seres de feições bestiais.
"Quanto à cultura hebraica, que influencia diretamente a cristã, é o diabo, assumindo a forma de serpente, quem tenta Eva, no Gênesis", afirmou Eco. "Sempre na Bíblia, encontramos menções a Lilith, monstro feminino de origem babilônica que, na tradição hebraica, transforma-se em demônio feminino com rosto de mulher, longos cabelos e asas."
Deusa adorada na Babilônia e na Mesopotâmia, Lilith era associada a ventos que, segundo se acreditava à época, traziam enfermidades e morte. Na tradição judaica antiga, ela aparece como um demônio noturno. Para os islâmicos, Lilith foi a primeira mulher do personagem bíblico Adão - e acabou acusada de ter sido ela a serpente que fez com que Eva comesse o fruto proibido.

domingo, 12 de agosto de 2018

O Evangelho da Meritocracia


O discurso da meritocracia que defende que cada um deve ter o que merece, conforme seu esforço pessoal e que, por isso critica políticas de assistência social porque elas “alimentam a preguiça” e só servem pra gerar “vagabundos desocupados”, essa forma de pensamento está muito em voga ultimamente.
O que mais me impressiona é que entre os cristãos esse tipo de discurso tem sido repetido como uma verdade absoluta e inquestionável.
Pensando sobre isso me recordei que existe um evangelho no qual Jesus nos dá uma interessante lição sobre a lógica da meritocracia (pasmem, ela já existia a mais de 2000 anos atrás!).
No evangelho de Mt 20,1-16 Jesus conta uma interessante historia. Jesus fala que havia um homem que possuía uma grande plantação e que havia chegado o tempo da colheita. O homem saiu para contratar trabalhadores temporários para fazer a colheita e, para isso, foi à praça da cidade. Era costume, no tempo de Jesus, que pessoas sem trabalho ficassem em locais públicos como praças, procurando algum tipo de trabalho.
O homem encontrou um grupo na praça e chamou-os para ir trabalhar naquele dia na sua colheita. O homem precisava fazer toda a colheita naquele dia para não ter prejuízo. Era de manhã cedo e o homem acertou com os trabalhadores o valor do dia de trabalho, pois no tempo de Jesus se pagava o trabalho pelo dia de serviço, ao final do dia.
Os trabalhadores contratados começaram a colheita. Pela metade da manhã o dono da plantação voltou à praça e, encontrando outro grupo de homens a procura de trabalho, contratou esse grupo e o mandou para a colheita. O dono da plantação fez a mesma coisa por volta do meio dia e das três horas da tarde.
Por volta das cinco horas da tarde, o homem foi novamente a praça e encontrou outro grupo de trabalhadores que passaram o dia sem conseguir um trabalho e os mandou também para trabalhar na colheita.
Ao anoitecer, o dono da plantação mandou o seu administrador fazer o pagamento pelo trabalho. É nesse momento que algo curioso acontece. Ele mandou começar o pagamento pelos que foram contratados por último e seguir nessa ordem até chegar nos que foram contratados no início do dia.
Os trabalhadores que foram contratados no início do dia, quando receberam seu pagamento começaram a reclamar do dono da plantação, pois ele pagou o mesmo valor tanto para eles como para os que haviam trabalhado apena uma hora no final do dia. Falavam que o dono da plantação era um homem injusto, pois eles haviam trabalhado mais do que os outros e, por isso, mereceriam receber mais, proporcionalmente ao seu esforço.
O dono da plantação então lhes disse que pagou o valor justo da diária que havia combinado com eles. E ainda acrescenta a questão de que se ele também quis pagar o mesmo valor a todos os que trabalharam na plantação, qual o problema? O dinheiro era dele e ele poderia dispor como melhor lhe parecesse.
Por fim, o homem faz uma última pergunta aos trabalhadores que estavam reclamando: Vocês, por acaso, estão com inveja pelo fato de eu estar sendo bom?
Jesus, com essa parábola, me fez pensar no discurso da meritocracia. Os que defendem de modo enfático essa forma de pensar certamente estariam no grupo dos trabalhadores que se queixaram da atitude do dono da plantação. Talvez você também ache estranha essa atitude do dono da plantação, mas vamos entender o contexto de fundo dessa história para entendermos o que Jesus pensa da meritocracia como forma de justiça.
No tempo de Jesus, muitos homens estavam desempregados por terem perdido seus bens diante da exploração do Império Romano e das elites econômicas que, por meio de altos tributos, levavam a ruínas os pequenos proprietários fazendo com que perdessem suas terras e os poucos bens que tinham. O único meio de sobrevivência era arrendar sua mão de obra para conseguir o mínimo necessário para viver a cada dia (“o pão de cada dia”).
Ao contar essa parábola, Jesus coloca diante de nós uma realidade que era dura e, infelizmente, comum em muitas vilas da Palestina: grupos de homens que esperavam por algum trabalho nas praças. Esse trabalho, geralmente, era na lavoura dos ricos proprietários que tinham grandes plantações e precisavam e muita mão de obra para a colheita.
Ao tratar o pagamento dos trabalhadores Jesus faz duas mudanças importantes na história: o pagamento começa pelos últimos contratados e todos recebem o mesmo valor da diária. Por que isso é importante?
Primeiro, ao começar pelos últimos, Jesus parece chamar a atenção que não se pode apegar-se a posições ou direitos pelo simples fato do merecimento. Deus não segue essa lógica do merecimento!
Segundo, ao dizer que todos receberam o mesmo valor, Jesus não está defendendo uma injustiça para com os que trabalharam mais, mas está defendendo o direito de cada trabalhador ter o “pão de cada dia” em sua mesa. O valor da diária garantia a cada trabalhador as condições de manter sua família por mais um dia. O que orienta o pagamento do salário não é o mérito puro e simples, mas a necessidade real de cada um para poder viver dignamente.
Essa compreensão da parábola de Jesus é importante porque muitos cristãos parecem ter se esquecido desse texto e do seu significado para nossas relações sociais. Jesus não está desmerecendo o esforço pessoal que desenvolvemos para poder melhorar nossas condições de vida por meio do estudo, trabalho duro, dedicação, perseverança, qualificação técnica etc. Entretanto, em uma sociedade desigual como a nossa, não podemos falar de meritocracia sem levar em conta as desigualdades sociais que colocam as pessoas em diferentes condições de competirem pelos espaços de sucesso e de bem-estar.
Um filho de juiz ou de um rico empresário terá vantagens competitivas para o sucesso em relação ao filho de uma diariasta que não conseguiu terminar o ensino fundamental e que vive na periferia criando cinco filhos. Se o lugar de partida é desigual não dá para falar de meritocracia como meio justo de promover a vida digna das pessoas.
Nessa parábola Jesus oferece outro critério: a necessidade concreta de cada um deve determinar a forma como a sociedade deve se organizar em vista da promoção de uma vida digna para todos. Só depois disso se pode falar de mérito.
Cristãos que criticam programas sociais como o de cotas raciais nas universidades e bolsa família, por exemplo, não entenderam o significado de “quero misericórdia e não sacrifícios”. Políticas de assistência social são tentativas de socorrer a necessidade do “pão de cada dia” de pessoas e famílias que, sozinhas, jamais conseguiriam enfrentar o problema da discriminação, do acesso a educação superior, de conseguir colocar comida na mesa todo dia.
É claro que ficar só nisso não é a solução dos nossos problemas sociais à longo prazo, entretanto, precisamos aprender com o dono da plantação que devemos também “ser bons”, solidários com as necessidades urgentes de tantos irmãos e irmãs que esperam “nas praças” por um meio de conseguir sobreviver mais um dia, sem sonhos porque não conseguem ver para si e para sua família um futuro diferente, pois perderam a esperança.
O discurso da meritocracia é uma afronta à lógica do evangelho de Jesus que nos chama a ir ao encontro das pessoas para compartilhar com elas não o que achamos que é certo segundo a régua do mérito, mas o que verdadeiramente é justo segundo o princípio da necessidade de cada um e de sua dignidade como filho e filha de Deus.
Por isso, Jesus conclui a parábola com a famosa frase “os últimos serão os primeiro e os primeiros serão os últimos”. Quando a necessidade dos “últimos” de nossa sociedade estiver em primeiro lugar e a dos que são os “primeiros” estiver em último lugar na forma como organizamos nossa sociedade política e economicamente, poderemos alcançar, já entre nós, um pouco daquilo que Jesus anunciou entregando a própria vida e que conhecemos pelo nome de “Reino de Deus”.

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