domingo, 21 de janeiro de 2018

O lugar de fala e o discurso moral religioso (Parte IV)

Nesta última postagem dessa série dedicada à questão do lugar de fala e do discurso moral religioso, quero compartilhar com você o que vi e o que entendi diante de várias polêmicas atuais que permearam nossos meios de comunicação e as redes sociais nesses últimos tempos.
Caso você esteja lendo esse texto sem ter visto os anteriores, é possível que algumas ideias possam parecer soltas ou sem fundamentação, entretanto, os elementos que fundamentam alguns pontos tratados aqui se encontram nas partes anteriores dessa reflexão. Por isso, recomento olhar os textos anteriores antes de seguir na leitura deste.
Retomando...
Recordo os vários episódios nos quais membros de grupos variados (feministas, LGBT, radicais críticos da religião cristã, entre outros), realizando manifestações, executaram performances utilizando objetos e símbolos relacionados à fé cristã: quebra pública de imagens católicas, introdução da cruz no ânus em manifestações, utilização da matéria usada para a celebração da missa (as pequenas hóstias) em uma exposição com nomes de partes do corpo escritas nelas, pichações em fachadas de Igrejas cristãs, e assim poderia continuar essa lista. Na internet facilmente se pode encontrar notícias sobre esses episódios e muitos outros.
Ao recordar esses episódios quero recordar também as reações dos grupos cristãos (católicos e evangélicos) que processaram várias dessas pessoas, segundo está na lei, por desrespeito a liberdade religiosa, profanação dos objetos de culto e intolerância religiosa contra as igrejas cristãs. Recordo também que movimentos fecharam exposições em museus, perseguiram artistas por causa de suas posições em relação a manifestações artísticas que traziam temas relacionados com a questão religiosa (especificamente a religião cristã) e fizeram intensas campanhas nas redes sociais como reação a essa agressão a sua fé. Circularam slogans do tipo “Sou católico e defendo a minha fé” para motivar os cristãos católicos a tomarem uma atitude diante desses acontecimentos.
Como consequência disso, percebi uma agressão crescente nos discursos de ambos os lados e, em alguns casos, o incentivo ao uso da violência como forma de ação ou reação.
É preciso olhar o lugar de fala de onde partem essas posições para não se deixar levar por paixões do tipo “fla x flu”, porque isso não é uma disputa esportiva, mas são vidas, histórias e um tipo de sociedade que se está construindo que estão jogo.
Também me senti chocado e ofendido, num primeiro momento, por essas manifestações utilizando símbolos religiosos cristãos. Entretanto, depois do choque inicial, me obriguei a parar e a tentar ouvir o que esses acontecimentos estão me dizendo sobre a minha fé, sobre o meu discurso moral religioso, sobre que imagem da fé cristã estou comunicando às pessoas.
Tentando olhar o lugar de fala de onde o discurso dessas pessoas e de seus grupos parte, percebi que são pessoas (ou grupos socicais) que, muitas vezes, foram vítimas históricas de um tipo de discurso moral cristão que as marginalizou durante séculos, que as consideraram “seres humanos inferiores”, pecadores merecedores dos castigos do inferno: negros e índios com sua cultura e sua fé; homossexuais e sua busca pelo direito de viverem suas vidas; mulheres e sua luta contra uma estrutura social patriarcal e machista. Repito, por séculos esses grupos foram oprimidos, perseguidos e mortos por pessoas que se apresentavam como representantes da “moral cristã”. Há uma história de violência por baixo dessas manifestações que vemos hoje, uma história que talvez nem eles mesmos tenham consciência, mas a sentem e a carregam.
O contexto social atual deu espaço para que essas pessoas se organizassem em grupos socialmente representativos e pudessem se manifestar com liberdade. Eles estão fazendo isso! E qual é a mensagem que eu estou ouvindo da parte deles em algumas dessas formas de manifestação? Agora que esses grupos podem falar, eles estão apresentando suas pautas, reivindicando direitos, denunciando abusos. Em algumas ocasiões, eles estão devolvendo com violência a violência que receberam por séculos da sociedade cristã ocidental.[1] Estão rejeitando essa cultura cristã que permeia a sociedade ocidental porque a experimentaram como nociva, como repressora e castradora do seu direito de viver e de existir como pessoas. Acredito que os casos que citei acima, que chocaram e provocaram reações entre os fiéis cristãos, tem por trás deles esses elementos.
A reação dos grupos e igrejas cristãs, diante desse contexto, tem sido de combater esses movimentos e essas manifestações; de reagir condenando, criticando, gritando que “estamos certos!!” e que eles são simplesmente “pessoas más”. Eu entendo essa reação, pois é uma reação instintiva de preservação, de autodefesa diante de um contexto que se apresenta como ameaçador. Nessa “modernidade líquida”,[2] muitos cristãos sentem-se perdidos e o medo diante das novas realidades que se apresentam pode levar a atitudes de fechamento, de fundamentalismos e de violência (verbal ou física). O que eles buscam são certezas, respostas “certas” para tudo o que está acontecendo, regras claras, receitas para serem seguidas na esperança de que no final se obterá o resultado prometido. Entretanto, questiono: esse lugar de fala é o “melhor lugar” do qual partir para lidar com todas essas situações de mudança, de questionamento e crítica ao discurso moral cristão? Eu acredito que não!
O que eu acredito é que, como cristão, devo buscar um caminho que permita me posicionar com honestidade a partir da Boa Notícia de Jesus. Como cristão eu me sinto na obrigação de me colocar diante dessas pessoas e grupos críticos e/ou contrários ao discurso moral cristão (seja de quem quebrou uma imagem sacra ou profanou uma cruz) e de, humildemente, perguntar: Irmão, diga-me o que eu fiz? Como eu provoquei toda essa violência dentro de você? Onde foi que meu discurso religioso te feriu tão profundamente para provocar essa reação? Quero entender! Quero encontrar um caminho para me redimir! Quero ter a coragem de deixá-los responder as minhas perguntas e de saber ouví-los com sinceridade e respeito, mesmo que seja doloroso! Quero entender para tentar agir como Jesus, meu Mestre e Senhor, agiria, a partir do princípio do amor, pois ele ensinou que é pelo amor que “reconhecerão que sois meus discípulos”.[3]
Acredito que a atitude cristã mais coerente nesse contexto que se apresenta é a de abrir os caminhos do diálogo, de “dar a outra face” para sermos capazes de compreender o que realmente está acontecendo.  Precisamos discernir o que a Revelação está trazendo a nossa consciência nesse momento histórico por meio desses acontecimentos para correspondermos generosamente à vontade de Deus.
Escuta, diálogo, perdão, misericórdia e respeito são palavras que deveriam estar presentes no processo de revisão do discurso moral cristão nesse momento histórico de conflitos e mudanças no qual estamos vivendo. Somente assim se pode desenvolver uma moral cristã que ajude a todos a alcançar os valores fundamentais do amor, do bem, da justiça, da vida em plenitude.




[1] Tenho como pano de fundo para essa argumentação a ideia do chamado “efeito rebote”. Ele é usado normalmente no campo da saúde, como uma reação contrária do corpo a uma ação radical nele aplicada como, por exemplo, a retenção de líquidos no corpo causada por uma radical diminuição no consumo de sódio. Aqui estou partindo dessa ideia: um longo período de privação de direitos, de perseguições, de discriminação, muitas vezes motivados por discursos morais religiosos, sofre agora uma reação que se expressa por meio de sentimentos e falas que ficaram reprimidos por séculos.
[2] Tomo emprestado o termo cunhado pelo sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman.
[3] Cf. Evangelho segundo João, capítulo 13, versículos 34 e 35 (Jo 13,34-35).

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